Discurso durante a 102ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Defesa de urgência na apreciação de projeto de lei que propõe cotas de acesso à universidade para estudantes negros. Reflexão acerca da realização, entre 31 de agosto e 7 de setembro, na África do Sul, da III Conferência Internacional Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata.

Autor
José Sarney (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
Nome completo: José Sarney
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
  • Defesa de urgência na apreciação de projeto de lei que propõe cotas de acesso à universidade para estudantes negros. Reflexão acerca da realização, entre 31 de agosto e 7 de setembro, na África do Sul, da III Conferência Internacional Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata.
Aparteantes
Heloísa Helena, José Fogaça, Ney Suassuna.
Publicação
Publicação no DSF de 29/08/2001 - Página 18677
Assunto
Outros > DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Indexação
  • ELOGIO, DETERMINAÇÃO, FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, ENCAMINHAMENTO, ASSUNTO, PROJETO DE LEI, AUTORIA, ORADOR, DISCUSSÃO, CONFERENCIA INTERNACIONAL, PAIS ESTRANGEIRO, AFRICA DO SUL.
  • ANALISE, GRAVIDADE, SITUAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, NEGRO, BRASIL, CRITICA, EFEITO, DESIGUALDADE SOCIAL.
  • JUSTIFICAÇÃO, PROJETO DE LEI, AUTORIA, ORADOR, DEFESA, FIXAÇÃO, COTA, NEGRO, ACESSO, UNIVERSIDADE, SOLICITAÇÃO, EMPENHO, SOLUÇÃO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, PAIS.
  • APRESENTAÇÃO, DADOS, CRITICA, DESIGUALDADE SOCIAL, COMENTARIO, IMPORTANCIA, CONTRIBUIÇÃO, NEGRO, CULTURA, BRASIL.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Sras e Srs Senadores, pouco venho à tribuna, pois longos anos de Parlamento me ensinaram que na minha idade é um tempo mais de ouvir que de falar. Entretanto, o assunto de que tratarei me parece de extrema importância e, de minha parte, exige essas palavras e uma tomada de posição.

            Será realizada, a partir desta semana, entre os dias 31 de agosto e 7 de setembro, na África do Sul, a III Conferência Internacional Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. Foi com grande satisfação que vi o Presidente Fernando Henrique Cardoso determinar à nossa delegação àquela conferência a proposta de cotas de acesso à universidade para estudantes negros.

            Se não me engano, li em Tobias Monteiro, no seu livro “Pesquisas e Depoimentos”, um comentário que era feito por um velho Parlamentar do Império, que dizia: “Se alguém quiser guardar um segredo, coloque-o nos Anais do Parlamento”. O General Golbery do Couto e Silva gostava de repetir isso, acrescentando sempre que só não guarda segredo quem não sabe. O Parlamento sabe guardar segredos. E esta minha intervenção é para recordar que está entre os segredos do Parlamento um projeto de lei que apresentei há dois anos estabelecendo justamente o sistema de quotas para a entrada de estudantes negros na universidade. Esse projeto encontra-se até hoje na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. O Executivo tem o poder de colocar os assuntos na agenda de debates do País. Penso então que é hora de o Parlamento também ressuscitar esse projeto e participar dessa discussão tão importante para um segmento extraordinário da vida brasileira. Nesse projeto, Sr. Presidente, cujo Relator é o Senador Sebastião Rocha, eu propunha o seguinte: “Fica estabelecida uma quota mínima de 20% para a população negra no preenchimento das vagas - quero anotar o termo ‘quota mínima’ porque li um artigo segundo o qual essa quota era teto, quando, na realidade é a quota mínima.

“I - nos concursos para investidura em cargos e empregos públicos dos três níveis do Governo; aos cursos de graduação em todas as instituições de educação superior do território nacional; nos contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior..”

            Por quê? Já que estabelecemos que as faculdades particulares têm a obrigação de abrir vagas para estudantes negros colocamos o mecanismo do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior destinado a essas vagas nas faculdades particulares.

“Parágrafo único - na inscrição, o candidato declara enquadrar-se nas regras asseguradas na presente lei.”

            De acordo com essa redação, não é preciso que declare que é da raça negra, branca ou parda. Apenas ele deve informar que se enquadra nos termos desta lei.

