Discurso durante a 102ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Comentários à declaração da trigesima nona Assembléia Geral da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, realizada no período de 12 a 21 de julho passado, em Itaici/SP.

Autor
Amir Lando (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RO)
Nome completo: Amir Francisco Lando
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
IGREJA CATOLICA. POLITICA NACIONAL.:
  • Comentários à declaração da trigesima nona Assembléia Geral da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, realizada no período de 12 a 21 de julho passado, em Itaici/SP.
Publicação
Publicação no DSF de 29/08/2001 - Página 18702
Assunto
Outros > IGREJA CATOLICA. POLITICA NACIONAL.
Indexação
  • REGISTRO, ASSEMBLEIA GERAL, CONFERENCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB), OCORRENCIA, MUNICIPIO, ITAICI, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), COMENTARIO, DOCUMENTO, ANALISE, DADOS, DESIGUALDADE SOCIAL, BRASIL, MUNDO, IMPUNIDADE, CORRUPÇÃO, SETOR PUBLICO, AUMENTO, VIOLENCIA, DESEMPREGO, NECESSIDADE, URGENCIA, REFORMA AGRARIA, PRIORIDADE, AGRICULTURA, FAMILIA, APREENSÃO, CRESCIMENTO, DIVIDA PUBLICA, IMPEDIMENTO, POLITICA SOCIAL, CRESCIMENTO ECONOMICO, PERDA, SOBERANIA, OBEDIENCIA, CREDOR, CRITICA, INSUCESSO, PROGRAMA, PRIVATIZAÇÃO, CRISE, ENERGIA ELETRICA.
  • NECESSIDADE, CONSTRUÇÃO, PLANO, DESENVOLVIMENTO NACIONAL, DESCENTRALIZAÇÃO, MUNICIPIOS, PARTICIPAÇÃO, COMUNIDADE, CONSCIENTIZAÇÃO, SOLIDARIEDADE.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. AMIR LANDO (PMDB - RO) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil realizou, no período de 12 a 21 de julho passado, a sua 39ª Assembléia Geral. No final do encontro, em Itaici/SP, os representantes das 270 dioceses do País divulgaram uma declaração, que deve ser lida, refletida e divulgada. Trata-se de um grito de angústia, de perplexidade e, ao mesmo tempo, de esperança.

            Nada mais legítimo para falar das coisas do Brasil que uma Igreja com cinco séculos de evangelização, presente em todos os espaços e principais fatos históricos do País, das favelas horizontais aos arranha-céus, da cidade ao roçado, da mais avançada das tecnologias que formam cérebros, aos guatambus, que ainda calejam e deformam mãos.

            Ao refletir sobre a palavra destes pastores dos nossos tempos, que conhecem profundamente as suas ovelhas, sinto-me, humildemente, confortado. É que também procuro pautar a minha existência no exemplo do profeta Jeremias: “se saio para o campo, aí estão os transpassados pela espada; se entro na cidade, aí está o horror da fome”. Tenho denunciado a miséria e a fome de milhões de brasileiros, vítimas do descaso e da falta de vontade política para modificar essa triste situação.

            O texto da CNBB e o teor de meus discursos guardam semelhança não apenas porque vivenciamos uma mesma e cruel realidade, mas porque temos a mesma visão cristã de mundo. Um mundo que parece ter perdido a sua dimensão espiritual, em nome do dinheiro, do lucro, do supérfluo, da aparência, do ter.

            No caminho inverso da criação, os homens de hoje parecem ter criado um novo ser superior: o deus-mercado, onde tudo se vende, até mesmo a condição humana. A solidariedade deu lugar à competição globalizada, onde o consumo parece determinar os limites da felicidade. Não faltam, para tanto, as versões modernas dos vendilhões do templo.

