Discurso durante a Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Homenagem pelo centenário de nascimento do arquiteto e urbanista Lúcio Costa. (como Líder)

Autor
Artur da Tavola (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RJ)
Nome completo: Paulo Alberto Artur da Tavola Moretzsonh Monteiro de Barros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem pelo centenário de nascimento do arquiteto e urbanista Lúcio Costa. (como Líder)
Publicação
Publicação no DSF de 28/02/2002 - Página 1025
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, CENTENARIO, ANIVERSARIO DE NASCIMENTO, LUCIO COSTA, ARQUITETO.
  • SOLICITAÇÃO, TRANSCRIÇÃO, ANAIS DO SENADO, ARTIGO DE IMPRENSA, JORNAL, CORREIO BRAZILIENSE, DISTRITO FEDERAL (DF), HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE NASCIMENTO, LUCIO COSTA, ARQUITETO.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB - RJ. Como Líder. Sem revisão do orador) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o dia de hoje marca os 100 anos de Lúcio Costa, o homem que planejou Brasília. Em nome do Governo Brasileiro, que represento nesta Casa, nesses cinco minutos que me cabem como líder, quero dirigir uma palavra de homenagem e lembrança a Lúcio Costa.

            Lúcio Costa é muito menos lembrado em relação a Brasília do que a meu ver devera. Como por demais, as grandes obras e os grandes homens são sempre menos lembrados do que o tamanho e o valor de sua dimensão.

            Poucas pessoas pensam, ou analisam, o conteúdo profundo da concepção da cidade de Brasília, que, a meu ver, é o aspecto mais significativo da obra de Lúcio Costa nesta cidade. Encantados todos nós, como devemos ficar, com a beleza arquitetônica, saída do gênio de Oscar Niemeyer, nem sempre temos os olhos voltados para o que é hoje, 41 anos depois, o resultado de uma concepção, que, se estivesse errada a seu tempo, já teria em Brasília criado resultados extremamente negativos, que, possivelmente, a própria população deles não se dê conta na medida em que esses resultados negativos não existem. Os resultados negativos existentes na vida de Brasília decorrem da crise social brasileira.

            A concepção de Brasília une uma visão socialista do mundo e que depois foi perpassada pelos anos em que alguma forma de sociedade capitalista se mesclou à cidade. Graças a isso, Brasília tem na sua concepção um sentido de integração social como raras cidades - digo do ponto de vista da concepção urbanística. Na relação espaço verde e área construída, Brasília tem uma das melhores relações dentre as cidades existentes no mundo, dentre as grandes cidades. Brasília tem, criou e gerou, gradativamente, um comportamento de cidadania que é fruto, sim, do seu bom nível cultural médio, um dos melhores do País, mas é também fruto de uma concepção de cidade que o permitiu. Posso dar um exemplo aparentemente comezinho do que significa essa consciência de cidadania existente em Brasília, decorrente também e principalmente, talvez, da sua concepção urbanística. Já vi várias vezes nesta cidade carros transportando pessoas ilustres da República ou muito ricas, que pararam diante de uma faixa, e uma humilde lavadeira ter prioridade de atravessar a rua. Fato que pode parecer comezinho e banal, numa cidade que se habituou a uma vida comunitária, mas é raro no mundo entre as cidades extremamente habitadas, que são dominadas pelo automóvel.

            Brasília, portanto, criou, nesses anos, uma concepção de mundo que merece a nossa reflexão, e isso se deve ao gênio de Lúcio Costa, ao conceber, na volta de uma viagem à Europa, com lápis, papel escuro e lápis de cor, o projeto que dessa forma apresentou, dentre 25 projetos que concorreram para a escolha do projeto ideal; e, afinal, foi o vencedor.

            A concepção de vida desta cidade é, portanto, hoje, um patrimônio da humanidade; é a concepção de vida de uma cidade concebida para um mundo sem distâncias sociais significativas, de integração entre seus vários segmentos, de amor e respeito pela sua cidade. Inclusive, os habitantes de Brasília vivem de maneira absolutamente completa no seu dia-a-dia, no seu labor cotidiano.

            Com algum conhecimento da vida brasileira, posso afirmar - e V. Exªs são também testemunhas - que Brasília é uma das cidades mais civilizadas do Brasil. E acredito que muito disso derive do fato de ser uma cidade planejada, que, dentre as cidades planejadas do mundo, as capitais planejadas - e não são mais de dez -, faz-se uma cidade exemplar.

            Por tudo isso, num limitado tempo que me concede o Regimento da Casa, quero lembrar, no dia do Centenário de Lúcio Costa, em nome do Governo brasileiro, a profunda gratidão que o povo do Brasil tem por esse que foi um dos maiores urbanistas do seu tempo, um homem de espírito, um homem de alto nível cultural.

            Para concluir, quero cumprimentar o Correio Braziliense, que faz, no dia de hoje, um caderno especial sobre os 100 anos de Lúcio Costa. Não se trata apenas de mais um caderno especial de jornal, mas um caderno especial de alta qualidade, pela matéria que traz, pelo grau de pesquisa que apresenta e pela qualidade da sua síntese.