            Visava com esse projeto colocar em debate assunto tão importante. Sempre me preocupei com o problema dos negros no Brasil. Essa preocupação não foi somente do político, mas também do intelectual. Demonstrei isso na minha modesta obra. Lembro-me que, no Norte das Águas, havia um conto no qual o personagem é um negro vítima de discriminação; e no último romance que escrevi, que é histórico - acho que isso ocorreu pela primeira vez na literatura brasileira, não temos grandes exemplos disso -, a heroína é uma negra.

            Também quero dizer que participei dos debates sobre essa questão desde meus dias de Deputado. A Lei Afonso Arinos foi fundamental contra a discriminação racial. Como Presidente da República, meditando sobre esse problema, no Centenário da Abolição, tive oportunidade de criar a Fundação Palmares, destinada justamente ao avanço da inserção social e da promoção social da raça negra.

            Lembro-me de que, com Carlos Moura, uma das maiores lideranças do movimento negro no Brasil, muitas vezes estive reunido para examinar os problemas causados pela exclusão e os meios para a integração da raça negra, inclusive o estabelecimento de quotas de discriminação afirmativa.

            Um dos problemas que nasceram foi a idéia, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, de que a questão era inconstitucional, porque se tratava de uma discriminação - e a Constituição proibia qualquer tipo de discriminação. O meu argumento era justamente de que já existem os problemas de discriminação positivos - como no caso das pequenas e das médias empresas, dos deficientes e dos idosos -, e não havia por que não avançarmos no problema relativo aos negros.

            Tenho repetido muito que a escravidão é a maior mancha da história brasileira. É inacreditável que tenhamos chegado quase ao fim do século com a escravidão no Brasil nos termos em que se processou. Jamais resgataremos da nossa história, jamais explicaremos como foi possível a este País chegar ao fim do século naquela situação de escravidão.

            Estou convencido de que o Brasil é uma democracia racial; e não há dúvida disso. Não há problema de discriminação racial na mesma dimensão que houve em outros países. Há discriminação, sem dúvida, mas não segregação racial. A discriminação se opera, muitas vezes, em relação a outros segmentos da sociedade. Vejo o Senador Ney Suassuna acenar afirmativamente com a cabeça e lembro-me de que há discriminação contra os nordestinos. Quando Presidente, eu, muitas vezes, era tratado como o “provinciano José Sarney”, por causa da minha região de origem.

            Mas o quadro da maior discriminação que vejo em relação aos negros é o caso da pobreza. O desfavorecimento da população negra constitui um dos segmentos mais claros da injustiça social no Brasil. Para precisarmos esses números, vamos ver que a Pesquisa Brasileira por Amostra de Domicílios (PNDA) do IBGE relativa a 1999 -- os dados do Censo de 2000 ainda não estão disponíveis --, apresenta uns números terríveis. Diz que 54% da população se declarava branca; 45,3%, parda ou preta; menos de 0,7%, amarela ou índia; mas os negros - pardos e pretos - eram 64% da população pobre e 69% da população indigente do Brasil.

            Presidente da República, meu primeiro discurso nas Nações Unidas foi proclamar que o Brasil era um país mestiço. De certo modo, aquilo causou alguma surpresa. Em seguida, trazia a afirmação de que o Brasil é o segundo país negro do mundo em número da sua população; depois da Nigéria é realmente o Brasil.

            Estudo do professor Ricardo Henriques mostra que, em 1999, entre os mais pobres dos pobres - entre os 1% dos brasileiros mais pobres - 8 em cada 10 eram negros; enquanto isso, entre os ricos - entre os 1% dos brasileiros mais ricos - somente 1 de cada 10 é negro. No caso da renda, a renda mensal na comunidade branca é de R$400 e de R$170 nas comunidades negras.

            Os negros enfrentam maiores dificuldades de acesso às escolas e de permanência nela. Seus índices de analfabetismo e de atraso escolar e reprovação são muito superiores em relação aos níveis da população classificada como branca. A escolaridade média de um negro com 25 anos de idade gira em torno de 6,1 anos de estudos e a de um branco em 8,4 anos de estudos.

            O problema não foi somente nosso, que tivemos o caso das minorias raciais. Os Estados Unidos também enfrentaram duramente esse problema que lá é muito mais sério, mas o fizeram justamente no sistema de obrigar a inserção dos negros dentro do sistema das elites, de decisão do poder e um dos instrumentos que utilizaram foi justamente o das cotas.

            A taxa de analfabetismo entre os brancos com mais de 15 anos, em 1999, era de 8,3%, enquanto para os negros era de 19,8%. Não tinham completado o ensino fundamental 57,4% dos adultos brancos e 75,3% dos adultos negros, enquanto tinham completado somente o ensino médio 12,9% dos brancos e 3,3% dos negros.