            Como falar de globalização, se o planeta ainda convive com a dor da fome em 1,6 bilhão de pessoas, 50 milhões no Brasil? Que mundo globalizado é esse se apenas 11,59% da população, segundo o Banco Mundial, vivendo em 15,49% da superfície terrestre, concentra 65,72% de tudo o que é produzido? Que modelo de desenvolvimento é esse onde a esperança de vida da porção mais rica, como nos Estados Unidos e no Japão, ultrapassa os 80 anos, enquanto o lado mais pobre, como em Serra Leoa e em Zâmbia, não atinge os 40? Um japonês, ou um americano, que está nascendo neste instante, poderá viver até o último quartel do século, em 2082. O rebento de Serra Leoa não deve ultrapassar 2038! Num exercício de abstração, imagine-se os primeiros, se tivessem nascido há cem anos, teriam vivido até 1982, enquanto o segundo teria morrido em 1938! É bem verdade que o serraleoense não teria assistido aos horrores de uma guerra sangrenta em que japoneses e americanos se confrontaram. Mas, não teria, também, assistido a todos os avanços do conhecimento humano, contraditoriamente indutores dos rastros do homem na lua e do desenvolvimento dos computadores mais avançados, e que foram incapazes de transformar inteligências que lhe provessem um mínimo, para que lhe mantivesse vivo!

            O mundo tem cerca de 1,2 bilhão de pessoas que sobrevivem com menos de US$ 1 diário; 2,8 bilhões com menos de US$ 2. Dez milhões de crianças, que agora estão nascendo, não chegarão a comemorar as cinco primeiras primaveras, a quase totalidade devido a doenças preveníveis e curáveis. Numa estatística conservadora, são 113 milhões de crianças vivendo sem, nem mesmo, as primeiras letras, independente do alfabeto. 

            O Brasil pode ser considerado como síntese da situação mundial. Aqui se observa realidades semelhantes às do Japão, dos Estados Unidos, da Suíça ou da França, ao lado de outras que mais se parecem às de Serra Leoa, Zâmbia, Malavi ou Rwanda. A média da esperança de vida do brasileiro é igual à mundial, 67 anos, mas, ela escamoteia uma idêntica desigualdade de “morte por velhice antes dos 30, de emboscada antes dos 20 e de fome um pouco por dia”.

            A chamada oitava economia do mundo, rebaixada depois da desvalorização cambial de 1999, ocupava, naquele mesmo ano, a 73ª posição em termos de renda per capita e o 84º na paridade de poder de compra, abaixo do Chile, do Uruguai e da Argentina, por exemplo.

            A CNBB denuncia, também, “a corrupção cada vez mais disseminada, agredindo a consciência do povo, inclusive com o uso da mentira, e levando ao descrédito das instituições, ainda não eficientemente combatida e que continua sendo estimulada pela impunidade”.

            O roubo do sagrado dinheiro que falta na fila dos hospitais, na ignorância do analfabetismo e no relento de ruas e praças é o maior dos crimes. Como relator de uma comissão parlamentar de inquérito destinada a investigar desvios de dinheiro público, tive a oportunidade de conhecer as entranhas da corrupção. Guiado pela luz dos fatos, descobri a escuridão. Ela é como um câncer que, sorrateiro, mina resistências. Debrucei-me sobre aquele tumor social, não apenas na esperança de extirpá-lo, mas, principalmente, para prevenir contra suas possíveis causas. O meu relatório foi além da imputação fundamentada de culpa sobre o Presidente da República e propiciou uma profunda discussão sobre financiamentos de campanhas políticas e orçamentos públicos, para mim os principais motivadores do desvio de recursos que carregam o custo de oportunidade da indigência e da fome. O que eu não imaginava era tratar-se de um tumor maligno, que nem mesmo outras investigações, igualmente percucientes, foram capazes de destruir. Tal como o câncer, a corrupção necessita de diagnósticos precoces e imediato tratamento. E, isso, depende, como no caso do impeachment do Presidente, da conscientização e da participação da sociedade, ao primeiro sinal desse mal, que parece ter se transformado em doença transmissível.

            O documento denuncia “o aumento da insegurança, (que) leva à angústia diante do recrudescimento da criminalidade, da dificuldade de encontrar emprego, sobretudo para os jovens, ou medo de perdê-lo, da insuficiência do salário e da incerteza dos rumos do país. O crescimento da violência pode ser fruto do desespero de muitas pessoas, mas é também reação diante da impunidade, e conseqüência das injustiças em nossa sociedade e da inércia de enfrentá-las”. Para o lucro, não há diferença entre o homem e a máquina. Ambos se repõem. De que vale, para o mercado, se mais de 1,5 milhão de pessoas não possuem emprego e, conseqüentemente, condições mínimas de cidadania, apenas na grande São Paulo, se isso não ocorre em função de qualquer falibilidade do deus-mercado, mas porque eles foram substituídos por robôs e outras máquinas frias e obedientes a comandos cada vez mais especializados e excludentes?

