Discurso durante a Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Leitura do Sermão do Bom Ladrão, de autoria do Padre Antônio Vieira, em comparação à atual realidade política brasileira.

Autor
Heloísa Helena (PT - Partido dos Trabalhadores/AL)
Nome completo: Heloísa Helena Lima de Moraes Carvalho
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA NACIONAL.:
  • Leitura do Sermão do Bom Ladrão, de autoria do Padre Antônio Vieira, em comparação à atual realidade política brasileira.
Publicação
Publicação no DSF de 23/02/2001 - Página 1837
Assunto
Outros > POLITICA NACIONAL.
Indexação
  • COMENTARIO, APREENSÃO, GRAVIDADE, DENUNCIA, ANTONIO CARLOS MAGALHÃES, SENADOR, CORRUPÇÃO, MINISTRO DE ESTADO, MEMBROS, PARTIDO POLITICO, PARTIDO DO MOVIMENTO DEMOCRATICO BRASILEIRO (PMDB).
  • COMENTARIO, OBRA LITERARIA, AUTORIA, ANTONIO VIEIRA, SACERDOTE, COMPARAÇÃO, SITUAÇÃO, POLITICA, PAIS, REFERENCIA, OCORRENCIA, CORRUPÇÃO, CONGRESSO NACIONAL, PRESIDENTE DA REPUBLICA.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            A SR.ª HELOÍSA HELENA (Bloco/PT - AL. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, é evidente que aquilo que certamente tem movimentado mentes e corações em todo o Brasil são as freqüentes denúncias de corrupção feitas entre Parlamentares do Congresso Nacional, no Senado, ou entre ministros relacionados ao Governo Federal.

            Gostaria de discutir com os Parlamentares presentes e com a opinião pública a preocupação que paira sobre todos nós a respeito de denúncias gravíssimas em relação aos ministérios e aos ministros do PMDB, como a de anteontem, feita pelo Senador Antonio Carlos Magalhães.

            O Senador Renan Calheiros apresentou denúncias igualmente gravíssimas contra ministros do PFL. Portanto, a grande pergunta que poderia ser feita pelo povo brasileiro é se o Presidente Fernando Henrique Cardoso é igualmente ladrão e corrupto e, portanto, poderia ser adjetivado igualmente a seus vários ministros que foram apresentados em denúncias nesta Casa.

            Para colaborar com o debate, farei a breve leitura de um texto muito antigo. Certamente, o Senador Roberto Requião, não por antigüidade, mas por dominar com propriedade o latim, pudesse ler trechos belíssimos. Um deles é muito antigo e foi escrito pelo Padre Antônio Vieira, ainda em 1655. O texto é de uma atualidade impressionante! Chama-se Sermão do Bom Ladrão. Talvez o trecho nos possibilite identificar se Fernando Henrique Cardoso é igualmente corrupto, ou os dois Senadores estariam agindo de má-fé, ou mentindo por desconhecimento dos fatos, ou por chantagem, ou qualquer outra palavra desqualificada que se pudesse utilizar.

            O Padre Antônio Vieira, ao fazer o Sermão, em 1655, na Igreja de Misericórdia de Lisboa, antecipava que talvez o local apropriado para fazê-lo não fosse a Igreja de Misericórdia de Lisboa, mas a Capela Real, pois o objetivo do Sermão, de fato, era tratar da responsabilidade dos reis, que são cúmplices de ladrões, assim como de ministros de estado, desocupados da corte, governadores sem mérito nomeados por parentesco ou favores de negociação. E iriam todos, segundo Padre Antônio Vieira, para o inferno.

            É evidente que jamais poderia ter a ousadia de convencer alguém aqui, pois talvez este fosse o espaço adequado para debatê-lo. Tanto o Palácio do Planalto como o Congresso Nacional, por ser o Congresso Nacional, segundo a Constituição Federal, é a instituição apropriada para fiscalizar os atos do Poder Executivo, tem como tarefa nobre fiscalizar os atos daquele Poder, embora, em função da posição da Maioria desta Casa, se ajoelhe covarde e vergonhosamente diante do Palácio do Planalto; isso faz com que o Congresso Nacional funcione como um anexo do Palácio.

