Discurso durante a 114ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

- Registro da reunião, em Brasília, dos chefes de Estado da América do Sul para discussão da integração latino-americana.

Autor
José Fogaça (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RS)
Nome completo: José Alberto Fogaça de Medeiros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA EXTERNA. POLITICA INTERNACIONAL.:
  • - Registro da reunião, em Brasília, dos chefes de Estado da América do Sul para discussão da integração latino-americana.
Publicação
Publicação no DSF de 06/09/2000 - Página 17712
Assunto
Outros > POLITICA EXTERNA. POLITICA INTERNACIONAL.
Indexação
  • COMENTARIO, REUNIÃO, CHEFE DE ESTADO, AMERICA DO SUL, IMPORTANCIA, LIDERANÇA, FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, PROCESSO, REESTRUTURAÇÃO, CONTINENTE, ANTERIORIDADE, INSTALAÇÃO, AREA DE LIVRE COMERCIO DAS AMERICAS (ALCA).
  • ANALISE, HISTORIA, AMERICA DO SUL, INSUFICIENCIA, INTEGRAÇÃO, IMPORTANCIA, INSTALAÇÃO, MERCADO COMUM DO SUL (MERCOSUL), LIDERANÇA, JOSE SARNEY, EX PRESIDENTE DA REPUBLICA, EXPECTATIVA, ORADOR, PROCESSO, DESENVOLVIMENTO.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


O SR. JOSÉ FOGAÇA (PMDB - RS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Muito obrigado, Sr. Presidente.

Srªs e Srs. Senadores, faço, desta tribuna, na tarde de hoje, um registro - que considero quase uma obrigação - sobre essa extraordinária e, ao mesmo tempo, inédita reunião presidencial, realizada na semana passada em Brasília, sob a liderança do Presidente Fernando Henrique Cardoso.

Foram 12 chefes de Estado, 12 Presidentes de Repúblicas aqui reunidos, sob a égide de uma visão sul-americana, continental, mas, sobretudo, em defesa de um interesse prescípuo: a nossa “latino-americanidade”.

O Presidente Fernando Henrique Cardoso, com isso, deu um passo gigantesco em direção à afirmação do Brasil como um grande líder, como uma Nação que emerge nesse processo, como a Nação que lidera essa grande reestruturação regional da América do Sul.

O Presidente Fernando Henrique Cardoso demonstra claramente que conhece, que tem consciência perfeita dos passos estratégicos necessários, imprescindíveis para que o Brasil e também toda a América do Sul possam enfrentar a instalação da Alca - Associação de Livre Comércio das Américas, com grandeza e força, em igualdade de condições, para barganhar favoravelmente aos interesses dos países do hemisfério sul. Não há nenhuma dúvida de que este passo marca indelevelmente o Governo Fernando Henrique Cardoso, dá-lhe uma notoriedade internacional que possivelmente nenhum outro chefe de Estado tenha conseguido nos últimos anos.

Sr. Presidente, a nossa América do Sul tem, mais ou menos, 190 anos de independência. Em 1810, quando, no Vice-Reino do Prata, Liniers e Cisneiros foram banidos do poder e assumiram a liderança do Vice-Reinado do Prata - os chamados líderes crioulos, ou seja, os líderes nativos, locais -, começava, ali, um processo de independência que se espalharia por toda a América do Sul. De lá para cá - são 190 anos -, nunca tinha ocorrido esta oportunidade rara e ímpar, mas absolutamente necessária e imprescindível de os Presidentes das Repúblicas se reunirem, olharem-se uns para os outros e se perguntarem: "Temos interesses em comum? Temos interesses semelhantes a defender? Cada um, isoladamente, é mais fraco ou mais forte? Juntos, temos mais poder de barganha, mais capacidade de negociação, ou somos mais frágeis, mais vulneráveis?" São perguntas simples, meridianas, primárias, a que sempre nos foi vedado responder por intermédio dos intrincados processos, das formas de interferência que os interesses internacionais sempre encontraram na América do Sul.

De modo, Sr. Presidente, que vale a pena fazer, enfaticamente, este registro. O Presidente Fernando Henrique Cardoso marca a sua gestão, o seu segundo mandato, com esse ato político inédito e inaudito, que é possivelmente capaz de resgatar 190 anos de história pulverizada, fragmentada, dividida e profundamente vulnerabilizada na América do Sul.