            No ensino superior, embora a situação entre os brancos seja grave -- em 1999, 89% dos jovens brancos entre 18 e 25 anos não haviam ingressado na universidade -- a situação dos jovens negros da mesma faixa de idade é de quase total exclusão: 98% deles não ingressaram na universidade.

            Até nos dados positivos do desenvolvimento social brasileiro se salienta a diferença de oportunidade. Entre 1992 e 1999 a proporção de crianças brancas entre 5 a 9 anos de idade ocupadas no mercado de trabalho caiu em 45%, enquanto para as crianças negras a queda observada foi somente 24%. A desigualdade entre crianças brancas e negras aumentou em mais de 20%.

            Também as taxas de desemprego são bastante distintas: os negros possuíam, em 1999, 10,6% de desempregados entre sua população economicamente ativa, contra 8,9% entre os brancos.

            Portanto, o problema da raça negra no Brasil tem que ser encarado com muito mais objetividade e não ficar somente no aspecto étnico, na discussão étnica. Devemos fazer coisas concretas e uma das coisas mais concretas que podemos realizar é ingressarmos na discussão até hoje negada no Brasil, a de estabelecermos o sistema de quotas dentro dos objetivos para a promoção da raça negra.

            A discussão não havia, de certo modo, surgido até hoje. Basta dizer que há três anos procurei iniciá-la e confesso que uma das primeiras resistências foi de alguns segmentos e associações que defendem direitos da raça negra. E tive de me valer justamente de Carlos Moura para, junto com ele, discutir com essas associações, mostrando-lhes que o sistema de quotas era positivo, que realmente deflagraria a inserção dos negros num maior patamar universitário. Ele levou a discussão aos diversos grupos e, àquela época, trouxe a resposta de que o movimento negro já aceitava o sistema de quotas.

            Agora o Presidente da República diz que essa é uma das teses apresentadas no Brasil na Conferência contra a Discriminação Racial, o que coloca o Parlamento numa posição de desafio.

            Desejo fazer um apelo desta tribuna, porque agora vou vigiar o assunto diariamente, a fim de que as Lideranças e todos os Senadores aprovem urgência para o projeto que se encontra na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, que tem poder terminativo para apreciar esse assunto. Entretanto isso não impede que os Líderes exijam, mediante aprovação de requerimento de urgência, a votação imediata do projeto.

            Faço um apelo ao Presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, para que ponha esse projeto em pauta. Já conversei com o Senador Sebastião Rocha, que é Relator da matéria, e S. Exª me disse que logo apresentará o seu parecer. Espero que esse assunto seja debatido imediatamente. Evidentemente, esse não é um projeto final; ele pode ser melhorado. Esse debate será o primeiro grande avanço definitivo para inserção dos negros na universidade.

            Vejam a dramaticidade desse problema: há cem anos, em 1988, comemoramos o centenário da abolição, mas somente agora o Brasil tem um general negro. No Parlamento brasileiro, há poucos representantes pertencentes à raça negra inseridos na política.

            Esse não é um problema racial, mas de ascensão social, e ascensão social só se faz oferecendo oportunidades, o que até hoje não aconteceu. Essas oportunidades têm de ser dadas, e dadas em discriminações positivas como essas das cotas previstas no projeto e agora encampadas pelo Poder Executivo.

            Trago outras considerações sobre esse problema do negro.

            A população negra do Brasil descende de homens e mulheres trazidos da África para a mais aviltante condição humana. José Bonifácio, em 1825, em sua “Representação sobre a Escravatura”, clamava que era tempo de começar a “expiação de nossos crimes e pecados velhos”. Trazemos essa dívida do passado, temos um quadro dramático no presente e podemos, todos, engajar-nos e dar uma contribuição decisiva para a solução do problema no futuro.

            O Sr. Ney Suassuna (PMDB - PB) - V. Exª permite-me um aparte?

            A Srª Heloísa Helena (Bloco/PT - AL) - V. Exª permite-me um aparte?

            O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Ouço V. Exªs com prazer . Os apartes vão enriquecer meu pronunciamento.

            O Sr. Ney Suassuna (PMDB - PB.) - Senador José Sarney, primeiro, quero louvar o discurso de V. Exª e, segundo, dizer da minha solidariedade. V. Exª terá no Senado da República aliados, entre os quais me coloco, para a defesa deste tema, pois já é época de tomarmos decisões concretas e esta, com certeza, será uma discussão que nos levará a decisões concretas. Parabéns.