            No início dos anos 90, o Programa das Nações Unidas Para o Desenvolvimento - PNUD previa que o desemprego seria o maior problema da década. Foi, e continua sendo neste início de novo século. Nem mesmo o castigo divino atribuído ao primeiro pecado, o da desobediência, pode ser cumprido. “Comerás o pão com o suor do seu rosto”. Para milhões de brasileiros, não há suor nem pão, porque não há trabalho. Os desempregados são cidadãos sem rosto. São desclassificados de olhos grudados nas páginas dos classificados. Um em cada cinco brasileiros já não encontra trabalho fixo há mais de um ano. Se o trabalho dignifica o homem, desempregado ele seria indigno? Ou indignado? Como diz a CNBB, indignado contra a impunidade, a insegurança, as injustiças e a inércia.

            O Brasil tem o quinto maior território e a quinta maior população de todo o planeta. Somos 168 milhões, mal distribuídos em um pouco mais de 8,5 milhões de km2 de terras benfazejas. Apesar de tamanha riqueza natural, 81% de todos os brasileiros já vivem no meio urbano. Foram atraídos pelas luzes da cidade, ou expulsos pela falta delas, no campo. E, aí, mais um tema coincidente com as preocupações da CNBB: a reforma agrária. Essa é uma questão sobre a qual debrucei longa parte de minha vida. Repetida ou reiterada, porque ela integra o meu próprio ser. Rechaçada, porque ela se defronta com o modelo concentrador, e põe em xeque as relações de poder.

            As primeiras tentativas de reforma agrária poderiam estar escritas no Velho Testamento. Elas remontam à velha Roma, nos tempos de Cassius, em 486 a.C., cuja história relata uma experiência de assentamento de vinte mil famílias. Já naquela época, essas tentativas já eram combatidas pelo Senado Romano, especialmente por Cícero, conhecido como orador dos ricos. Mas, a reforma agrária entrou efetivamente para a história nos tempos de Tibério e Caio Graco, em 126 a.C. A partir dali, ela foi, sempre, atrelada à idéia de desenvolvimento, de distribuição de riqueza e de justiça. Foi assim na história do desenvolvimento da França, da Itália, enfim, de toda a Europa. Mas, em se tratando de distribuição de riqueza e, sobretudo, da riqueza do solo, é evidente que a reforma agrária sempre foi, ao longo de toda a história, uma tarefa das mais árduas.

            Contraditoriamente, na nossa história mais recente, a melhor proposta foi discutida e aprovada pelo Congresso Nacional no início do regime militar, em novembro de 1964, com o chamado Estatuto da Terra. Foi, até aqui, o mais sábio tratamento reservado ao assunto, incorporando a melhor experiência dos povos civilizados e dando-lhe um tratamento enquanto pré-requisito para o desenvolvimento econômico e social do País.

            A reforma agrária é uma etapa que antecede o desenvolvimento com eqüidade. As nossas origens são evidentemente rurais. O sangue que corre nas nossas veias tem o cheiro da terra. O Estatuto se justificou, no início dos anos sessenta, porque a população rural já baixava para os 50%, um índice de urbanização considerado preocupante. Pois bem, nem os anos de arbítrio, nem a experiência democrática recente, foram capazes de propiciar a reforma que impedisse que, hoje, tenhamos menos de 20% da população vivendo no campo. Mas, aquelas placas indicativas de perímetro urbano, principalmente no mais interior do país, não significam necessariamente que, a partir dali, a população perdeu a sua tintura rural. Esses perímetros são, na verdade, a comunidade rural mais povoada do município. Essas populações, dos pequenos municípios, não necessitam voltar a habitar sobre as suas terras. Ao contrário, concentradas, permitem uma maior capilaridade na assistência do Estado, em termos de saúde, saneamento, educação e outros serviços sociais. Basta que tenham terra para nela trabalhar e dela extrair o seu alimento e o seu sustento.