Em todo esse longo período, Sr. Presidente, foram muito raros os momentos, foram poucas as situações em que os países da América do Sul tiveram, realmente, confrontos materiais e ou razões consistentes para que eles se estabelecessem. Na verdade, pode-se dizer que, em 99% do tempo, as razões eram muito mais de convergência, do que de separação e divergência. As razões econômicas, históricas, culturais, geográficas e geopolíticas eram, ao contrário, de aproximação, e não de separação.

É quase inaceitável, do ponto de vista de qualquer análise lógica, que esses países não tenham procurado essa aproximação. O Brasil e a Argentina, por exemplo, nesses 190 anos, Sr. Presidente, só tiveram um singular momento, que durou o período de três anos, em que tiveram um efetivo confronto intrínsico de interesses, só houve um momento em que se pode dizer que aquilo que servia ao Brasil não estava servindo à Argentina, ou seja, em que se poderia estabelecer um jogo de soma zero: se o Brasil ganhasse, a Argentina perderia, e, se a Argentina ganhasse, o Brasil perderia. Isso ocorreu, quando, lá por volta de 1825, disputamos, frontalmente, com os argentinos, a Província Cisplatina, o Uruguai. A Província Cisplatina estava incorporada ao Brasil, que a invadira em 1817, mas os argentinos tinham a idéia de que o Vice-Reinado do Prata teria que ser grande, não poderia ser uma pátria chica, pequena, por isso anelavam pela anexação do Uruguai, da Província Cisplatina, sonhavam com ela.

Ali, sim, estabeleceu-se um confronto material verdadeiro, real, consistente, palpável, de interesses estratégicos e geopolíticos: se o Brasil ficasse com o território cisplatino, com a antiga Colônia de Sacramento, estaria, realmente, preponderando sobre a Argentina do ponto de vista geopolítico; se a Argentina anexasse a Província Cisplatina, estaria tendo uma preponderância geopolítica, um controle geográfico estratégico muito mais amplo e funcional do que o Brasil, porque teria, praticamente, o domínio de todo o Atlântico Sul, de toda a região austral da América do Sul.

Mas não foi o que aconteceu. Os dois países chamaram a intermediação da Inglaterra. E a Inglaterra viu, talvez tenha sido essa uma solução adequada, que naquele momento, para o seu interesse, para os seus objetivos, para permitir o ingresso de uma economia capitalista liberal, numa América em crescimento, num mercado em formação, em expansão, era preciso ter ali um enclave, era preciso ter ali um país que fosse independente da Argentina, independente do Brasil. Para a assinatura do tratado de paz entre Brasil e Argentina, a Inglaterra encaminhou pela independência total do Uruguai, pela independência total da Província Cisplatina, e criou-se então, em 1828, a República Oriental do Uruguai.

            Mas de lá para cá, Sr. Presidente, desde aquele período, quase ao longo dos 170, 180 anos, não há registro, não há caso, não há episódio que possa demarcar um confronto real, verdadeiro, agudo de interesses entre Brasil e Argentina. Nem mesmo a Guerra do Chaco, entre o Paraguai e a Bolívia, por conquista e ocupação de território, nem naquele momento não havia razão para que Brasil e Argentina se confrontassem. A Argentina apoiava o Paraguai, o Brasil apoiou a Bolívia. Havia um temor, através de uma antiga doutrina estratégica geopolítica, de que a Argentina sempre sonharia e buscaria a sua expansão territorial, e sempre exerceria o poder do chamado destino manifesto. E imaginou-se então que a Argentina gostaria de retomar e de reconquistar o território boliviano por via do desequilíbrio estrutural provocado pela Guerra do Chaco.

É verdade que, naquele período, as relações ficaram bastante estremecidas. Houve uma certa sensibilidade aguçada entre os dois países, mas, na realidade, não era o Brasil em guerra com a Argentina e nem a Argentina em guerra com o Brasil. Eram os dois países formando uma espécie de background político, um para o Paraguai e outro para a Bolívia.

Ao final das contas, o equilíbrio político continental se estabeleceu com a paz e, é claro, com o retorno das coisas ao seu viés mais tradicional, ou seja, da mais profunda convergência, da mais notória identidade de valores, da mais clara e inequívoca razão para aproximar-se em vez de divergir e de distanciar-se um do outro.

Tanto assim, Sr. Presidente, que o nosso querido e memorável Ministro das Relações Exteriores Oswaldo Aranha chegou a assinar, em 1941, com a Argentina um acordo pelo qual se haveria de estruturar, montar, gradativamente, uma zona aduaneira entre os dois países. Esse era o objetivo do tratado de 1941 assinado por Oswaldo Aranha. Getúlio e Oswaldo Aranha já tinham essa visão estratégica da necessidade do mercado comum, passando, evidentemente, por uma fase anterior ao mercado comum, que é a conformação institucional de uma zona aduaneira em que os países tivessem entre si tarifas de comércio comum e também tarifas externas comum em relação aos seus demais países que com eles mantinham comércio.