            Peço então à Mesa, Sr. Presidente, a transcrição, nos Anais da Casa, deste suplemento especial do jornal Correio Braziliense, um dos principais órgãos de imprensa desta Capital, que existe desde a sua fundação e que melhor do que ninguém sabe e pode avaliar a importância desta data para que não caia no esquecimento.

            Muito obrigado.

 

*********************************************************************************

DOCUMENTO A QUE SE REFERE O SR. SENADOR ARTUR DA TÁVOLA EM SEU PRONUNCIAMENTO.

(Inserido nos termos do art. 210 do Regimento Interno.

********************************************************************************

            Lucio Costa - 100 anos

            Conceição Freitas

            Da equipe do Correio

                        
            Claudio Versiani
             
             

            Já perto dos 80 anos, ele fez um novo amigo, seu vizinho, jovem estudante de Filosofia no Rio de Janeiro. Um dia, o velhinho de bigodão deu uma aula de arquitetura clássica para o rapaz que, mais tarde, comentou com uma colega o quão sábio era aquele homem. ‘‘Você não sabe quem é? É Lucio Costa!’’, surpreendeu-se a moça. Foi quase sempre assim nos seus 96 anos. Discreto e muitas vezes recluso, o urbanista e arquiteto que desenhou Brasília fez muito mais do que parece aos olhos do Brasil. Fundou a moderna arquitetura brasileira de um jeito diferente das demais. Em vez de negar o passado, recuperou o melhor da tradição colonial brasileira. No início da década de 30, ajudou os jovens artistas que revolucionaram as artes plásticas; um pouco mais adiante, e por longo tempo, empenhou-se na preservação do patrimônio histórico nacional. É considerado o filósofo da arquitetura brasileira e reverenciado pelos mais importantes profissionais do país -- pelos iniciantes também. Em 1957, venceu os 25 candidatos ao concurso do Plano Piloto de Brasília com um projeto que, de início, constrangeu o júri, pela apresentação tosca -- desenhado a lápis de cor e tinta nanquim. Guardou, por 44 anos, a dor de ver sua mulher morrer num acidente com o carro que ele dirigia. Mas continuou colecionando soldadinhos de chumbo. Lucio Costa faria cem anos hoje. Só agora o país descobre que, mais do que um arquiteto, ele foi um pensador da identidade brasileira.

            O mestre silencioso

            O urbanista que inventou Brasília casou o moderno com a tradição colonial brasileira, revolucionou as belas-artes, pensou o Brasil e a arquitetura e viveu com discrição e uma grande dor.

            Com seu jeito recluso, Lúcio Costa criou cidade, bairro, prédio, casas e cuidou da preservação do patrimônio brasileiro.

            Sentado na velha cadeira de madeira e couro, Lucio Costa assistia ao noticiário da tevê, no apartamento onde morava desde 1940, de frente para o mar do Leblon, no Rio de Janeiro. Silencioso, como de hábito, ele via as imagens da Praça dos Três Poderes naqueles agitados dias que antecederam o impeachment de Fernando Collor. Gente muito moça, mais nova que a cidade, pintou a cara, ocupou a praça e ajudou a afastar o presidente. Maria Elisa, filha mais velha daquele arquiteto já velhinho, comentou: ‘‘Pai, deve ser um privilégio ter a possibilidade de viver isso que o senhor está vivendo agora... Ver a cidade que o senhor inventou funcionando, as coisas acontecendo.’’ Por trás do bigodão branco, apareceu um sorriso quase imperceptível, porém pleno de orgulho. A filha sabia que aquele esboço de riso já era por demais significativo para o homem de longos silêncios, avesso ao espetáculo, inimigo do espalhafato, e até por isso, personagem pouco conhecido da maioria dos brasileiros, mesmo daquela parcela instruída e atenta. Há até quem pense que Brasília é invenção de Oscar Niemeyer ou dos dois. Não é. Niemeyer fez os principais prédios públicos da nova capital. Mas o Plano Piloto, com suas superquadras, Esplanada dos Ministérios, parques e jardins, comércios e setores localizados, tesourinhas, Eixinho e Eixões, tudo nasceu do traço de Lucio Marçal Ferreira Ribeiro de Lima e Costa, brasileiro nascido em Toulon, na França, a 27 de fevereiro de 1902, registrado no consulado brasileiro em Marselha. E que hoje faria 100 anos. Antes de inventar Brasília, Lucio Costa já tinha um currículo de muitos outros feitos. Fundou a moderna arquitetura brasileira e se empenhou na preservação do patrimônio arquitetônico nacional. Casou modernidade com antigüidade; quase sempre preferia a reclusão, mas quando abria as portas mostrava o quão produtiva pode ser a discrição. Foi urbanista, arquiteto, pensador do Brasil, de sua arquitetura e de seu patrimônio, professor por breve tempo. Criou uma teoria que combina humanismo e tecnologia. Pintou, escreveu, desenhou, criou roteiro de filme, rabiscou caricaturas, projetou cidade, bairro, prédios, casas e móveis, colecionou soldadinhos de chumbo, fez amigos, filhas, netos, bisnetos. E amou Leleta. Por causa desse amor, ele não veio à inauguração de Brasília. Na quinta-feira, 21 de abril, dia de festa na novíssima capital, Lucio Costa acordou especialmente triste, com saudades da mulher que havia morrido seis anos antes. Era uma dor talvez intermitente, talvez ininterrupta -- ele dirigia o carro no acidente em que Julieta Guimarães morreu, na estrada Rio-Petrópolis, em 1954. As filhas, Maria Elisa e Helena, vinham no banco de trás.