            A distribuição de terras melhoraria todos os índices que fazem do País um dos piores do planeta, em termos de distribuição de renda e de riqueza. A terra propicia o alimento, o emprego, a renda, o mercado interno, a exportação, a qualidade de vida, a cidadania. A melhor distribuição da terra evita o inchaço das cidades, responsável maior pela violência urbana, uma verdadeira guerra civil não declarada. A terra tem, portanto, uma função social, política, econômica e cultural. Pena que, também contraditoriamente, a Constituição de 1988, chamada “Cidadã”, tenha dado marcha a ré no processo de reforma agrária. Até ali, a União poderia dispor da terra em 72 horas, após o decreto de declaração de interesse social. Depois, o estabelecimento do processo contraditório propiciou o que se poderia denominar embaraço constitucional, jogando por terra o que essa mesma terra poderia servir para resolver os nossos maiores problemas.

            É evidente que não se poderia esperar estatísticas diferentes. No passo das disigualdades regionais e pessoais de renda, a terra, cada vez mais, se concentra nas mãos de um pequeno número de produtores. Em 1996, último ano censitário, os 10,7% maiores estabelecimentos rurais detinham 80% do total da área. Destes, apenas 1% correspondiam a 45,11% de toda a superfície rural do País. Essa tendência à concentração fundiária traz no seu bojo, também, uma conseqüente diminuição da área cultivada com alimentos básicos e o aumento da área destinada a pastagens. A pata do boi, do grande proprietário, ocupou o lugar da plantação de alimentos, do pequeno produtor que, certamente, foi engrossar a estatística dos danos da urbanização. Em dez anos, as lavouras diminuíram 10,3 milhões de hectares, enquanto as pastagens aumentaram 25,6 milhões. Somente as culturas temporárias diminuíram algo como 8 milhões de hectares. Isso significa menor oferta de alimentos e mais desemprego. Comparando-se os dois últimos censos agropecuários, o País perdeu 910 mil toneladas de arroz, 616 mil de feijão e 2,6 milhões de trigo. Mesmo com a terra benfazeja, o Brasil tem, normalmente, que importar alimentos. No início dos anos 90, o País participava com 0,58% da importação de produtos da agricultura. No final da década, ultrapassou 1,5% o que, em termos de todo o comércio mundial, não deixou de ser significativo. Situação vergonhosa, se considerados nos nossos potenciais.

            Não é à toa, portanto, que a CNBB, complementarmente à reforma agrária, dá prioridade à agricultura familiar, no sentido de “estancar o êxodo rural em direção às periferias e às favelas”. É que a reforma agrária e a agricultura familiar guardam, obviamente, correlação positiva.

            O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA e a Organizações das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura - FAO divulgaram, recentemente, estudo dos mais detalhados sobre a importância da agricultura familiar no Brasil. O trabalho mostra que o desemprego e a fome seriam ainda mais contundentes sem os resultados da produção de base familiar que, mesmo ocupando 30% das terras, representa 85,5% do total dos estabelecimentos agropecuários, recebe apenas um quarto do total disponível para financiamentos rurais e contribui com 37,9% da produção nacional com o plantio, notadamente, de alimentos básicos. Além disso, a agricultura familiar é responsável por 76,9% das ocupações no meio rural.

            O estudo salienta, ainda, que, enquanto a agricultura empresarial obtém uma média de rendimento de R$44,00 por hectare, a agricultura familiar consegue R$104,00, sendo, portanto, mais produtiva. A pequena produção ocupa um trabalhador para cada 7,8 hectares, enquanto que, nos maiores estabelecimentos, são necessários 67,5 hectares, para gerar uma única ocupação. Sendo policultora, ela é mais imune às crises. Uma diminuição de 50% das receitas monetárias agrícolas acarreta, apenas, 5% a menos na taxa de ocupação total, porque a pequena produção de base familiar é mais flexível em termos de organização produtiva, em tempos de crise. Por definição, a produção familiar se sustenta em quatro premissas básicas: o desenvolvimento sustentável, a geração de emprego e renda, a segurança alimentar e o desenvolvimento local. Essas premissas podem constituir-se nos pilares básicos para uma política pública voltada para os maiores problemas brasileiros, hoje, conforme destaca a CNBB.