Isso só não aconteceu porque em poucos meses, pouco tempo da assinatura do acordo, eclodiu o ataque a Pearl Harbour nos Estados Unidos, que fez com que os americanos entrassem na guerra contra o Japão, contra o eixo, enfim, contra as forças que se associavam ao nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial.

A entrada dos Estados Unidos na guerra fez emergir, com muita força, no continente uma velha doutrina geopolítica de influência e subordinação no sentido de que, por uma determinação, por uma espécie de destino geográfico, por uma espécie de determinismo geográfico, o Brasil, a Argentina e outros países da América do Sul tinham que se subordinar a uma condução macroestratégica orientada pelos Estados Unidos. Isso vigorou entre muitos dos nossos teóricos brasileiros. Vigorou na base dos nossos conceitos geopolíticos mais divulgados e mais aceitos. E passamos a ter, a partir daí, esse elemento perturbador que foi permanente a partir de então nas relações entre Brasil e Argentina.

E de fato, Sr. Presidente, passaram-se muitos anos. Houve o golpe militar que levou um sistema ditatorial ao poder na Argentina em 1943. Aqui no Brasil tivemos a redemocratização em 1946. A queda de Getúlio em 1945. Enfim, tivemos todo um curso histórico que se delineou, que andou, que tomou caminhos, mas só no final do século XX, só a partir de meados da década de 80 para o final do século XX que começou a se implantar um verdadeiro processo de aproximação econômica, de união de mercados entre Brasil e Argentina.

Até então, todas as iniciativas tinham sido inteiramente frustradas, sempre foram praticamente fulminadas por uma teoria equivocada que vigorou na América Latina, que os países competiam entre si na conquista dos grandes mercados do primeiro mundo. E, por isso, por competirem entre si, não podiam associar-se para negociar espaços e oportunidades dentro, no interior desses mercados do primeiro mundo. E por competirem entre si, cada um entendia que deveria negociar separadamente as suas relações bilaterais. E temos aí toda essa longa história de quase 180 anos praticamente separados do ponto de vista geográfico, comercial, econômico e também, infelizmente, por conseqüência disso, separados do ponto de vista político.

Mas, na semana passada, essa visão, essa tradição histórica ruim, negativa foi rompida, Sr. Presidente, porque aqui se reuniram 12 Chefes de Estado para dizer uma coisa simples: temos interesses em comum, vamos dar as mãos e agora vamos negociar o nosso futuro em conjunto, ou seja, a partir da força que obtenhamos pela nossa unidade política, pela capacidade de nos articularmos, de nos fortalecermos e de obtermos o poder de barganha necessário para fazer frente aos países da América do Norte, principalmente aos Estados Unidos, que lideram o Nafta, o acordo regional que vigora para unificar mercados e para estabelecer o livre comércio na América do Norte.

Portanto, ao chegar a esse ponto, tivemos que passar por algumas lições importantes, como por exemplo a fundação da Alalc, por volta de 1948 - se não me falha a memória. A Alalc pretendia ser o que a OEA - Organização dos Estados Americanos - é politicamente e institucionalmente para os países da América Latina: pretendia ser um organismo pelo qual centenas e milhares de acordos multilaterais poderiam se estabelecer, sob a égide desse organismo central, voltado para o mercado comum da América Latina. Contudo, apesar de tudo indicar que essa convergência era positiva e que esse comércio precisava encontrar seu caminho e seu aprofundamento, a Alalc nunca chegou a ser bem-sucedida, por uma razão fundamental: ela também pretendia uma articulação instantânea de todos os países da América do Sul, o que era politicamente impossível.

Uma lição nos veio da Europa e nos ajudou a encontrar o caminho mais adequado para o encontro dos interesses da América do Sul, principalmente do cone sul da América Latina: os países europeus criaram a Comunidade do Carvão e do Aço e começaram a aproximar a França e a Alemanha. Só depois que esses países conseguiram estabelecer as regras básicas para suas negociações diplomáticas futuras, de mútuo respeito e consideração, deslanchou-se o processo que resultou hoje na União Européia, a qual, ao longo de seus mais de 40 anos de história, passou por fases sucessivas. Trata-se de um processo vitorioso, porque, no ano de 2002, as moedas nacionais européias, como a lira italiana, o marco alemão e a peseta espanhola, desaparecerão em favor de uma moeda única, o euro, já em circulação. Esse longo processo só foi possível na Europa porque a Alemanha e a França, grandes potências, entenderam-se, criando mecanismos para solução de controvérsias e encaminhando o processo construtivamente.