            O homem que riscou os dois eixos como um sinal da cruz não se deixou perder na dor. Depois de criar uma cidade, ele fez o projeto de urbanização da Barra da Tijuca, o Pavilhão do Brasil na 13ª Trienal de Milão, participou de concurso para construção da nova capital da Nigéria (que não foi adiante), projetou casas, produziu o documento Brasília Revisitada, no qual estabelece as coordenadas para o crescimento da cidade. Escreveu o autobiográfico Lucio Costa, Registro de uma Vivência, livro ao qual o homem impoluto se dedicou como se fosse um menino e seu álbum de figurinhas. Redigiu, escolheu textos, fotos, disse como queria a concepção gráfica, editou.

            Antes de desenhar Brasília, ele liderou a equipe de cinco arquitetos (Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão, Ernani Vasconcelos e Jorge Moreira) que construiu o primeiro grande marco da arquitetura moderna brasileira. O grupo projetou, em 1936, o edifício do Ministério da Educação e Saúde Pública, atual Palácio Gustavo Capanema, no centro do Rio de Janeiro. Foi o primeiro prédio modernista em escala monumental, em todo o mundo. Inaugurou o uso, em larga escala, do brise-soleil, as lâminas móveis que regulam a luminosidade, invenção do arquiteto franco-suíço Le Corbusier, aplicada mais tarde nos prédios da Esplanada dos Ministérios.

            A obra monumental e moderna foi a vitória que Lucio Costa buscava desde o começo da década de 30. Em 1929, folheando casualmente a revista Para Todos, parou os olhos numa casa modernista, projeto de Gregori Warchavchik, arquiteto ucraniano precursor do modernismo no Brasil. Lucio Costa gostou do que viu e daí em diante traçou a ponte que o levaria à arquitetura moderna.

            Pouco tempo depois, cada vez mais cansado do ecletismo que dominava a arquitetura da época (tendência que misturava estilos antigos e produzia prédios excessivamente enfeitados), ele foi chamado a reformar a Escola Nacional de Belas Artes, no Rio, então enrijecida pelo academicismo rançoso. Pressionado pela reação conservadora, ficou só dez meses na escola. Mesmo assim fez estremecer as paredes do Salão Nacional de Belas Artes de 1931 ao convidar, pela primeira vez para um evento oficial, artistas modernistas até então à margem do establishment da cultura brasileira. Vieram Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Victor Brecheret, Flávio de Carvalho, Cícero Dias, Guignard, Portinari, Di Cavalcanti, a vanguarda das artes plásticas da época.

            Nem sempre a vida de Lucio Costa foi moldada por disputas, derrotas e vitórias. Às vezes, interrompia o percurso profissional e recolhia-se em si mesmo. Num desses períodos, de 1932 a 1936, que ele chamou de chômage (em francês, desemprego), rejeitou todos os projetos que lhe pediam. Os clientes queriam casas de‘estilo’’, a tal mistura eclética de tendências que ele passara a abominar. Já contaminado pelas idéias modernistas, aproveitou o período para estudar a fundo a obra dos fundadores da arquitetura moderna -- o germano-norte-americano Walter Gropius, o alemão Mies van der Rohe e, sobretudo, o franco-suíço Le Corbusier, ‘‘porque abordava a questão no seu tríplice aspecto: o social, o tecnológico e o artístico, ou seja, o plástico na sua ampla abrangência’’, como ele mesmo escreveu. Saiu do chômage inteiramente moderno (ele detestava a expressão modernista, considerava-a pernóstica e de sentido suspeito).

            Dez anos antes, entre 1926 e 1927, foi o amor que o afastou da vida profissional. Dividido entre a paixão por duas primas, duas Julietas -- Lieta e Leleta --, Lucio Costa parte para uma viagem à Europa, aproveitando o prêmio que recebera como aluno da Escola Nacional de Belas Artes.

            Àquela época, o futuro inventor de uma cidade modernista era um arquiteto recém-formado e bastante interessado em antigüidades. Em Lisboa, quase perde o navio porque entreteu-se num antiquário. Quando tentou voltar a bordo, as escadas já haviam sido suspensas, a âncora levantada. O jovem Lucio Costa teve de subir pela escada de corda, esforçando-se para não perder o prumo e conseguir alcançar o peitoril do navio. Foi aplaudido pela tripulação e pelos passageiros que assistiam a seus atropelos no mar.

            Episódios que devem tê-lo ajudado a se distrair das dúvidas de amor. De volta ao Rio de Janeiro, Lucio Costa escolheu Leleta, com quem se casou em 1929, numa cerimônia simples, em sua casa no Leme. ‘‘Nunca fui dado a formalidades e cerimônias’’, diria mais tarde. Foram morar na casa de verão do sogro, em Correias, simpática cidade perto de Petrópolis. Todos os dias, Lucio Costa descia e subia as montanhas de trem. ‘‘Mas era constrangedor, na mesma plataforma, o confronto: de um lado os veranistas vestindo seus leves guarda-pós de palha de seda e se preparando para o joguinho na volta às mansões da serra; do outro, o trem de subúrbio apinhado de suarentos operários se pendurando de qualquer jeito na volta do trabalho para os casebres.’’

