Discurso durante a 26ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIAGEM DO PRESIDENTE FERNANDO HENRIQUE AOS ESTADOS UNIDOS, PARA TRATAR DA CRIAÇÃO DA AREA DE LIVRE COMERCIO DAS AMERICAS - ALCA.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
COMERCIO EXTERIOR.:
  • CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIAGEM DO PRESIDENTE FERNANDO HENRIQUE AOS ESTADOS UNIDOS, PARA TRATAR DA CRIAÇÃO DA AREA DE LIVRE COMERCIO DAS AMERICAS - ALCA.
Publicação
Publicação no DSF de 03/04/2001 - Página 4858
Assunto
Outros > COMERCIO EXTERIOR.
Indexação
  • ANALISE, HISTORIA, CAPITALISMO, CRITICA, RESULTADO, PRODUÇÃO, TECNOLOGIA.
  • AVALIAÇÃO, ENCONTRO, FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, GEORGE BUSH, PRESIDENTE DE REPUBLICA ESTRANGEIRA, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), OBJETIVO, AJUSTE, ACORDO, AREA DE LIVRE COMERCIO DAS AMERICAS (ALCA).
  • CRITICA, EMPRESA, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), COMERCIO EXTERIOR, AREA DE LIVRE COMERCIO DAS AMERICAS (ALCA), PREJUIZO, GOVERNO FEDERAL, MOTIVO, AUMENTO, DESEMPREGO, CONCORRENCIA DESLEAL, REDUÇÃO, PRODUÇÃO.
  • ANALISE, CRITICA, FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, OBEDIENCIA, FUNDO MONETARIO INTERNACIONAL (FMI).

O SR. LAURO CAMPOS (Bloco/PT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, hoje lerei um discurso bastante resumido que escrevi esta manhã para ver se consigo enquadrá-lo no rigor do Regimento Interno.

Da outra vez fiquei devendo alguma coisa a respeito daquilo que estava falando - e isso me aconteceu também quando falava sobre o darwinismo e o darwinismo social -, porque apresentei a primeira parte e a segunda, que seria uma crítica daquilo que havia colocado, jamais pude enunciá-la. Desse modo, então, os meus leitores poderiam ter uma impressão completamente equivocada daquilo que é o meu pensamento a respeito do assunto.

            Em relação ao assunto tecnologia que estava tentando tratar no último pronunciamento, parece-me que a história do capital, do capitalismo, é a história da sua aparência, dos seus feitos e efeitos. A história dos defeitos, da negatividade, não aparece numa versão ideológica da história das vitórias do capitalismo. Também, por isso, a literatura sobre as crises é insignificante em relação à literatura da história econômica, sobre moeda, crédito, produção etc.

Há três anos, na última vez em que fui aos Estados Unidos, entrei na maior livraria do mundo, procurando um livro sobre crise, não encontrei nenhum. Agora, sobre a Dona Monica Lewinsky, havia 21 livros na estante; sobre crise econômica mundial, crise econômica do capitalismo norte-americano, nada.

A minha preocupação é justamente mostrar como a tecnologia capitalista, que, de início, desenvolvia as forças produtivas, aumentava o raio de ação da produção, desenvolveu crédito ao consumo, ao consumidor, produziu o sistema financeiro, os empréstimos a longo prazo, para vender máquinas, navios, trens de ferro etc.

Essa produção fantástica começa a perturbar cada vez mais a reprodução do capitalismo. A partir daí, a tecnologia, que era destinada a desenvolver as forças produtivas, também foi contaminada por uma necessidade interna, oculta e quase sempre latente do capitalismo. Marx dizia que a missão histórica do capitalismo é desenvolver as forças produtivas, mas que, a partir de certo momento, o capitalismo entraria na senilidade, sobreviveria a si mesmo e, em vez de desenvolver as forças produtivas, passaria a desenvolver as forças destrutivas.