            O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Muito obrigado, Senador Ney Suassuna. Acredito que essa unanimidade de vontades em torno da solução desse problema - que não vamos solucionar, mas pelo menos é o início de uma nova estrada - será muito importante.

            Concedo o aparte à Senadora Heloísa Helena.

            A Srª Heloísa Helena (Bloco/PT - AL) - Senador José Sarney, quero parabenizar V. Exª pelo pronunciamento. Tivemos a oportunidade, na Executiva Nacional do Partido dos Trabalhadores, de debater este tema. Até entendo as observações feitas por um jornalista e citadas por V. Exª a respeito do teto e da quota mínima, no sentido de evitar que aquilo caracterizado como base acabe sendo viabilizado como teto. Tivemos essa experiência, e V. Exª acompanhou os debates, no processo eleitoral quanto à quota destinada às mulheres. Claro que existem várias outras circunstâncias que não permitiram aos Partidos preencherem suas quotas. Ainda hoje, em virtude das suas condições objetivas de vida, muitas mulheres sequer conseguem escrever seus nomes e, por isso, não podem participar. Talvez ele tenha dito isso no sentido de expressar a preocupação de que aquilo que é considerado quota mínima acabe virando teto em função das prioridades estabelecidas pelas universidades. Mas independentemente disso, que pode ser um risco, entendo que é de fundamental importância - e compartilho inteiramente do pronunciamento de V. Exª - estabelecer essas quotas. Eu me lembro de que, no caso das quotas destinadas às mulheres, muitos diziam: “Isso é um debate paternalista. As mulheres são a maioria da sociedade, mais de 50%”. Talvez o ideal agora fosse estabelecer um percentual compatível com a população de negros no País, e não estabelecer uma quota aleatória. Nós nos identificamos com os dados apresentados por V. Exª, de que as normas estabelecidas na vida em sociedade tratam de forma diferente brancos e negros, homens e mulheres, e muitos dirão, também, ricos e pobres. Entretanto, a partir do momento em que se identifica que as normas estabelecidas da vida em sociedade tratam os negros de forma diferenciada, obrigatoriamente, a legislação tem de tratá-los de forma diferenciada, a fim de que aqueles que são tratados de forma diferente pela sociedade não sejam tratados de forma igual pela legislação em vigor. O apelo que V. Exª faz é de fundamental importância para que possamos aprovar, o mais rápido possível, este projeto. Sei que o tema que certamente pautará a conferência tratará menos das quotas a serem estabelecidas nos Parlamentos, embora seja um atraso gigantesco que ainda não tenhamos feito isso. Mas, hoje, a posição dos Estados Unidos é a de não ir à conferência porque tratará de um tema que o Brasil e várias nações terão de discutir, qual seja, a indenização em relação aos negros, especialmente aos familiares trazidos, todos sabemos como, em função da exploração do trabalho escravo. Com certeza, quanto a esse tema e ao assunto de fundamental importância que V. Exª traz a esta Casa, o Senado terá de pautar-se com a firmeza e o rigor necessários porque, além das estatísticas oficiais aqui apresentadas, V. Exª e eu sabemos que existe um cotidiano de dor, de humilhação e de sofrimento. Essa não é apenas uma realidade individual, mas são dados apresentados que mostram claramente a necessidade de o Parlamento estabelecer ações afirmativas para possibilitar que aquilo que é tratado de forma desigual perante a sociedade seja tratado de forma igual por meio da legislação em vigor. Portanto, quero louvar o pronunciamento de V. Exª, Senador José Sarney.

            O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Muito obrigado, Senadora Heloísa Helena, pelo aparte, que enriquece este debate e, ao mesmo tempo, reforça. a nossa convicção de que todos nós estaremos juntos nesta luta que agora se inicia. Até então, o problema do negro no Brasil foi muito discutido numa base romântica do amor, do ódio, da discriminação, da segregação e do sofrimento. Agora, temos que fazer algo concreto. Os pretos no Brasil vieram de muito longe e sua ascensão social percorreu um longo caminho. Mantêm essa situação difícil em que ainda estão e os que vivem hoje são herdeiros das misérias e dos sofrimentos do passado.