            Ainda segundo o documento, há, entre os bispos, uma preocupação com “o aumento assustador da dívida pública do Brasil, tanto externa quanto externa. Ela condiciona a ação do governo, submete a economia do país a interesses especulativos, impede políticas públicas que atendam às necessidades básicas da população, inviabiliza investimentos necessários e torna setores econômicos quase insustentáveis”.

            A dívida pública líquida brasileira decuplicou nos últimos dez anos. Hoje, os mais de R$ 600 bilhões já ultrapassaram a metade de tudo o que o País produz, somados os bens e os serviços, em um ano. Como esse montante impagável foi atingido sempre foi, para mim, uma grande incógnita, encaminhei, há dois anos, proposta à Mesa do Senado Federal, para a criação de uma comissão especial para investigar a composição da dívida da União, dos Estados, dos municípios e das estatais. O documento ainda dormita em alguma prateleira da Casa, embora, de lá para cá, tal montante tenha sido acrescido em algo como R$ 200 bilhões. A minha proposta se justifica ainda mais hoje, portanto. Algumas iniciativas semelhantes da sociedade civil procuram sanar essa lacuna do Congresso Nacional. Já foi realizado, inclusive com a participação de setores da Igreja, o Plebiscito da Dívida, em que o melhor resultado foi a conscientização da população sobre um tema que não passa das reuniões de pauta do noticiário nacional. A segunda etapa do trabalho é, exatamente, a auditoria da dívida. Quem sabe o Congresso Nacional possa servir-se da carona propiciada, em bom tempo, pela sociedade civil.

            A dívida pública é muito mais que um montante que se avoluma numa constante. Ela, como diz a CNBB, é um instrumento de submissão do País aos organismos credores. Se, por um milagre divino de multiplicação, o Brasil obtivesse o total do dinheiro para “zerar” o seu débito, esse não seria, com certeza, o melhor desejo dos credores. Além de um impacto “negativo” no mercado financeiro mundial, estariam desatados os grilhões da dependência que submetem países onde ainda se concentram potenciais de espoliação.

            Os governos que se sucedem nada mais são que meros gestores, a serviço dos credores. Os escalões hierárquicos da República são algo assim como diretores e protagonistas de um espetáculo cujo texto se produz nos acordos internacionais, em particular com o Fundo Monetário Internacional. Quebra-se o País através de uma política de abertura unilateral de mercados e de uma ciranda financeira improdutiva para, depois, acenar-se com “ajudas”, cujo aval são, exatamente, os recursos estratégicos que faltam aos países ditos desenvolvidos. Quebra-se o México, por exemplo, para que os Estados Unidos possam comandar uma ajuda de US$50 bilhões, garantidos pelo petróleo mexicano, exatamente no momento em que as revistas mais especializadas no assunto dizem que, mantido o consumo atual, as reservas americanas não seriam suficientes para os próximos cinco anos. Por que o consciente e politizado contribuinte americano continuaria concordando com o custo real do barril de petróleo que ele consome, algo como US$100, em função das despesas com a Armada no Golfo, se há jazidas provadas em seus quintais? O que se dirá, em futuro que parece se avizinhar, dos nossos recursos minerais mais estratégicos para o avanço da tecnologia mundial? Da biodiversidade amazônica? Da nossa soberania?

            O pagamento do principal e dos serviços da dívida tornou-se variável independente nos orçamentos públicos. Mais do que isso: ele é um dado; variáveis e, cada vez mais escassas relativamente, são as demais despesas do governo, independendo de sua necessidade e prioridade. Cortam-se ou contingenciam-se investimentos cruciais para o desenvolvimento do país, jamais o pagamento aos credores. É quase uma religiosidade fundamentalista, embora o montante da dívida permaneça, sempre, ascendente.