            Com o tempo, as duas filhas nascidas, o arquiteto pôde comprar uma Lancia -- carro italiano esportivo -- e com ela ia para o Rio logo cedo e voltava para Correias, à noitinha, até que houve o acidente. ‘‘Para mim, Petrópolis ficou sendo a cidade do nosso destino -- para aonde íamos, quando ela morreu esvaída de sangue’’, escreveu.

            Muitos anos depois, o poeta Thiago de Mello testemunhou a dor do amigo. Ele havia ido visitar o arquiteto, em seu apartamento na avenida Delfim Moreira, no Leblon. Conversavam sobre Manuel Bandeira, Thiago andava pela sala até que parou e ficou contemplando o retrato na parede. Comentou: ‘‘Como era linda, Lucio, a sua mulher!’’. Ele sorriu suavemente, se calou e, em seguida, calmamente, passou a contar ao amigo as circunstâncias do acidente. Chorava.

            Tinha razão Thiago de Mello. As fotos de Leleta que habitam muitas e muitas páginas de sua autobiografia revelam beleza e elegância. O próprio Lucio, na década de 20, desenhou vestidos para a mulher. E ele compunha-se à altura de Leleta. Vestia-se com refinamento de um cavalheiro -- gostava de usar um cachecol comprido, colete de linha, sapatos lustrados e porte de um nobre do século 19.

            O passado e o moderno

            Não só a tristeza e a saudade o levavam ao passado. Havia nele um desejo recorrente de voltar à própria história, ir atrás do tempo perdido. Adulto, visitou três vezes a casa onde nasceu, Villa Dorothée Louise, em Toulon; procurou Miss Taylor, primeira professora de desenho; colecionou soldadinhos de chumbo. Reencontrou Miss Taylor e soube que, depois de ensinar os primeiros traços ao pequeno brasileiro, ela tinha sido professora da rainha Elizabeth.

            Menino criado e educado entre Inglaterra, França e Suíça, viu de perto a eclosão da Primeira Guerra Mundial em 1914. Gostava de desenhar soldados, especialmente montados a cavalo. Adulto, dava soldadinhos de chumbo de presente para as duas filhas até que, quando percebeu que não era bem o que elas queriam, passou ele mesmo a colecionar os bonequinhos, hoje, candidatos a estrelas do acervo da Casa de Lucio Costa, associação de amigos e fãs do arquiteto, ainda sem sede.

            Esse interesse pelo passado o fez redescobrir a genuína arquitetura colonial brasileira, perdida nos rococós e frufrus do ecletismo. Visitou Portugal, observou e fotografou as casas antigas e pobres. ‘‘Ele era muito apaixonado pela construção popular. Viajava por Minas Gerais (teve interesse especial por Diamantina) e Portugal com um caderno de anotações no qual desenhava os detalhes das obras. A paixão dele pelos detalhes da construção é algo maravilhoso, ainda mais hoje que o arquiteto tende a ser cada vez mais um profissional que trabalha com produtos industrializados e perde a relação com o artesanato’’, diz o arquiteto Guilherme Wisnik, autor de Lucio Costa (Cosac & Naify).

            O casamento dos princípios da arquitetura moderna com a tradição colonial brasileira fez-se nítido no Museu das Missões, que conta a história de uma comunidade de jesuítas e índios no Rio Grande do Sul. Lucio Costa, então diretor de Estudos e Tombamentos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), restaurou as ruínas do século 18 e injetou nelas uma caixa de vidro. ‘‘É um milagre de solução em que as duas vertentes, o passado e o moderno, convivem num exemplo magnífico, cheio de frescor. Ele usou velhas colunas que estavam jogadas por terra, as soergueu, e criou um espaço com superfícies envidraçadas, mais uma grande lição’’, atesta Glauco Campello, ex-presidente do Iphan.

            Eram muitos num só: Lucio Costa criava e analisava, pensava e fazia. Seu estudo Razões da Nova Arquitetura é um clássico para estudantes e profissionais. ‘‘Os arquitetos escrevem pouco e Lucio Costa é um exímio escritor’’, diz Cêça de Guimaraens, professora da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de Lucio Costa, da série Perfis do Rio (Relume Dumará). ‘‘Ele é o nosso demiurgo, o nosso teórico, o nosso filósofo. Se alguém quis instituir uma filosofia de arquitetura brasileira, foi ele quem começou.’’ No que Wisnik reforça: ‘‘É dele a maioria dos livros que escrevem a história da arquitetura moderna brasileira. Foi ele quem inventou o modernismo combinado com a arquitetura popular da colônia.’’

            Para onde se corre, Lucio Costa é reverenciado. O ácido Décio Pignatari tem críticas raivosas a Oscar Niemeyer, para ele ‘‘o magnata da arquitetura’’. Quando o assunto é Lucio Costa, no entanto, o poeta concretista o acata até com certa simpatia. ‘‘Antes de mais nada, deve ficar claro para muitos, se ainda não ficou: Oscar Niemeyer ocupou uns tantos espaços que pertenceriam a Lucio Costa.’’