            Assim, minha intenção jamais poderia ser esta: apenas compartilhar com os ouvintes e com os Senadores aqui presentes um texto tão esclarecedor e tão importante como o do Padre Antônio Vieira. Ele dizia que nem os reis podem ir ao paraíso sem levar consigo ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno sem levar consigo os reis. Claro, todas as vezes que falarmos de reis e de príncipes, na estrutura vigente, atual, quem representa os reis ou os príncipes, efetivamente, é o grande Chefe do Executivo, portanto, o Presidente da República, que, hoje, numa República como a nossa, ocupa o papel que, à época do Sermão de Padre Vieira, era ocupado pelos reis, pelos príncipes.

            Argumentava ele que, se os reis levassem consigo os ladrões ao paraíso, seria uma ação gloriosa e verdadeiramente real, pois não teria companhia indecente. E exemplifica com um episódio bíblico muito interessante e muito bonito: Cristo foi crucificado ao lado de um outro ladrão, que aqui passa a ser caracterizado como “o bom ladrão”, Dimas. Quando Dimas se dirigiu a Jesus, dizendo-lhe: “Jesus, lembra-te de mim em teu Reino”, Jesus, imediatamente, disse-lhe: “Estarás comigo ainda hoje no paraíso”. Ou seja, ele diz que, se os reis levam consigo os ladrões ao paraíso, é uma ação gloriosa e verdadeiramente real, pois não tinham companhia indecente. Por que não teriam companhia indecente, Padre Vieira passará a tratar agora, onde diferencia o ladrão rico do pobre. E dizia ainda que a realidade que ele identificava em 1655 - que também identificamos hoje - é que não eram reis levando ladrões ao paraíso, mas ladrões levando os reis ao inferno. E ele partia de um fundamento: “Sem restituição do alheio, não pode haver salvação”.

            E citava Santo Agostinho, que dizia: “Se o alheio que se tomou se retém, se se pode restituir e não se restitui, a penitência deste e de outros pecados não é verdadeira penitência, senão simulada e fingida, porque não se perdoa o pecado sem se restituir o roubado, quando quem o roubou tem possibilidade de o restituir”.

            E, analisando o caso do bom ladrão, repetia Provérbios, quando diz: “Não é grande a culpa de quem furta, se furta para matar a fome”. E é exatamente por isso que ele diz que Cristo perdoou o bom ladrão. O bom ladrão, despido, pregado na cruz, na extrema pobreza, estava impossibilitado de restituir qualquer coisa que tivesse roubado anteriormente e, se o tivesse feito para matar a fome, sem dúvida já estaria sem a culpabilidade presente. E resgatava alguns preceitos - que não resgatamos hoje - da lei velha, da lei rigorosa, da lei da graça, da lei natural.

            A partir daí, ele começa a diferenciar o tratamento dispensado por Cristo ao ladrão pobre, que foi Dimas, e ao ladrão rico, Zaqueu. Ele dizia que Cristo tinha que tratar os dois de forma diferente. Dimas foi tratado de forma diferente em função da pessoa que era: um ladrão pobre, miserável e crucificado. Para Zaqueu, não foi dada de pronto a salvação, pois era um ladrão tolerado. Sua riqueza era a imunidade necessária para roubar sem castigo, sem forca e sem culpa. Alguns, como Zaqueu, pensam que dando alguma esmola conquistarão o Reino dos Céus. Vieira afirma que isso não é verdade, pois “a salvação não pode entrar sem se perdoar o pecado, e o pecado não se pode perdoar sem se restituir o roubado!”

            Dizia que “a restituição não só obriga súditos e particulares, mas também os cetros e as coroas”. Portanto, considerando a situação atual, a punição por roubo, por furto, por ladroagem não deve servir apenas ao ladrão pobre, que vai para o Carandiru; tem que servir também para o Congresso, para o Governo Federal.