            De cambulhada, também em nome do pagamento da dívida, as privatizações. Esse é, com certeza, um capítulo obscuro de nossa história que ela mesma deverá cobrar. O tempo tem cuidado de demonstrar, passo a passo, a derrocada dos objetivos iniciais do Programa Nacional de Desestatização, o PND. Dois deles chamam, em especial, a atenção. O primeiro, exatamente o que trata da dívida: “contribuir para a redução da dívida pública, concorrendo para o saneamento das finanças do setor público”. Não sei se o assunto merece comentários adicionais, mas parece bastar a constatação de que a Companhia Vale do Rio Doce, multinacional de propriedade do povo brasileiro, orgulho e símbolo nacional, foi vendida, na época, por um valor aproximado de uma quinzena de pagamento dos serviços da nossa dívida pública. A Companhia foi avaliada, como as demais, pelo método de fluxo de caixa descontado, tendo sido antecipados os fluxos de receitas e despesas de suas 26 empresas, incluindo o minério de ferro suficiente para três séculos, as minas de ouro e de outros minerais altamente estratégicos. Pois bem, em apenas três anos de privatização, os novos donos já somaram lucros líquidos que ultrapassam, com muita sobra, os preços do leilão. O segundo objetivo, que também merece atenção no PND, é o de “permitir que a administração pública concentre seus esforços nas atividades em que a presença do Estado seja fundamental para a consecução da prioridades nacionais”. Que prioridades nacionais? A saúde? A segurança pública? O emprego? A qualidade de vida da população? A cidadania? A soberania? Ou, tudo o que tem se desgastado, principalmente nestes tempos de privatização?

            Em suma, entregou-se o patrimônio para que se pagasse a dívida e para que se melhorassem as condições de vida da população brasileira. Se tais objetivos tivessem sido atingidos, talvez não restassem apreensões, nem a mim, nem à CNBB, nem ao povo brasileiro. As privatizações fazem parte de um processo de desmonte do Estado Brasileiro, para que ele se torne indefeso, frágil e submisso aos interesses exógenos.

            Mesmo os números alardeados pelo BNDES, órgão gestor do programa de privatizações, têm recebido as merecidas correções. Segundo o banco, no período de 1989 a 1999, as vendas das estatais geraram receitas da ordem de US$74,5 bilhões, além da transferência de dívidas para o setor privado, que somam US$18.1 bilhões. A Unicamp estimou os gastos do governo com essas mesmas privatizações e atingiu uma cifra de US$80 bilhões, incluindo demissões, investimentos para preparação das empresas para os leilões, financiamentos subsidiados para os adquirentes e aceitação de moedas podres nos leilões. Isso sem contar as demissões de antigos empregados, no total 546 mil e a farsa dos ágios, que veio a público somente dez anos depois, através do próprio Secretário da Receita Federal, dando conta de que eles foram descontados do imposto de renda dos novos proprietários. 

            Também no passo da dívida pública e das privatizações, a crise energética. Para a CNBB, ela “que despertou o povo para uma salutar atitude de austeridade, reforçou as dúvidas sobre a política de privatizações e começa a ter graves conseqüências nos níveis de emprego e atividade econômica, minando a confiança na administração pública”.

            A crise energética é, com certeza, o resultado mais visível de todos os desmandos do programa de privatizações e da decisão orquestrada de desmonte do Estado Brasileiro. Ela é o resultado cruel de todos os descaminhos já antecipados por uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, em 1993, da qual fui também o Relator, quando ainda não haviam sido alienadas as empresas de maior porte. A crise energética é fruto de erros de avaliação, de decisão, de modelagem, e de outros tantos que povoaram a sanha privativista, principalmente nos últimos anos.

            Nos Estados Unidos, a energia hidroelétrica permanece de propriedade, quase que integralmente, das Forças Armadas. Isso derruba qualquer tese que possa tentar diminuir a importância estratégica da atividade. Há estudos que comparam a nossa hidroeletricidade ao petróleo para a Arábia Saudita. Imagine-se, então, os interesses das grandes corporações pelas nossas usinas. Mais do que isso, pelas nossas águas, abundantes aqui, enquanto já escassas em grande parte do globo. Se a avaliação mais corrente é a de que haverá, em futuro não muito distante, guerras pela água potável, por que essas corporações não iriam antecipar o mando sobre as grandes reservas mundiais?