            Igualmente cáustico e cortante, o paulista Joaquim Guedes, 69 anos, -- um dos mais importantes arquitetos brasileiros na atualidade -- é do time de Pignatari. Reage ferozmente à arquitetura de Niemeyer, porém presta homenagem a Lucio Costa, com quem disputou o concurso para a escolha do projeto do Plano Piloto de Brasília, em 1957. Professor de pós-graduação na Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo, Guedes ressalta que teme uma onda ‘‘de abobrinha laudatória’’, que aplaude, mas não critica.

            Lucio Costa, diz Guedes, merece um lugar de respeito e reflexão, até porque se ausentou do ‘‘blablablá demagógico de esquerda’’, por ser um homem correto. ‘‘Ele tentou ser um crítico, num país onde faltam avaliações sérias sobre o patrimônio cultural brasileiro’’, pontua o arquiteto paulista que já coleciona mais de 500 projetos. ‘‘Tenho um grande carinho por Lucio Costa, embora não tivesse podido conviver com ele. Era uma pessoa muito fechada, tinha uma espécie de discrição orgulhosa.’’

            Professor, arquiteto e urbanista, Paulo Mendes da Rocha, 73 anos, também compõe a lista dos mais reverenciados modernistas brasileiros (são dele, por exemplo, o Centro Cultural da Fiesp e a Nova Pinacoteca de São Paulo) ‘‘Antes de mais nada, Lucio Costa foi um grande educador. O seu trabalho assim tão perto de nós, brasileiros, fez com que nossas formação fosse impregnada de grande emoção. A importância universal de seu pensamento e de sua obra se configurou com o ensaio de Brasília. A presença de sua obra foi vivíssima para a minha geração.’’

            Menino que passou boa parte da infância na Europa e só veio morar definitivamente no Brasil a partir dos 14 anos, Lucio Costa se considerava mais ‘‘equilibradamente brasileiro’’ que os brasileiros, porque estava ‘‘livre das baldas regionalistas daqueles outros de filiação portuguesa, nativa ou africana, nascidos aqui e ali’’. Dizia que, por ter vivido muito tempo fora do Brasil, se sentia mais brasileiro que qualquer brasileiro. Apesar de ter estudado longamente as populações pobres e suas condições de vida e moradias, achava que isso não lhe dava o direito a intimidades. ‘‘Sou solidário com as aspirações do povo, mas nosso relacionamento é cerimonioso.’’

            Tanto porque, pensador à procura da brasilidade, observador minucioso do modo de vida das populações humildes, Lucio Costa sabia-se diferente. Filho do engenheiro naval baiano Joaquim Ribeiro da Costa e da amazonense Alina Ferreira da Costa, fez os estudos fundamentais em bons colégio europeus. ‘‘Ele tinha um formação clássica do século 19 e não deixou de ser assim até o fim da vida’’, lembra o arquiteto Guilherme Wisnik.

            Quando a família veio para o Rio de Janeiro, Lucio ainda era bebê. Aos 8 anos, voltaram à Europa -- sempre obedecendo à escala de trabalho do engenheiro naval. Lucio fez o ensino fundamental em Newcastle, Inglaterra, e em Montreux, Suíça. Quando voltou de vez ao Rio, aos 15 anos, encantou-se com a cidade e com o ‘‘riso alto’’ das primas. Recompunha assim sua condição brasileira.

            Lucio Costa não fazia questão de se dizer Lucio Costa. Durante muitos meses, nos anos 80, o cineasta Geraldo Mott a Filho foi vizinho dele, sem saber de quem tratava, era apenas o avô de Julieta Sobral, uma das colegas com quem dividia apartamento. Conversavam, o velhinho sempre interessado no curso de Filosofia do jovem estudante. Um dia, o homem bigodudo deu uma aula de arquitetura clássica para o atento estudante, os dois em pé, na entrada do prédio. Mais tarde, Motta comentou com uma amiga: ‘‘Vera, o avô da Julieta é um cara que sabe muito. Fiquei impressionado’’. E Vera: ‘‘Geraldo, aquele é Lucio Costa!’’. E Geraldo: ‘‘Lucio Costa de Brasília?!’’ Quase duas décadas depois, Motta conclui um documentário de 75 minutos, O Risco, sobre o genial arquiteto.

            Tinha modos inacreditavelmente desprovidos de vaidade. Corria o ano de 1960, Lucio viajava com as duas filhas pela Grécia, de carro, quando comoveu-se com um mochileiro que pedia carona. Ao saber que a generosa família era brasileira, o caroneiro -- alemão, estudante de Medicina -- desandou a falar, entusiasmado, sobre Brasília, a cidade modernista inaugurada havia pouco no distante Brasil. Depois que o rapaz desceu do carro, as filhas de Lucio comentaram, surpresas: ‘‘Mas papai, você nem ao menos disse que o plano da cidade foi seu!’’

            Hoje comparado a Sergio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre por sua dedicação à busca de uma identidade brasileira, Lucio Costa deixou patrimônio modesto para tudo o que fez -- um apartamento no Leblon. Morreu com uma aposentadoria de R$ 1,4 mil por mês. Seu sepultamento foi singelo -- amigos, familiares e pouquíssimas autoridades.