            Continua Padre Vieira: “A rapina ou roubo é tomar o alheio contra a vontade do seu dono. Os príncipes tomam muitas coisas dos seus vassalos contra sua vontade, mas, se dissermos que os príncipes pecam nisto, todos eles ou quase todos nos condenariam”. E responde citando São Tomás:

Se os príncipes tiram dos súditos o que, segundo a justiça, lhes é devido para a conservação do bem comum, ainda que o executem com violência, não é roubo [fala de impostos, do que hoje existe na legislação vigente]. Porém, se os príncipes tomarem o que se lhes não deve, é rapina e latrocínio. Estão obrigados à restituição como os ladrões. E pecam tão mais gravemente que os mesmos ladrões, quanto é mais perigoso e mais comum o dano, com que ofendem a justiça pública, de que eles [os príncipes, os reis, os senadores, os deputados ou o presidente] estão postos por defensores.

            Nesse ponto, ele começa a relatar como Deus castigou severamente dois reinos: o de Israel e o de Judá. Um com o cativeiro dos assírios; outro, com o dos babilônios. E a causa foi que seus príncipes, em vez de guardarem os povos como pastores, roubavam-nos como lobos. E Santo Agostinho dizia: “Só há uma diferença entre os reinos e os covis dos ladrões: os reinos são latrocínios ou ladroeiras grandes e os latrocínios ou ladroeiras são apenas reinos pequenos”. Exemplifica com o diálogo do pirata com Alexandre Magno. Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo Mar Eritreu, a conquistar a Índia; e foi trazido a sua presença um pirata que andava com um barco roubando pescadores. Alexandre repreendeu-o violentamente, e ele, que não era covarde nem lerdo, respondeu de pronto: “Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão; e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador?”

            E diz Vieira: “Assim é que o roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza. O roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres”. O roubar pouco dá Carandiru e o roubar muito dá poder - digo eu, e não o Padre Antônio Vieira.

            E continua levantando questões extremamente interessantes. Um filósofo chamado Sêneca teve a coragem de escrever em Roma, na época em que reinava Nero, mesmo diante da covardia dos oradores, em tempo de príncipes católicos e timoratos. Tais oradores não pregavam a doutrina, mas se calavam. Ao que observava Sêneca: “Saibam os eloqüentes mudos que mais ofendem os reis com o que calam que com o que disserem; porque a confiança com que isto se diz é sinal que lhes não toca e que se não podem ofender; e a cautela com que se cala é argumento de que se ofenderão porque lhes pode tocar”.

            Às vezes, alguns fazem todas as denúncias possíveis e imagináveis, mas não tocam em Fernando Henrique, porque pensam que, com sua eloqüência muda, vão possibilitar a proteção de Fernando Henrique. Mas não o protegem.

            Vieira cita Salomão: “O ladrão que furta para comer não vai nem leva ao inferno. Os que não só vão, mas levam, são os ladrões de maior calibre e de mais alta esfera, os quais, debaixo do mesmo nome e do mesmo procedimento, agem!”

            E cita ainda São Basílio Magno:

Não são só ladrões os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais, já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem; estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu próprio risco; estes sem temor nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados; estes furtam e enforcam.

            O que vai para o Carandiru, o miserável da favela, quando vai roubar, sabe que pode ser assassinado, que pode ir para a prisão, sabe exatamente para aonde pode ir. Os grandes não, roubam sem temor nem perigo.

            Vieira lembra ainda Diógenes, e o faz com admiração à ditosa Grécia, por tê-lo como pregador. Certa vez, Diógenes, ao ver uma tropa de homens “importantes” levando a enforcar alguns ladrões, bradou incansável: “Lá vão os ladrões grandes enforcar os pequenos!” Certamente, muitos da população brasileira, se vissem determinadas coisas, iriam gritar exatamente isso.

            Dizia ainda: “Quantas vezes se viu em Roma ir a enforcar um ladrão por ter furtado um carneiro e, no mesmo dia, ser levado em triunfo um cônsul ou ditador por ter roubado uma província?”

            Cita ainda Sidônio Apolinar, contrapondo-se a um ilustre Sr. Seronato. Dizia ele: “Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos e em os fazer”, o que é um tapa no falso moralismo que às vezes impera aqui. “Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo para roubar ele só!”