Numa fase do capitalismo, a tecnologia é adequada ao desenvolvimento, à potencialização da capacidade de produção dos países capitalistas. Mas, a partir de outro momento, de outro estágio, o estado capitalista, os governos têm que desviar as forças produtivas que estão perturbando a economia, produzindo mercadoria e máquinas demais. Como a Inglaterra queria deter todos os privilégios da Revolução Industrial, proibiu até 1843 que as máquinas fossem exportadas, mas elas foram produzidas com tanta intensidade e com tanta eficiência que não havia capitalistas ingleses que produziam sapatos e tecidos suficientes para comprarem as máquinas produzidas por meio de máquinas na Inglaterra. Por isso as necessidades reais revogaram essa proibição e, em 1844, o Brasil, por meio da Lei Alves Branco, começou a importar máquinas de tecido e outras máquinas, como aconteceu com a Argentina, o Japão etc.

Assim, o grande problema era evitar que as máquinas que operassem no Brasil, na Argentina, no Japão, por meio de uma mão-de-obra que era escrava ou recebia um salário insignificante, como acontece hoje; operando esse trabalhador empobrecido, periférico, em máquinas novas, recém-importadas da Inglaterra, obviamente iriam reduzir o custo de produção e inviabilizar diversos setores da produção inglesa.

Então a Inglaterra percebeu que ela não devia, que era mal negócio exportar máquinas; que a exportação de máquinas acabaria reduzindo o mercado para os sapatos, os chapéus, as roupas, os produtos finais produzidos na ilha.

Os ingleses tinham de inventar uma máquina que, ao ser exportada, não produzisse produtos concorrentes com os ingleses. Que máquina era essa? Marx novamente determinou que a máquina verdadeira tem três partes: motor, linha de transmissão e a máquina ferramenta, que pule, que corta, que rebita, que faz o trabalho das mãos do homem. Da máquina ferramenta, de acordo com Marx, que partiu a Revolução Industrial, e não do motor ou da linha de transmissão. A máquina ferramenta, que concorre com o homem e, por ser a mão da máquina, dispensa a mão-de-obra do trabalhador vivo.

Portanto, a solução inglesa foi fantástica: máquina que tivesse motor e linha de transmissão, mas que não tivesse essa parte que revoluciona o mundo, as forças produtivas e cria o desemprego etc. Que máquina seria essa? Uma máquina com motor, linha de transmissão e uma roda. As grandes locomotivas, que, ao serem exportadas, fizeram com que, posteriormente, o Brasil, em 1990, a Argentina, em 1998, e todos os países que importaram tantas ferrovias acabassem aumentando sua dívida externa e entrando em crise. Assim, exportando ferrovias, que produziam aqui apenas movimento e nenhuma mercadoria concorrente com as mercadorias inglesas, a Inglaterra pensou ter resolvido o seu problema.

As ferrovias não foram feitas em face do seu aspecto positivo, que reduz o tempo de circulação, inclusive do próprio capital. As ferrovias se desenvolveram e 1,13 milhão Km de ferrovias foram construídas no mundo até 1913, em virtude de sua negatividade, uma vez que não desenvolviam as forças produtivas, não criavam mercadorias finais concorrentes com as inglesas. Setenta por cento dos investimentos norte-americanos entre 1870 e 1900 foram feitos em ferrovias. E o Governo norte-americano doou uma extensão de terra do tamanho do Estado de Ohio para os barões ladrões das ferrovias, expressão muito adequada usada naquele País.

Saliento que a tecnologia capitalista é, de fato, capitalista, pois só entra em ação quando não atrapalha fundamentalmente a reprodução do capital, os interesses cristalizados nessa estrutura social e econômica. Parece-me que, a partir de determinado momento, o capitalismo entrou na senilidade, sobreviveu assim mesmo e, em vez de desenvolver as forças produtivas, passou a desenvolver as forças destrutivas. Essa foi a terceira e última fase do capitalismo, a qual se iniciou em 1930, quando a produção atingiu nos Estados Unidos um nível tão elevado que provocou a Crise de 1929.

Naquela época, produziam-se 5,3 milhões de carros. Em virtude das dificuldades de venda, da queda da taxa de lucro, a Bolsa inflou e explodiu. Em 1931, em vez de 5,3 milhões, os Estados Unidos produziram 900 mil e, 14 anos depois, apenas 700 mil, sofrendo uma queda brusca. Entre 1929 e 1943, a produção caiu de 5,3 milhões para 700 mil apenas. O Governo capitalista estava segurando a produção de mercadorias, de meios de produção e de meios de consumo.