            Não há como justificar a dita surpresa do governo brasileiro com a escassez nos reservatórios. Nem a decepção com responsabilidades atribuídas a São Pedro. Descaso ou premeditação, a falta d’água para movimentar turbinas segue o mesmo ritual de um processo de desmonte que, hoje, já não atinge tamanha legitimidade, ainda que tenha sido forçada, desde o início, pelos elefantes da propaganda do “Estado no lugar certo”.

            Há interesses embutidos na falta d’água. Para gerar excesso de demanda. Para que se aumentem os preços. Para que sobre energia no mercado atacadista, vendida depois a preços decuplicados. Para que se justifiquem investimentos privados na geração, na transmissão e na distribuição de energia. Para que sejam necessários novos investimentos públicos, não captados nos modelos de avaliação para os leilões. Para que sejam saneadas as chamadas “partes podres”, igualmente para que sejam mais promissoras aos adquirentes. Para outros interesses subjacentes, como os incrustados no mercado de gás. Para se atingir o ápice do modelo negociado com organismos internacionais. Ou, quem sabe, a soma de todos esses interesses, porque se trata de uma história com final sobejamente conhecido e para a qual a população já dá sinais de que não vale a pena ver de novo.

            A Amazônia também mereceu destaque nas preocupações de Itaici. “(ela), com toda a sua complexidade, do ponto de vista da ecologia, da biodiversidade e da sua importância geopolítica, torna-se uma questão nacional, a ser seriamente assumida por todos”. Nas privatizações, estamos perdendo a bandeira do “petróleo é nosso”. Temo que, mais ou menos dias, tenhamos que desfraldar, com todo o sentimento de Pátria herdado de nossos ancestrais, inclusive com seu sangue, o lábaro da Amazônia nossa, indivisível e soberana. Se tamanha a dívida, se entregue todo o patrimônio estatal, o que restará para saciar a sanha dos credores, senão a nossa geografia?

            A CNBB enumera, ainda, outras preocupações, como o perigo das drogas, o crime organizado, o desrespeito com as populações indígenas, a situação das prisões, “onde irmãs e irmãos nossos se vêem relegados a condições desumanas que nada ajudam para a sua recuperação e reinserção na sociedade”. Poderia ter incluído, ainda, a questão das demais minorias, dos excepcionais, dos idosos, dos sem-teto, dos demais sem-nada, vítimas de um modelo de natureza nítida, típica e exclusivamente econômica.

            Mas, o clero vê, também como eu, perspectivas e esperanças. A primeira proposta é a mesma que venho debatendo durante todos estes anos de vida pública: a construção de um projeto de desenvolvimento verdadeiramente nacional, a partir da valorização de todas as nossas potencialidades e de nossas vantagens comparativas. O País possui um mercado interno de quase 170 milhões de consumidores, o equivalente a pouco menos de cinco Argentinas, ou 44 milhões a mais do que toda a população japonesa. O Brasil ostenta, ainda, todos os microclimas do planeta, onde se pode plantar todas as culturas, durante todo o ano. Tem a maior floresta do mundo, o rio mais caudaloso, terras abundantes e altamente produtivas, enfim, todas as condições necessárias para um desenvolvimento auto-sustentado.

            Sem esse plano de desenvolvimento nacional, não há como suprir a falta atual de políticas agrícola e industrial. Sem esta, não há como manter um programa de privatizações fora de contexto, sem uma definição clara de que setores devem permanecer nas mãos do Estado, seja porque são considerados estratégicos para a soberania nacional, seja para que permitam alavancar efeitos multiplicadores em atividades de interesse nacional. Sem uma política agrícola, não há como definir programas de exportação e, principalmente, de substituição de importações, porque, apesar de tamanhas potencialidades, o País ainda busca, vergonhosamente, produtos básicos no mercado externo.

            Embora de abrangência nacional, tal plano deve partir de uma perspectiva local. É no município que devem ser construídas as alternativas. É uma falácia a afirmação de que a globalização destruiu as culturas locais. Ali, as resistências são fortes e se estruturam na diversidade. Ainda mais porque não haverá plano se mantidas as relações de poder de cima para baixo, como nos nossos dias. É nos municípios onde se encontram as células de mudança, a partir do debate de temas que mais de perto dizem às comunidades.