            Muitos de nós poderíamos perguntar: ministro ladrão significa presidente ladrão? Corrupto significa presidente corrupto? E pergunta Vieira: “Mas se os reis tão fora estão de tomar o alheio, que antes eles os roubados, e os mais roubados de todos, como levam ao inferno consigo esses maus ladrões os bons reis?” Ora, como um bom rei pode ter a fama em função de ter um ladrão perto de si?

            Justificando a culpa dos reis, Vieira responde: “Não por um só, senão por muitos modos, os quais parecem insensíveis e ocultos, e são muito claros e manifestos. 1º - Porque os reis lhes dão os ofícios e poderes com que roubam”. São os reis ou o presidente ou um governador que estabelecem ao ministro ou ao secretário o ofício e o poder com que eles roubam. “2º - Porque os reis os conservam neles”. Ou seja, o presidente continua conservando os ministros. “3º - Porque os reis os adiantam e promovem a outros cargos maiores”; 4º - Sendo os reis obrigados, sob pena de não ter a salvação, a restituir todos esses danos, nem na vida nem na morte os restituem”, pela impunidade que impera.

            Padre Antônio Vieira repete São Tomás de Aquino: “Aquele que tem a obrigação de impedir que não se furte, se não o impediu, fica obrigado a restituir o que se furtou. E até os príncipes que, por sua culpa, deixarem crescer os ladrões, são obrigados à restituição; porquanto as rendas com que os povos os servem e assistem são como estipêndios instituídos e consignados por ele para que os príncipes guardem e mantenham em justiça”.

            “E se, nesta obrigação de restituir, incorrem os príncipes pelos furtos que cometem os ladrões casuais e involuntários, que será pelo que eles mesmos e por própria escolha armaram de jurisdição e poder àqueles que roubam os mesmos povos?” Paga o furto também quem deu o ofício, o cargo, o poder ao ladrão.

            Vieira diz: “Poderia dizer o príncipe” - citando o pecado cometido por Adão - “a Deus: Ora, Deus, Vossa Divina Majestade Deus, homem de tanta capacidade de escolha, viu um dos seus filhos, Adão, cometer um pecado tão grande, então, por que coube a ti mandar o teu filho, Jesus Cristo, para a Terra para que Ele fosse punido por um pecado que não fostes parte, que era o pecado de Adão?” Segundo Vieira, Deus poderia responder assim: “Na escolha do homem e no ofício que lhe dei, em tudo procedi com a circunspecção, prudência e providência com que devera e devia fazer o príncipe mais atento às suas obrigações, mais considerado e mais justo. Quando o fiz, não foi com império despótico com as outras criaturas, senão com maduro conselho e por consulta de pessoas até não humanas, divinas. As partes e qualidades que concorriam no escolhido eram as mais adequadas ao ofício que se podiam desejar, nem imaginar, porque era o mais sábio de todos os homens, justo sem vício, reto sem injustiça, um senhor de todas as suas paixões, às quais tinha sujeitas e obedientes a razão. Só lhe faltava experiência, mas não houve nem concurso de outros para escolha, porque Adão era o primeiro e único homem”.

            Mesmo assim, diria Deus: “Vistes o corpo humano de que me vesti? Vistes o muito grave que padeci, o sangue que derramei, a morte que fui condenado entre ladrões, para que não fique no mundo tão má e perniciosa conseqüência, como seria se os príncipes se persuadissem em algum caso que não eram obrigados a pagar e satisfazer o que seus ministros roubassem”?

            Continua Vieira: “A desculpa dos reis é tão falsa quanto mal fundada, porque Deus não fez escolha dos homens pelo que sabe que hão de ser, senão pelo que de presente são”. Se os reis, os presidentes, assim fizessem suas escolhas para determinados ofícios, ficariam desobrigados da restituição. “Porém, as escolhas e os provimentos que se usam não se fazem assim. Querem saber os reis” - ou os presidentes - “se os que provêm nos ofícios” - ocupam cargos - “são ladrões ou não?” Quer o Presidente saber disso?

            Vieira cita Cristo: “A porta por onde legitimamente se entra ao ofício é só um merecimento; e todo o que não entra pela porta é ladrão, senão ladrão e ladrão. E por que é duas vezes ladrão? Uma vez porque furta o ofício que não lhe pertencia, e outra vez pelo que há de furtar com ele”.