Como os Estados Unidos se recuperaram? Tal como aconteceu na Alemanha de Hitler, eles se recuperaram por causa de estádios, estradas e produção bélica. A produção bélica não precisa de comprador final. A produção bélica é um “não-meio” de produção e um “não-meio” de consumo ao mesmo tempo, pois ela se autoconsome. E o Governo é o comprador “monopçônico” - o único comprador. Comprar canhão e tanque é proibido; comprar bomba atômica, nem se fala! Só o Governo pode comprar. Ele compra e paga um preço elevadíssimo. E esse setor - o que produz “não-meios” de produção, “não-meios” de consumo, “não-mercadorias” e produtos destrutivos - é o que mais cresce no sistema capitalista.

A partir daí, obviamente, o Governo tem de sustentar esse crescimento do setor que ficou sendo o centro de produção tecnológica, o centro da reabsorção do desemprego, o centro do poder político e militar, centrado nos Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial.

O que me parece é que a tecnologia também passa a ser destrutiva, improdutiva. Em vez de transformar a natureza com o trabalho humano, a tecnologia cresce vertiginosamente também no setor de transporte - transporte do homem, que não é resultado da produção, transporte das imagens, do som, dos sinais. Então, vamos entrando no mundo das “superinfovias”. Em vez de ser o mundo das ferrovias e das rodovias, como era até 1930, entramos no mundo das “superinfovias”, do computador. Uma maravilha, mas que fica lá, no computador, uma pessoa sentada de um lado, outra do outro, sem alterar em nada as condições reais da vida e do mundo.

Desse modo, essa sociedade de seres passivos e impassíveis, que não altera em nada o desenvolvimento das forças produtivas, passa a ser esse produto maravilhoso, congelador da vida e desesperador. O Japão prova isso com as doenças do trabalho, que se agravam até chegar ao karoshi, o suicídio dos trabalhadores, no final de semana. Essas doenças são todas muito relacionadas aos computadores e aos novos instrumentos de circulação de alguma coisa que não foi produzida.

Essa nova tecnologia é moderníssima, mas tenta manter o capitalismo e suas condições reais, procura amainar as contradições provocadas pela produção de mercadorias, pelas dificuldades de venda, pelas guerras atrás de mercados mais amplos etc. etc.

Era principalmente isso que eu queria fazer: um desenho rápido da evolução e do caminho que a tecnologia e suas invenções percorreram ao longo da estrutura produtiva. Faço esse registro apenas para não ficar totalmente sem nexo aquilo que pretendi falar na vez anterior.

            Na tarde de hoje, tentarei falar sobre “A viagem presidencial e o caos neoliberal - a história do olho no olho”.

Políticos acríticos, jornalistas diaristas, prisioneiros do au jour le jour, crentes fervorosos na “estabilidade” do colapso não gostariam de entender os motivos reais que movem a viagem do Presidente FHC aos Estados Unidos, onde iria olhar nos olhos do grande Chefe Bush.

A viagem parece ter cumprido seus objetivos declarados e ter trazido vitórias e louros ao Brasil. A primeira meta da viagem foi evitar a antecipação da data de nascimento da Alca de 2005 para 2003. Ao deslocar o foco da questão para uma simples fixação de data, não se discute o principal: a conveniência ou não, do ponto de vista do Brasil, da criação do Mercado Comum “do Alasca à Patagônia”. O problema menor - data do nascimento - suplantou os maiores e retirou-os da pauta das discussões, tornou-os antigos e superados.

Diante do resultado das medidas recessivas plantadas pelo Presidente Bill Clinton, como minas enterradas no caminho que o Sr. Bush teria de percorrer, as bolsas despencaram, a lucratividade real diminuiu, a taxa de crescimento do PIB caiu, a produção e o emprego contraíram-se e a taxa de juros foi baixada. O enxugamento neoliberal, iniciado no término do Governo Clinton, prometeu acabar com a dívida pública do Governo Federal dos Estados Unidos até 2012 e, para isso, reduzir em cerca de US$700 bilhões por ano os gastos primários no mercado americano. Como cada norte-americano deve em média as rendas, as receitas e o faturamento que terão nos próximos dois anos (dívidas de famílias, empresas e governos), apenas possíveis cortes de impostos não resolverão essa crise de realização. Como muitos tecnocratas democratas que enterraram as minas continuam atuantes sobre o Governo Bush, estão tentando limpar a estrada e desativar as minas enterradas por eles próprios, há dois ou três anos.