            O Brasil, mais do que todos os outros países onde foi observado o fenômeno da miscigenação, deve à África e aos negros que aqui chegaram. A cultura, no mundo inteiro, está cada vez mais globalizada. Dou como exemplo a cultura erudita - usando as palavras de Antônio Houaiss, que gostava de chamar a cultura erudita de cultura canônica - , cuja tendência é dissolver-se no processo da globalização, que transforma bens culturais em bens comerciais visando ao lucro. É o que se observa no mundo inteiro. O que salva os países, criando neles uma identidade nacional, é a cultura popular. Essa não se destrói, porque está massificada mas não é absorvida pelas leis do mercado que invadem também a cultura. Dentro desse processo de cultura popular, a identidade do Brasil no mundo é marcada pela cultura popular. Não somos marcados no mundo inteiro por grandes cientistas, por grandes escritores, por grandes gênios, mas, sem dúvida alguma, pela forte cultura popular que o Brasil tem, que provém do sincretismo religioso, que é a cultura dos movimentos populares - a cultura do carnaval, por que não? -, que não se esgota. Mas o que é a cultura do carnaval? É uma coisa importantíssima dentro da cultura brasileira que os outros países não têm, que é a cultura da alegria. E quem trouxe a cultura da alegria para o Brasil? Foi o preto. Ele, que não tendo mais nada que fazer no seu sofrimento, trazia as suas canções, muitas delas de lamento, que se transformaram nessa música tão poderosa que é a música popular brasileira. A cultura do futebol, que não se esgota no campo do futebol, mas que é a cultura da convivência, do brasileiro cordial que Sérgio Buarque de Holanda estudou. Portanto, verificamos que a contribuição dos pretos para essa cultura popular é decisiva.

            Certa vez, eu estava com Jorge Amado em Cabo Verde, na Ilha de São Vicente, quando vimos uma multidão com galhos na mão, cantando, naquela euforia de cores e alegria. Então, eu lhe disse: Jorge, olha de onde veio a cultura brasileira da alegria. Veio da África. Olha ali, ela está chegando. Há quanto tempo desembarcou no Brasil! Realmente constatávamos essa contribuição. Estou citando esses pontos sem entrar em detalhes de como ela se derramou em todo o País e formou, vigorosamente, a identidade nacional. O Brasil existe profundamente dentro dessas raízes feitas e trazidas pela cultura negra.

            É uma importante contribuição, e não é por acaso. Somos um país mestiço e, mais do que isso, o segundo país negro do mundo. Mas como podemos nos apresentar com esses índices e, ao mesmo tempo, com a pobreza que marca essa população? A maior discriminação que existe é a da pobreza, contra a qual todos devemos conjugar esforços.

            É hora de adotarmos discriminações positivas, como as preconizadas em projeto que apresentei em 1999. Pedia então que o debate sobre a matéria passasse a figurar com destaque na agenda social brasileira. A condenação do racismo deve ser acrescida de medidas concretas de promoção da raça negra que deve participar da liderança do país.

            Os negros não têm condições econômicas de competir com os brancos nas escolas superiores nem postos de trabalho. Sem acesso à educação estão condenados à segregação. O projeto que apresentei tem o objetivo de quebrar a inércia existente.

            Ele procura garantir uma quota mínima em favor da população negra para o acesso ao ensino superior, aos empregos e concursos públicos e aos contratos do Fundo de Financiamentos ao Estudante do Ensino Superior (FIES). O percentual de 20% representa um piso, e de maneira nenhuma um limite. Esperemos que no mais breve espaço de tempo a real igualdade de oportunidades o torne ultrapassado.

            É urgente um comportamento afirmativo que favoreça a correção das desigualdades. Segundo a Constituição Federal, em seu art. 3º, são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: “I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV -- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. 

            Somente uma postura ativa, de ações afirmativas, tanto por parte da sociedade quanto do Estado, poderá assegurar o sentido mais pleno do princípio da isonomia entre os cidadãos, expresso no art. 5º do texto constitucional e, no campo da educação, no princípio que prevê “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” (art. 206, inciso I).

            A própria Constituição Federal já prevê outras medidas de ação afirmativa. É o caso do tratamento “favorecido” dado às empresas de pequeno porte tanto no texto original de 1988 quanto no resultante da Emenda à Constituição nº 6/95, e da discriminação positiva do art. 37, inciso VIII, que prevê a reserva, em lei, de percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência.

            As medidas de ação afirmativa adotadas nos Estados Unidos como conseqüência da luta pelos direitos civis foram responsáveis por consideráveis avanços na participação de grupos minoritários nos mais diversos setores da vida daquele país. Apesar das resistências encontradas e das expectativas frustradas, os cidadãos negros exercem hoje um papel muito mais ativo no seio da sociedade norte-americana. Para dar somente um exemplo, nos quase quarenta anos que se seguiram à implantação do sistema de quotas o número de negros de classe média passou de 1 para cada 15 para 1 para cada 3.