            Continua Padre Antônio Vieira: “Uns entram (no ofício; no cargo, hoje) pelo parentesco, pela amizade, pela valia; outros, pelo suborno; e todos, pela negociação. Entram como ladrões ocultos, depois passam a ser ladrões descobertos”. Alguns entram pela janela; outros, por cima dos telhados; outros, minando a casa do pai de família. E faz várias referências bíblicas que mostram exatamente isso.

            “Como se pode escusar quem ao menos firma os provimentos de quem não conhecia serem ladrões os que por estes meios foram providos? Finalmente, ou os conhecia ou não” - o Presidente pode ser cobrado da mesma forma que o rei o era por Antônio Vieira - , “se os não conhecia, como os proveu sem os conhecer? E se os conhecia, como os proveu, conhecendo-os? Mas vamos aos providos com expresso conhecimento de suas qualidades”. Começa, então, a dizer como se faz a provisão dos cargos, que muito se assemelha ao que ocorre hoje. Alguns dizem tratar-se de um homem importante, um fidalgo da nossa panelinha, mas é uma pessoa pobre, desempregada. Então, diz Vieira, ele irá desempobrecer à custa dos que governam? Ele fará muitos pobres à custa de se tornar muito rico!”

            Dão prêmios aos preferidos e dão castigos aos que não são preferidos, mas que são da panelinha também. Aos preferidos, os melhores cargos; aos não preferidos, uns outros cargos, mas continuam cargos, porque para praticar o parasitismo precisam da estrutura para parasitar.

            Padre Antônio Vieira lembrava, no momento em que estava fazendo o sermão, que uma vez o Rei D. João III solicitou a São Francisco Xavier que o informasse do Estado da Índia, por via do seu companheiro que era mestre do Príncipe. O santo escreveu de lá, sem nomear ofícios, nem pessoas, que o Verbo Rapio na Índia se conjugava por todos os modos. Aí Padre Antônio Vieira começou a dizer que, na época dele - certamente o que o povo brasileiro também identifica da conjuntura -, também se conjuga o Verbo Rapio por todos os modos. Ele dizia: “pela experiência que tenho, não só do Cabo da Boa Esperança para lá, mas também das partes daquém, se usa igualmente a mesma conjugação. Conjugam por todos os modos o Verbo Rapio, porque furtam por todos os modos da arte, não falando em outros novos e esquisitos que também conheceu Donato, nem Despautério. Tanto que lá chegam, começam a furtar pelo modo Indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo Imperativo, porque como têm o mero e misto império, todo ele aplicam despoticamente as execuções das rapina. Furtam pelo modo Mandativo, porque aceitam quando lhes mandam; e para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos. Furtam pelo modo Optativo, porque desejam quanto lhes parece bem; e gabando as coisas desejadas aos donos dessas, por cortesia sem vontade as fazem suas. Furtam pelo modo Conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito; e basta só que ajuntem a sua graça, para serem, quanto menos, meeiros da ganância”.

            E continua dizendo que furtam pelo modo potencial, permissivo, infinito. Vai trabalhando todos os verbos que são necessários.

            Diz ele ainda: “É certo que os reis não querem isto, antes mandam em seus Regimentos tudo o contrário;” Como poderia alguém pensar, ah, mas o Presidente não quer isso, porque a Constituição manda o contrário, porque o Código Penal manda o contrário. (...) “mas como as Patentes se dão aos Gramáticos destas conjugações tão peritos, ou tão cadimos nelas; que outros efeitos se podem esperar dos seus governos? Cada Patente destas em própria significação vem a ser uma licença geral in spcriptis, ou um Passaporte para furtar”. Como faziam os corsários estrangeiros, os corsários do mar.

            E continua: “Dos que obram o contrário com singular inteireza de justiça e limpeza de interesse, alguns exemplos temos, posto que poucos. Mas folgara eu saber quantos exemplos há, não digo já dos que fossem justiçados como tão insignes ladrões, mas dos que fossem privados de governo por estes roubos? Pois se eles furtam com os ofícios e os consentem e conservam nos mesmos ofícios, como não hão de levar consigo ao Inferno os que os consentem?” (...) “Verdadeiramente não sei como não reparam muito os Príncipes em matéria de tanta importância, e como os não fazem reparar os que no foro exterior, ou no da Alma, têm cargo de descarregar suas consciências”.