            Anos antes, Carlos Drummond de Andrade escreveu uma crônica sobre o convívio de doze anos com o colega de repartição Lucio Costa -- os dois trabalhavam no Iphan. Falavam-se pouco, admiravam-se muito. Quando cruzavam no corredor, às vezes conversavam; quase sempre, não. Lucio Costa mantinha-se calado e Drummond respeitava esse silêncio ‘‘como se respeita o silêncio das igrejas’’. Lucio Costa morreu a 13 de junho de 1998. (Conceição Freitas)

            O inventor solitário e o lápis de cor

            Ele trabalhou sozinho, durante pouco mais de três meses, até achar o ponto certo para o projeto de Brasília: uma cidade moderna, com influências francesas, inglesas, norte-americanas e da tradição colonial mineira.

            Em dedicatória a José Aparecido: ‘‘do brasiliense nº 1, Lucio Costa’’

            Trancado em si mesmo, Lucio Costa precisou de um pouco mais de três meses para criar um novo mundo -- ilhado nas próprias idéias, não as dividiu com ninguém. Parte desse tempo, 12 dias, passou a bordo de um navio em viagem de volta dos Estados Unidos. Quando deu por concluída a invenção, chamou a filha estudante de arquitetura e a ela expôs seu projeto do Plano Piloto de Brasília. Estavam no apartamento da avenida Delfim Moreira, no Leblon, primeiro prédio de pilotis erguido no Rio de Janeiro.

            Lucio Costa parecia estar diante do júri oficial do concurso, tal o empenho com que explicava seu projeto de 23 pontos. ‘‘Quando terminou, estava molhado de suor’’, lembra Maria Elisa Costa, 45 anos depois daquele fevereiro de 1957. Ela desfaz a lenda de que o projeto nasceu da noite para o dia. ‘‘Ele foi tomado pela idéia, mas a idéia foi trabalhada, pensada, estudada, sem barulho’’.

            Dias depois, 11 de março, a filha do inventor desceu às pressas de um velho Citröen, enquanto o pai a esperava no carro, rente à calçada do prédio do então Ministério da Educação e Saúde Pública, no centro do Rio. Faltavam dez minutos para o encerramento do prazo de entrega dos projetos do concurso do Plano Piloto. A moça subiu ao saguão do Ministério, entregou o projeto, apanhou o recibo e foi embora.

            Àquela hora, quatro dos seis membros do júri estavam lá, ansiosos por saber quem mais apresentaria projeto -- 63 candidatos haviam se inscrito, mas a confirmação se daria com a entrega da proposta. O grupo era formado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, os urbanistas William Holford (inglês) e André Sive (francês) e o arquiteto americano Stamo Papadaki. Com eles, o arquiteto e crítico de arte Flávio de Aquino (morto em 1987), à época assistente de Niemeyer. O que viram foi, de início, constrangedor. Lucio Costa já era, à época, um dos grandes da arquitetura brasileira. Mas os rabiscos toscos feitos a lápis de cor, pequenos desenhos a nanquim e um texto batido a máquina pareciam brincadeira de criança diante de maquetes, croquis, quadros de alumínio -- recursos sofisticados que compunham os projetos já entregues.

            Uma semana depois, sob protesto do representante do Instituto dos Arquitetos do Brasil, Paulo Antunes Ribeiro (que queria transferir a decisão para uma comissão de notáveis), o júri consagrou o mais mal-apresentado dos projetos. O inglês Holford, presidente do júri, diria mais tarde a Lucio Costa: ‘‘Li o seu trabalho três vezes. Na primeira, confesso que mesmo socorrido do meu espanhol e do meu francês, não consegui entender realmente tudo o que estava dito. Na segunda leitura, consegui entender. Na terceira, I enjoyed it (algo como ‘deleitei-me’, ‘fiquei encantado’)’’. Foi no pequeno terraço interno do prédio do Leblon -- de onde, num esticar de pescoço, se pode ver o mar -- e flutuando sobre o Oceano Atlântico que Lucio Costa deu ânimo a uma cidade. Mas Brasília, vejam só, tem influências francesas, inglesas, norte-americanas e mineiras. O próprio Lucio escreveu, em texto pouco conhecido, que ‘‘inconsciente embora, a lembrança amorosa de Paris esteve sempre presente’’ durante a invenção da nova capital.

            Há também rastros dos ‘‘imensos gramados ingleses, os lawns da minha meninice, -- é daí que os verdes de Brasília provêm’’. Entre a decisão de se inscrever, tomada só três meses depois de aberto o prazo, e a entrega do projeto, Lucio Costa foi aos Estados Unidos. Percorreu auto-estradas e viadutos de travessia nos arredores de Nova York -- daí pode-se deduzir que o Eixão e as Estradas Parque são filhas das autopistas nova-iorquinas. Por fim, o urbanista deixou-se levar também pela ‘‘pureza da distante Diamantina’’ que o arquiteto visitou nos anos 20 e o marcou para sempre.

            Vitória sem prêmio

            Quando os jornais de 18 de março noticiaram a vitória de Lucio Costa, o engenheiro Augusto Guimarães Filho teve um sobressalto. Leu uma, duas, três vezes a reportagem até cair em si: seu mestre e colega de trabalho tinha inventado uma cidade e nada contara para ele. ‘‘Foi uma surpresa completa, eu não tinha percebido absolutamente nada’’, conta Guimarães, aos 85 anos, em seu apartamento de um bairro de classe média de Niterói. À época os dois estavam desenvolvendo um projeto de Lucio Costa para o Banco Aliança, na Praça Pio X, no Rio.