            A igualdade de oportunidade não pode mais figurar apenas no campo jurídico. É preciso que ela se torne realidade e contribua para a construção de uma nação mais justa, na qual os benefícios do desenvolvimento sejam repartidos entre todos os cidadãos, contra qualquer tipo de preconceito, inclusive o de origem racial e étnica.

            A partir de agora, já que a discussão foi aberta e incluída na pauta pelo Presidente da República, o Congresso não pode ficar mais silencioso nem esquecer um projeto que não caminha já há dois anos.

            Peço ao Senado Federal e aos Srs. Líderes que iniciemos essa caminhada.

            O Sr. José Fogaça (PMDB - RS) - Concede-me V. Exª um aparte?

            O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Concedo um aparte ao Senador José Fogaça.

            O Sr. José Fogaça (PMDB - RS) - Senador José Sarney, não poderia ficar mais satisfeito do que agora ao ver V. Exª assumir essa posição de liderança a respeito de um tema tão candente, importante e - diria - tão decisivo para o futuro do Brasil. Recordo-me de que, nos anos setenta, a esquerda brasileira discutia esse tema com uma concepção, até certo ponto reducionista, de que a questão negra não era uma questão de ascensão social nem de formação de elites, mas sim de libertação e emancipação global de todos os negros do mundo e, claro, dos negros brasileiros. Havia críticas duras, amargas, incisivas ao governo de direita nos Estados Unidos, o governo Nixon, que havia implantado cronogramas para a entrada de cidadãos negros nas universidades. Com o passar do tempo, esses setores se convenceram e, trinta anos depois, está inteiramente provado que essas pessoas que defendiam as teses da discriminação positiva tinham razão. A formação de uma elite significa, sim, a abertura de uma porta para a emancipação social, econômica e política de toda uma etnia. Recentemente, li um livro de um líder negro americano, Karim Abdul-Jabbar, um grande atleta dos anos setenta, Perfis em Coragem Negra, que faz, de certa forma, uma analogia com o livro Perfis na Coragem, de John Kennedy, que o escreveu quando era Senador da República nos Estados Unidos. Karin Abdul-Jabbar procura, tal como fez Kennedy, apontar figuras, mesmo que individuais, de grande sucesso, grandes realizadores, grandes empreendedores, grandes intelectuais, grandes criadores, artistas e atletas da raça negra nos Estados Unidos. Perfis em Coragem Negra tenta sustentar a tese tão renegada nos anos 70 de que é preciso formar uma elite ou abrir espaço nas elites para a cidadania negra, porque é a única forma de romper os grilhões que se estendem por mais de cem anos de uma escravidão que parece nunca terminar. Quando vejo um líder como V. Exª assumir a posição de vanguarda no Parlamento, fico extremamente satisfeito, não poderia ficar mais satisfeito. Um pronunciamento de V. Exª aqui na tribuna do Senado não tem apenas repercussão nacional, tem repercussão internacional. Amanhã, jornais e noticiosos do mundo inteiro farão registro disso, como eu mesmo já pude observar em outras oportunidades em que V. Exª se manifestou. V. Exª está apontando um caminho para o Brasil. Sou um seguidor de V. Exª neste momento, porque sou um grande entusiasta, realmente sou uma pessoa que acredita, profundamente - pode haver alguém tão convicta, mas não mais -, que a discriminação positiva produz resultados, sim, e eles são favoráveis à emancipação de todos. O Ali Abdul Jabbar, em seu livro Profile in Black Courage, questiona como pode uma família negra que, por cem anos, não teve sequer um advogado, um sociólogo, um pedagogo, um professor de formação superior, ninguém com um acesso mínimo aos conhecimentos enfeixados nos livros das bibliotecas das universidades, como pode essa família ter acesso ao pensamento moderno, ao pensamento de vanguarda, ao pensamento libertário, à consciência de seus direitos sociais? E ele demonstra que nas famílias negras americanas, no momento em que havia o primeiro da família, em 70 ou 80 anos de história, a ter um diploma universitário, esse era uma pessoa que, nas reuniões familiares, tinha um papel exponencial na formação da consciência crítica, do papel do negro na sociedade, dos seus direitos de cidadania. Daí por que ele passou a defender, rompendo com uma visão dos anos 70 - ele que tem uma origem em uma formação política que renegava essa visão -, a necessidade da formação de uma elite negra, ou pelo menos do ingresso dos negros nas elites da sociedade americana. E é graças a isso que, hoje, embora ainda haja discriminação e até uma certa segregação, não se pode dizer que a sociedade americana não democratizou intensamente as relações raciais; não abriu espaços para a formação de empresários, advogados, empreendedores, líderes políticos, membros do Supremo Tribunal Federal que têm origem entre a cidadania negra. Fico eu extremamente satisfeito e faço este registro com grande entusiasmo. V. Exª está, com o pronunciamento que faz, produzindo um fato político de repercussão internacional. Tenho certeza que, a partir deste pronunciamento, a sociedade brasileira vai se voltar para o projeto de V. Exª e, quem sabe, vamos trabalhar nessa direção? Li, há pouco tempo, que, se essas cotas fossem consideradas inconstitucionais, uma das alternativas seria a idéia dos chamados objetivos e cronogramas, ou seja, as universidades cumpririam um cronograma e um objetivo de ter, em um determinado número de anos, a presença de pelo menos 20% de cidadãos negros, ou de origem na raça negra, entre os seus integrantes, entre os seus estudantes. Fico extremamente satisfeito com isso, porque não há nenhuma dúvida de que o caminho da mesmice, do marasmo que nós estamos vivendo no Brasil é o caminho da injustiça. A forma de romper com esses grilhões que aprisionam uma distribuição de renda injusta que mantém o mundo dos debaixo separado do mundo dos de cima, o caminho é o da discriminação positiva. V. Exª tem, neste momento, os nossos cumprimentos e, mais do que isso, o nosso apoio e a nossa solidariedade. Muito obrigado.