            Então ele trata de uma parábola muito interessante: “Havia um Senhor rico, diz ao divino Mestre, o qual tinha um criado, que, com ofício de Ecônomo ou Administrador, governava as suas herdades. Infamado pois o dito Administrador de que se aproveitava da administração, e roubava, tanto que chegou a primeira notícia ao Senhor, mandou-o logo vir diante de si, e disse-lhe que desse contas, porque já não havia mais de exercitar o ofício”. Quando soube que alguém estava roubando, ele chamou o senhor a quem ele dava o cargo ou ofício para tirá-lo do cargo. “Ainda a resolução foi mais apertada; porque não só disse que não havia, senão que não podia”. (...) “Não tem palavra esta Parábola que não esteja cheia de notáveis doutrinas a nosso propósito. Primeiramente diz que este senhor era um homem rico. Porque não será homem quem que não tiver resolução; nem será rico, por mais herdades que tenha, quem não tiver cuidado, e grande cuidado, de não consentir que lhas governem ladrões. Diz mais, que para privar a este ladrão do ofício, bastou somente a fama sem outras inquirições”. E detalha exatamente: “Nem o ladrão conhecido deve continuar o ofício em que foi ladrão, nem o Senhor, ainda que quisesse, o pode consentir e conservar nele, se não se quer condenar”.

            E começa a trabalhar ainda nessa parábola: “Suspendei-o agora - dizia Padre Antônio Vieira - por alguns meses como se usa, e depois o tornareis a restituir, para que nem vós o percais, nem ele fique perdido”. Às vezes, isso ocorre. Alguém está roubando, e dizem para afastá-lo provisoriamente para que seja definitivamente apurado. “Não, diz Cristo. Uma vez que é ladrão conhecido, não só há de ser suspenso ou privado do ofício ad tempus, senão para sempre, e para nunca jamais entrar ou poder entrar; porque o uso ou abuso dessas restituições, ainda que pareça piedade, é manifesta injustiça. De maneira que, em vez de o ladrão restituir o que furtou no ofício, restitui-se o ladrão ao ofício, para que furte ainda mais! Não são essas as restituições pelas quais se perdoa o pecado, senão aquelas por que se condenam os restituídos, e também quem os restitui. Perca-se embora um homem já perdido, e não se percam os muitos que se podem perder, e perdem na confiança de semelhantes exemplos”.

            E continua Padre Antônio Vieira a falar como Isaías caracterizava alguns príncipes. (...) “Os príncipes de Jerusalém não são fiéis, senão infiéis, porque são companheiros de ladrão.” Então, Presidente companheiro de ladrão não é fiel, mas infiel. Continua: “Pois saiba o Profeta que há príncipes fiéis e cristãos que ainda são mais miseráveis e mais infelizes que esse, porque um príncipe que entrasse em companhia com os ladrões (...) havia de ter também a sua parte no que se roubasse; mas estes estão tão fora de ter parte no que se rouba, que eles são os primeiros e os mais roubados. Pois, se são os roubados esses príncipes, como são ou podem ser companheiros dos mesmos ladrões (...)? Será porventura porque talvez os acompanham e assistem aos príncipes são ladrões? Se assim fosse, não seria coisa nova. Antigamente - que interessante - os que assistiam ao lado dos príncipes chamavam-se Laterones. E, depois, corrompendo-se esse vocábulo, (...), chamavam-se Latrones.” (...)

            Continua o autor: “Os teus príncipes são companheiros dos ladrões. E por quê? São companheiros dos ladrões, porque os dissimulam; são companheiros dos ladrões, porque os consentem; são companheiros dos ladrões, porque lhes dão os postos e os poderes; são companheiros dos ladrões, porque talvez os defendem; e são finalmente seus companheiros, porque os acompanham.” Segundo Padre Antônio Vieira, eles “os acompanham e hão de acompanhar até o inferno, onde os mesmos ladrões os levarão consigo.”