            Trabalhavam juntos desde o final da década de 40, quando Guimarães foi ajudar Lucio Costa no projeto do Parque Guinle, conjunto de prédios com pilotis, precursor das superquadras de Brasília, construído no Rio de Janeiro. O surpreso parceiro do inventor de Brasília não fazia idéia do quanto estava encrencado com a construção da nova capital.

            ‘‘Queria indicar o senhor para chefe da divisão de urbanismo da Novacap, o senhor seria meu representante pessoal’’, disse Lucio Costa, dias depois, tranqüilo como quem comenta a chuva do dia, cerimonioso como costumava ser em situações profissionais. ‘‘Fiquei mudo. Não disse nada...’’, relembra Guimarães Filho. ‘‘Fiquei siderado, literalmente siderado. Não me achava capaz, achava que era generosidade dele’’. Passaram-se um, dois, vários dias, até que o ganhador do concurso do Plano Piloto insistiu: ‘‘Eu lhe fiz uma proposta, pensei que fosse boa...’’. Guimarães vinha de noites sem dormir, sem saber o que fazer. Aceitou.

            Foi um casamento perfeito entre o inventor recluso e o engenheiro aplicado e fiel às idéias do mestre. Lucio Costa explicou que Guimarães seria a única indicação dele para a equipe de arquitetos e engenheiros que tocariam a obra, e que ele, Guimarães, ficaria subordinado a Oscar Niemeyer, diretor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo. O criador de Brasília sabia de si -- não gostava de acompanhar obra, havia até certo desinteresse pelo dia-a-dia bruto de uma construção. Nos três anos, seis meses e 18 dias que durou a construção, Lucio Costa veio poucas vezes a Brasília.

            No Rio, ele enfrentava um mar de críticas, insinuações, maldades. ‘‘Ele foi muito malhado. Diziam que era um absurdo a vitória de um projeto feito com tanta displicência, num pedaço de papel’’, lembra o arquiteto Joaquim Guedes, que também concorreu ao concurso. Mais do que isso: insinuavam o compadrio entre Niemeyer e o vencedor. E que, com algumas dezenas de horas de trabalho, papel, lápis e borracha, Lucio Costa levou para casa um milhão de cruzeiros, o valor do prêmio.

            Não levou. O dinheiro foi depositado na agência do Banco do Brasil em Copacabana. (Na época não havia inflação -- com a construção de Brasília, sim, começou a carestia). Lucio Costa satisfazia-se com o pró-labore que recebia todo mês na Novacap -- ‘‘aquilo dava pra viver’’. Nos três anos e seis meses de construção, o arquiteto se sentiu seguro com o dinheiro guardado no banco. ‘‘Me pareceu em boas mãos’’. Planejou usar o dinheiro para construir duas casas para as duas filhas na nova capital -- fez o projeto e deu a ele o nome de Casa de Brasília.

            ‘‘E aí, fui ao banco pra ver. Vixe! Fiquei chocado! Porque o dinheiro já não valia quase nada’’, contou o arquiteto em depoimento ao Programa de História Oral do Arquivo Público do Distrito Federal, em 1988. Pensou, então, em relatar o ocorrido à Novacap -- a companhia construtora da nova capital -- para tentar reaver o prêmio integralmente. Deixou o que sobrara no banco, a idéia não foi avante e o dinheiro escorreu pelos dedos da inflação.

            Nos 38 anos que se seguiram, Lucio Costa veio não mais de cinco vezes a Brasília. Mas não estava indiferente. Durante e depois da construção defendia a cidade a seu modo, sem pirotecnia, mas com firmeza. Teve uma vez , durante a construção, que essa defesa peremptória assustou o presidente da Novacap. Agitadíssimo, Israel Pinheiro procurou Guimarães Filho: ‘‘Seu chefe está louco??!! Ele mandou uma carta desaforada para o presidente (Juscelino Kubitschek)!!’’. Na carta, Lucio Costa protestava contra tentativas de alterar o projeto de Brasília em nome da pressa em se concluir a cidade.

            Quando o acervo de Lucio Costa for identificado e organizado, muito mais se saberá dessa sua quixotesca defesa da nova capital. Constantemente, ele produzia textos em defesa da cidade, como este inédito que o Correio publica com exclusividade nesta página. Ou outro mais vigoroso, publicado na revista Manchete, em agosto de 1974: ‘‘Brasília merece respeito. É preciso acabar com esse jogo de gosto, não gosto, e com essa balda intelectual de fazer frases pejorativas’’.

            Até meados da década de 80, possivelmente movido por alguma modéstia, Lucio Costa escrevia: Brasília, cidade inventada. Num dia qualquer, levado não se sabe por que sinal, passou a escrever ‘‘Brasília, cidade que inventei’’. Foi por esse tempo que ele, pela primeira vez, saiu pelas entrequadras do Plano Piloto, à noite, como um cidadão comum. Havia dez anos que ele não vinha à cidade -- veio para avaliar até que ponto o projeto inicial tinha sido alternado. Era uma noite fria de 1984. Chegou ao bar e restaurante Moinho depois das 10 da noite, acompanhado pela filha, Maria Elisa, e alguns amigos brasilienses.