            O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Senador José Fogaça, o aparte de V. Exª, sem dúvida, é um aparte que tem, na expressão da sua satisfação, uma mão dupla, também minha de ter o apoio de V. Exª, que é um homem tão importante nesta Casa. Estudioso de todas as questões legislativas, sempre com o grande espírito público a que todos nós nos habituamos a admirar pela seriedade com que V. Exª enfrenta os problemas em debate, aqui, no Senado Federal.

            Estou entrando nesse debate, sem dúvida, como uma extensão, mais do que como político, mas como um homem que tem uma visão humanista, uma visão cultural. A minha causa parlamentar que eu me dediquei foi sempre a causa da cultura. Desde o tempo de Deputado Federal, os projetos que apresentei, sobre incentivos culturais, incentivos de toda natureza, o problema da formação de técnicos, de cientistas, em relação à Lei de Diretrizes e Bases, os problemas da educação e da cultura sempre constituíram a minha causa parlamentar. Essa causa, que é um pouco da extensão dessa visão, que não tem nenhum objetivo de natureza política, mas, realmente, como a extensão da pessoa humana que vê sob esse aspecto e tem visto esse problema.

            Acredito que também seja a posição de V. Exª e de todos nós nesta Casa. Eu gostaria que esse assunto fosse tratado justamente nesse nível. Não é um nível em que ninguém tem necessidade de ser, de liderar, de aparecer, de colocar o problema, mas que todos estejamos unidos em torno desse problema maior, que realmente necessita de uma reflexão mais profunda do que a que tem sido encarada com muita superficialidade.

            Sinto-me também um pouco vinculado, quando se trata da inserção dos negros na universidade, com acesso maior à educação, pelo meu Estado, que também possui profundas raízes negras. Recordo-me que Joaquim Nabuco fala disso. - Joaquim Serra, que era um grande intelectual e jornalista do Maranhão, no tempo do Império - fala que em 1888 era Joaquim Serra quem estava justamente ao seu lado e dizia ele que, sem Joaquim Serra, talvez a abolição não tivesse a dimensão da repercussão nacional, porque foi ele o grande propagador, ao lado de Joaquim Nabuco.

            Justamente Joaquim Nabuco, falando sobre esse problema, dizia que o assunto “versa sobre as aspirações, os sofrimentos, as esperanças, os direitos, as lágrimas, a morte de milhares e milhares de gentes como nós; que não é mais uma questão abstrata, - quero colocar justamente o ponto atual daquilo que foi dito há mais de cem anos -, mas concreta, e concreta no que há de mais sensível e mais sagrado na personalidade humana”. Essa questão concreta deve ter um tratamento objetivo do Parlamento e do Governo brasileiro.