            É o que esperamos numa democracia; nós, cristãos, queremos a construção do reino dos céus aqui na Terra e esperamos que eles parem na cadeia.

            E continua o Padre Antônio Vieira, tratando dos ladrões públicos e desconhecidos, dos ladrões públicos e conhecidos: “Cuidas tu, ó injusto que hei de ser semelhante a ti e que, assim como tu, dissimulas com esses ladrões, hei eu de dissimular também?” - dizia Padre Antônio Vieira que Deus assim falaria aos reis. “Enganas-te. (...) Dessas mesmas ladroíces que tu vês e consentes, hei de fazer um espelho em que te vejas e, quando vires que és tão réu de todos esses furtos como os mesmos ladrões, porque os não impedes; e mais que os mesmos ladrões, porque tens obrigação jurada de os impedir, então conhecerás que tanto e mais justamente que a eles te condeno ao Inferno.”

            E vai além Padre Antônio Vieira num texto absolutamente lindo e atual.

            Era uma simples contribuição, Sr. Presidente, Sras e Srs Senadores, no sentido de que esta Casa possa realmente fazer a discussão que diz respeito à sua obrigação constitucional, cumprindo o que a Constituição diz que é crime de responsabilidade.

            Se o Líder do PMDB alega que há corrupção nos Ministérios cuja administração cabe a membros do PFL e uma liderança do PFL diz que há corrupção nos Ministérios administrados pelo PMDB, esta Casa deve responder e tem obrigação de dizer. Se os Ministros são corruptos, conforme dizem ambos, ou mentem ou faltam com a verdade por desinformação ou má-fé ou igualmente o Presidente Fernando Henrique Cardoso é também corrupto e ladrão.

            O SR. PRESIDENTE (Mozarildo Cavalcanti) - Senadora Heloísa Helena, interrompo V. Ex.ª somente para prorrogar a sessão a fim de que possa concluir seu discurso e para que possamos ter a oportunidade de ouvir o Senador Roberto Requião.

            A SR.ª HELOÍSA HELENA (Bloco/PT - AL) - Sr. Presidente, agradeço a sensibilidade de V. Ex.ª.

            Mais grave ainda: um Senador disse na Casa anteontem, em aparte ao Senador Antonio Carlos Magalhães, que a CPI do Judiciário parou no momento em que tocava no Governo; a CPI do sistema financeiro parou no momento em que tocava no Banco Central. Hoje temos na imprensa o comentário de que o Senador Antonio Carlos Magalhães foi ter uma conversa com procuradores do Ministério Público, a qual, diz-se, foi gravada - podem fazê-lo porque não é um procedimento ilegal. Não sei se de fato gravaram, mas se o fizeram ela está lá, deixando absolutamente claro o caso Eduardo Jorge ao qual a base governista deu sustentação, se omitiu, foi conivente, rasgou a Constituição porque não quis investigar o que todos sabiam sobre o número de ligações que havia do Nicolau para o Luiz Estevão e para o Eduardo Jorge que mostrava exatamente “a coincidência” das ligações que eram feitas entre o Eduardo Jorge o Nicolau e não sei quem com a liberação de recursos para o TRT de São Paulo. E tudo isso foi calado. Infelizmente, o Senador Antonio Carlos Magalhães não teve a coragem de fazer a sugestão ao Ministério Público quando Presidente desta Casa, para possibilitar que o nosso requerimento de informações, conforme manda a Constituição, pudesse ser analisado. Agora o Ministério Público vai começar tudo de novo. E espero que possamos fazer o que nos obriga a Constituição e que seja realmente respondido pela base governista.

            Ou os Senadores Antonio Carlos Magalhães e Renan Calheiros, os Senadores Líderes do Governo e do PFL estão mentindo, agindo de má-fé, por desinformação ou falta de conhecimento do caso, ou o Senhor Fernando Henrique é corrupto. E se diante disso o Congresso Nacional não investiga e não cumpre suas obrigações constitucionais é corrupto também. Essa pecha, nós, da Oposição, não carregaremos.

            Muito obrigada.


            Modelo15/8/241:10



Este texto não substitui o publicado no DSF de 23/02/2001 - Página 1837