A contração da demanda efetiva - e essa contradição passa a ser a única visível pelos neoliberais - não pode mais ser resolvida dentro do espaço territorial dos Estados Unidos. Daí a premência de ampliar o mercado para as mercadorias produzidas at home e de criar a Alca o mais rápido possível. Mas entre o Céu e a Terra existem muitas coisas que a vã filosofia neoliberal não pode perceber.

            Com a globalização do capital verificada depois da II Guerra, as empresas multinacionais levaram parte do poder sediado nos Estados Unidos e expandiram novas agências de capital - e de poder - pelo mundo afora. As decisões que servem melhor a cada multinacional e a grupos delas começam a entrar em contradição com as decisões do Governo dos Estados Unidos e das macrounidades sediadas naquele território. O Sr. Bush está perdendo ótima oportunidade para entender as neocontradições que a globalização atual acirra.

Diante de uma crise de realização, o capitalismo pode, supostamente, reagir de algumas maneiras, cada vez mais limitadas: pode reduzir a taxa de juros e a carga tributária, tentando elevar a renda disponível para o consumo; pode elevar os gastos do governo, o deficit spending, keynesianamente; pode “exportar a crise”, determinando que as multinacionais reduzam a escala de produção das empresas hospedadas no exterior, fechando montadoras no Brasil, Argentina etc., demitindo trabalhadores periféricos e estrangeiros, para ocupar aqueles mercados com as mercadorias made in USA. Mas o que é bom para a população dos Estados Unidos - elevação do emprego, da renda, do consumo - pode não interessar às multinacionais hospedadas no exterior, que desejam maximizar lucros ou, na crise, diminuir prejuízos. Será que as multinacionais concordarão com as políticas do Sr. Bush, que visam a manter a escala de produção das unidades localizadas nos Estados Unidos, onde os salários e outros itens do custo são muito mais elevados do que os custos periféricos de produção? Será que produzir fora e barato, exportando para os Estados Unidos parte daquela produção, não é muito mais rentável do que aderir a uma Alca, que, comandada pelos interesses particulares dos Estados Unidos, determinará uma divisão internacional do capital, da produção, do poder e da exploração, o que significará perdas para as empresas multinacionais, isto é, para o império norte-americano localizado no resto do mundo?

“Olhar nos olhos” de Bush deveria ser mais que flertar com a intimidade do poder mundial. Deveria significar que, entre outras coisas, o grande chefe do norte pode ter percebido que o tempo não é marcado para ele. As multinacionais já tinham resolvido que o melhor para elas era o fechamento “normal” de unidades de produção, a redução da escala no território norte-americano. Ao invés de ampliar mercado (solução Alca), a crise de demanda determinava a redução da oferta, a contração da produção.

“A GM resolve fechar temporariamente cinco fábricas de automóveis nos Estados Unidos. A maior montadora do mundo tenta adequar sua produção e seus estoques ao enfraquecimento verificado em suas vendas”. “A Ford deverá anunciar a suspensão temporária de sua fábrica em Wixom” (Folha de S.Paulo, p. B9-31, de 03 de março de 2001).

FHC olhou no olho vazio de Bush e não viu mais nada: as decisões adequadas ao império dos capitais oligopólicos já tinham sido tomadas. A Alca tinha de esperar por um novo agravamento da crise que os neoliberais dizem inexistir, mas que marca a pauta dos donos do poder.

Para não voltar de mãos abanando, FHC resolve socorrer o FMI, dizendo que o FMI não pode falir, que ele é necessário para servir de bode expiatório às decisões economicidas que seus tecnocratas adotaram. Essas decisões devem continuar sendo atribuídas ao FMI. Para isso, para assumir a culpa dos planos reais, Cavallos e outros é preciso que o FMI continue existindo.

Essa foi a triste missão que levou Sua Excelência Fernando Henrique Cardoso aos Estados Unidos. Poderia ter economizado a passagem.

Muito obrigado, Sr. Presidente. Desculpe-me por ter invadido, mais uma vez, o meu tempo regimental.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 03/04/2001 - Página 4858