            O desenvolvimento local não significa o descarte do planejamento nacional. Ao contrário, trata-se, na verdade, do resgate da compreensão horizontal, integrada e multidisciplinar que define o próprio planejamento. O planejamento nacional, nos últimos tempos, tem se mostrado míope e compartimentalizado, como se os diversos aspectos da realidade se revelassem de forma estanque e, assim, tivessem que receber um tratamento unicamente verticalizado. O homem perdeu, no âmbito das políticas públicas, o seu papel de sujeito da história e passou a ser tratado enquanto objeto de tratamento diferenciado, dependendo da área de atuação governamental. Ele é o doente para o Ministério da Saúde, o analfabeto para o Ministério da Educação, o empresário para o Ministério do Desenvolvimento, o inativo ou o carente para a Previdência Social, e assim por diante. Da mesma forma, planejamento agrícola, quando há, está descolado da política industrial que, por sua vez, não necessariamente se integra com a política tecnológica, e também assim por diante.

            O local, entendido como o município ou a comunidade, teima em se manter integrado. Ali, o homem é, ainda, o sujeito, e não o objeto da história. A compreensão desse homem plural, que respeita e que se integra como a parte mais importante do meio ambiente, é que vai tornar possível o resgate de um planejamento não unicamente economicista, para se incorporar, necessariamente, os chamados “capitais da sociedade”, o natural, o empresarial, o humano, o social, o cultural, o político, o institucional. É dali que deve emergir o planejamento nacional, e não o contrário. A visão economicista de mundo, com lente centrada no aumento da produção e da riqueza e na exploração predatória dos recursos naturais, resultou num Estado unicamente curativo, indefeso, frágil e incapaz de gerir os problemas sociais. Mais do que isso, incapaz de administrar os próprios problemas econômicos, ao produzir uma dívida que destrói qualquer capacidade desse mesmo Estado de definir outras prioridades de planejamento. O país das diversidades não pode se submeter a um pensamento único, vertical, economicista e, sobretudo concebido de fora para dentro.

            A mídia, por sua vez, tem cuidado de uniformizar os discursos. É ela quem tem procurado determinar o que pensar, o que comprar, em quem votar. Vende o supérfluo, nos três casos. E recebe por seu trabalho, no caixa dos mantenedores. O consumidor não faz o que manda a mídia. Ele é hipnotizado por ela. E, como tem como santo-padroeiro exatamente o deus-mercado, ela procura embutir a idéia de que o supérfluo é necessário, o consumo é sinônimo de felicidade e o ter é tão ou mais importante que o ser. É que o mundo de hoje ainda é dominado pela economia. Tudo se vende, até mesmo a ética. É isso que tem que ser mudado. Não se necessita de um plano de desenvolvimento econômico no sentido restrito dado pelos economistas. O desenvolvimento deve incluir todas as dimensões, sobretudo a humana. De nada valerá qualquer plano, se ele não levar em conta a felicidade humana, de todos. Não há, por exemplo, como enlevar o sucesso da estabilização econômica com a convivência de quase um terço da população faminta e indigente.

            A sociedade organizada, e a Igreja em particular, tem um papel fundamental nesta retomada de consciência. Para reinventar o País, é necessário resgatar valores que se perderam no acirramento de disputas. Na contramão da pregação massificadora da mídia, a criação de formas locais de diálogo, muito próximas do quotidiano, e a partir do conceito mais profundo de humanismo e de solidariedade. Como diz a CNBB, “é preciso recolocar a pessoa humana, imagem de Deus, como centro de referência de toda a organização social. A economia, o trabalho, a ciência e a técnica devem estar a serviço da pessoa, e não a pessoa a serviço destas realidades. Não se pode, jamais, perder de vista o progresso ético e espiritual da pessoa humana”. 

            Que assim seja!

            Era o que eu tinha a dizer.

 

            


            Modelo14/26/2412:53



Este texto não substitui o publicado no DSF de 29/08/2001 - Página 18702