Na América do Sul, pode-se dizer que tanto a Alalc como a sua sucessora, a Aladi - Associação Latino-Americana de Integração -, não alcançaram tão amplamente os objetivos que pretendiam por uma razão simples, Sr. Presidente: porque também pretendiam uma articulação instantânea, única e a um só tempo de todos os países latino-americanos. E isso não era possível. Era preciso, primeiramente, resolver as pendências mais agudas e mais sintomáticas em cada região. E o Brasil e a Argentina partiram para um entendimento, tendo sido assinado o acordo Brasil-Argentina pelos Presidentes José Sarney e Raul Alfonsín. Só a partir desse acordo se pôde iniciar o processo que haveria de instalar o Mercosul e que daria a base e a configuração para essa reunião realizada na semana passada. Se um dia, no passado, o Presidente José Sarney não tivesse esse vislumbre e o Presidente Raul Alfonsín a compreensão de que ambos os países tinham um papel central, estratégico, definitivo na conformação desse futuro, se eles não tivessem entendido isso, a reunião dos doze Chefes de Estado, realizada na semana passada, não teria acontecido. Aconteceu porque o Presidente José Sarney e o Presidente Raul Alfonsín iniciaram um caminho, abriram um processo de ajustes que possibilitou depois a incorporação do Uruguai, do Paraguai e a formação do Mercosul. Hoje já se incorporam o Chile e a Bolívia - e a Venezuela já é uma pretendente ao Mercosul.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, na reunião realizada aqui, sobretudo ficou clara a busca quase inevitável de articulação de interesses entre o Pacto Andino e o Mercosul, o que daria consistência plena a uma unidade sul-americana, que portanto resultará desse processo gradual, baseado nesse núcleo original e inicial entre o Brasil e a Argentina, José Sarney e Raul Alfonsín, nos meados da década de 80, quando então se tornou possível concretizar e definir o caminho que agora vem sendo gradativamente palmilhado pelos países do nosso continente.

Foi um fato inaudito, extraordinário, inédito, que nós, latino-americanos, não tivemos conhecimento em 180 anos de história: uma reunião de cúpula dessa ordem, cujo objetivo não é meramente de defesa nem de desarmamento, no sentido de desativar o aparelho militar, mas basicamente de natureza econômica, centrado na defesa dos interesses de cada uma dessas nações, mas sobretudo no grande interesse da América Latina.

Está prevista a Alca - Associação de Livre Comércio das Américas - para dentro de cinco anos - foi o que previu o acordo e o encontro de Santiago. Não sei se ao Brasil interessa concretizar esse acordo nesse período de cinco anos. Mas, seguramente, será um acordo muito melhor, muito mais favorável aos nossos interesses, muito mais vantajoso para cada um desses 12 países se eles se sentarem à mesa para traçar objetivos comuns, diretrizes na mesma direção. A Alca deverá reunir países desde o Alasca até a Terra do Fogo, desde o extremo norte até o extremo sul, desde a parte mais setentrional do Hemisfério Norte até a parte mais meridional do Hemisfério Sul.

Sr. Presidente, não tenho nenhuma dúvida de que a Alca é e será algo positivo, podendo transformar-se num grande elemento de integração e de elevação de padrões econômicos - de vida e de renda - dos países da América do Sul.

Toda a história da humanidade tem demonstrado, acima de tudo, que a capacidade de defender os seus próprios interesses e de reconhecer e identificar o que é bom para si próprio faz parte da estratégia vitoriosa e vencedora das grandes nações. Sr. Presidente, não há registro, na história da humanidade, de nenhuma grande nação, por mais ciente e ciosa dos seus interesses individualizados, que tenha crescido sozinha, sem grandes volumes de comércio externo. O comércio externo é formador e gerador de riqueza.

Portanto, a Alca poderá ser uma grande conquista. Possivelmente, será uma grande oportunidade e possibilidade para os países da América do Sul no futuro. Porém, essas condições vantajosas e essas prerrogativas só serão asseguradas se esses países estiverem unidos, Sr. Presidente. Nessa era de incertezas, não sabemos quando a história permitirá que isso aconteça, mas, seguramente, no momento em que ocorrer, olhar-se-á para o passado, reconhecendo a liderança e o efetivo trabalho de Presidentes da República como José Sarney e Fernando Henrique Cardoso.

Obrigado, Sr. Presidente.

 


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 06/09/2000 - Página 17712