            A questão da raça negra no Brasil deve ser encarada com objetividade e não ficar somente no aspecto étnico. O grave problema é o atraso social, a promoção humana que ficou estagnada, dando aos negros uma posição de marginalidade dentro de nossa sociedade. Estes números não representam somente abstrações. Eles significam realidades intoleráveis: a perpetuação da fome, da miséria, da ignorância, da marginalização social. O maior número de negros entre os mais pobres, os menos educados, os mais desempregados não acontece só porque descendam de pobres, de pouco educados, de desempregados: acontece principalmente porque são negros.

            Lembrarei outro fato do meu Estado. Aqui está o Senador Bello Parga, um homem estudioso da história, que há de se recordar da Balaiada, talvez o mais autêntico movimento popular, verdadeira revolução popular brasileira, porque não tinha líderes, nascendo espontânea entre índios, escravos e colonos revoltados em torno da injustiça social. Ela foi como um fogo, que começou a se propagar de tal maneira que Caxias foi obrigado a ir para o Maranhão, onde começou a sua carreira. Um dos focos da Balaiada era o Quilombo do negro Cosme, que era um velho. Por estranho que pareça, ele era um velho que, embora sendo um líder daquela revolução, chamava a si mesmo, na sua iluminação - vamos dizer assim - fanática, de o Imperador das Liberdades Bentevi, que era justamente o chamado partido dos pobres. O preto Cosme foi enforcado, no Itapicuru. Consta do arquivo público do Maranhão o auto da condenação do negro Cosme.

            O negro Cosme, num dos maiores quilombo do Brasil, com mais de 3.000 negros, teve a preocupação - a preocupação primeira no Quilombo era o caminho para a liberdade -, de “fazer uma escola, uma escola no Quilombo”, porque tinha noção de que não bastava a liberdade. Era preciso libertar-se também pela educação. Esse projeto foi o início da libertação da raça negra dos opróbrios da miséria pelos acessos que os homens brancos têm tido: a universidade, a educação e as elites brasileiras.

            O Sr. Casildo Maldaner (PMDB - SC) - V. Exª permite-me um aparte?

            O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB -AP) - Pois Não, Excelência.

            O Sr. Casildo Maldaner (PMDB - SC) - Recebi um telefonema de Santa Catarina e disseram: “Que aula!” “Que coisa linda o Presidente José Sarney na tribuna!”. V. Exª parece estar fazendo uma conferência.

            O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB -AP) - Gentileza de V. Exª e generosidade do povo de Santa de Catarina.

            O Sr. Casildo Maldaner (PMDB - SC) - V. Exª, historiador, poeta e escritor, ex-Presidente da República, V. Exª inspira paz. Por isso que eu tinha que dizer. Isso vem do norte e do sul do Brasil. V. Exª, com seu jeito, com sua sacrossanta paciência, integra em todos os sentidos. Procura - sem querer entrar nos detalhes do projeto de V. Exª - incluir os excluídos, quer sejam eles excluídos pela raça ou pela situação econômica ou pelo nível educacional. V. Exª citou o quilombo. Não se trata apenas da liberdade, mas também do saber, do aprender. Eu não poderia ficar calado neste momento. Precisava associar-me ao que disse o Senador José Fogaça. Senador José Sarney, o pronunciamento de V. Exª propõe não apenas a integração nacional, mas também a integração internacional. A propósito, V. Exª começou a integração do Mercosul. O pronunciamento que faz, sem dúvida alguma, terá repercussão. E não digo isso para promovê-lo, até porque V. Exª já está no topo. V. Exª já foi tudo. A proposta de integração, em todos os sentidos, que V. Exª apresenta, a palestra feita por V. Exª da tribuna com certeza enriquece o Brasil, integra-o, harmoniza-o, oferece paz.

            O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Senador Casildo Maldaner, agradeço a V. Exª as palavras. Não haveria melhor fecho para o meu discurso do que o aparte de V. Exª, que está inteiramente comprometido com o povo. Suas palavras demonstraram não só a amizade e generosidade de V. Exª, mas também a daqueles que lhe telefonaram e me revelaram um aspecto do povo brasileiro: a bondade, uma das virtudes que deve estar presente na política. Como bem disse V. Exª, na convergência poderemos encontrar soluções para os nossos problemas. Foi essa a mensagem que me trouxe seu aparte: que devo acreditar no consenso, na convergência, na conjugação de esforços para encontrar soluções.

            Muito obrigado.

 

            


            Modelo14/24/242:10



Este texto não substitui o publicado no DSF de 29/08/2001 - Página 18677