            Terno cinza, camisa branca, gravata preta, suéter bege sobre os ombros, Lucio Costa sentou-se encostado à parede. Havia mais de 70 pessoas no bar da esquina da 114 Sul -- à época o ‘‘Beirute do B’’, por reunir a esquerda descolada e agitada de Brasília. Alguém reconheceu nele o inventor da cidade e falou para outro que falou para outro e assim foi até que todos começaram a aplaudir o homem elegante e já sorridente. Lucio Costa levantou-se e, como criança na própria festa de aniversário, também bateu palmas. Quando a homenagem acabou, ele sentou-se e chorou, desta vez de alegria. (Conceição Freitas)

            Brasília foi concebida com profunda convicção democrática. A Praça dos Três Poderes, assim chamada no próprio texto descritivo do plano da cidade -- perfeito exemplo de integração urbanístico-arquitetônica -- teve como base de implantação o triângulo eqüilátero no intuito de marcar, no nascedouro, a autonomia dos poderes da República, Foi, por isto, tratada com a amplidão e o apuro de um Versalhes do povo. Os vinte anos de poder autoritário -- juntamente com as restrições arquitetônicas que lhe eram impostas -- deram, porém, à cidade uma falsa conotação de cidade autoritária em contraposição ao ‘‘laisser-faire’’ das chamadas cidades satélites oriundas dos antigos núcleos improvisados a partir de 1961, quando a Novacap -- premida pelo problema da transferência das favelas surgidas em torno dos vários canteiros de obras -- resolveu (à revelia do parecer contrário dos responsáveis pelo desenvolvimento do plano) doar lotes de terra e conceder todas as facilidades para que os chamados ‘‘candangos’’ se mudassem para fora da área metropolitana. Agora, na retomada da normalidade político-administrativa, o novo governo da cidade está diante de um impasse. É que, no louvável intuito de preservar a identidade simbólica da capital -- ou seja, a estrutura do chamado Plano Piloto -- a administração anterior vinha adotando a política da descentralização e de uma antecipada dispersão periférica em detrimento da matriz urbana ainda incompleta. Daí a iniciativa de projetar novas cidades satélites e de pretender implantar oneroso sistema de transporte de massa, quando as amplas vias de conexão com o centro da cidade -- ainda vazias -- estão a pedir sem maior ônus, pelo contrário, uma ocupação marginal, arquitetonicamente contida, destinada à habitação econômica. Essa possível seqüência contínua de segmentos edificados, formando ‘‘quadras’’ no sentido inovador das superquadras de Brasília, mas com prédios de apenas 3 pavimentos sobre pilotis baixos (2,20m) -- destinadas à pequena classe média e proletária, constituída de bancários, comerciários, pequenos funcionários do serviço público, ou seja à totalidade da população trabalhadora, inclusive mesmo com unidades de 30m2 para atender ao salário mínimo e aos ex-favelados -- formariam ao longo das vias uma ‘‘bordure’’ contínua, um debrum urbanística e arquitetonicamente integrado, com escola, creches e áreas arborizadas de recreio -- e com o apoio comercial adequado a populações não motorizadas. Por detrás dessa cortina edificada, urbanística e arquitetonicamente composta -- cujos habitantes utilizarão o transporte existente em todo o percurso, barateando-lhe o custo -- as extensas glebas serão destinadas apenas à cultura hortogranjeira, evitando-se assim o clássico espraiamento suburbano que em Brasília se deve evitar. O chamado Plano Piloto continuará como pólo urbano a um tempo de convergência e de irradiação, tendo a plataforma rodoviária como elo dessa integração. Não se deve esvaziar Brasília antes que ela esteja pronta, é preciso construir as quadras da Universidade, e é preciso adensar adequadamente o centro urbano -- o miolo da cidade --, o seu ‘‘core’’, ainda inconcluso.

            Minuta manuscrita de texto apresentado ao então governador José Aparecido de Oliveira, em 1985.

                        
            Há, sobre o traço, algum risco, quando o espaço entre a tinta e o papel tem tamanha força de criação e viço que a mudança cresce e, por si, escapa, espalha-se na realidade. O traço, arisco dessa tarefa de esboço, oco, decorativo rabisco, avança até virar concreto, cidade e estilo. Brasília tem a sua gênese na invenção de um homem. Uma proclamação, quase manifesto, do poder transformador de uma idéia.  
O gesto inaugural do esboço guarda a força da realidade a ser transformada. Principalmente nos rabiscos iniciais da criação de Lucio Costa. Até chegar aos traços concisos de uma cidade sobre duas asas e eixo.

            O segundo número da consagrada revista brasileira Arquitetura e Urbanismo, de abril de 1985, publicou pela primeira vez os esboços originais de Lúcio Costa. Brasília completava 25 anos. O diretor de redação Mário Sérgio Pini dedicara um número especial ao tratar Brasília em sua ‘‘concretude de cidade-viva’’.

            Essa fluidez de uma cidade em processo, como obra aberta, sempre acompanhará Brasília no conflito permanente entre os que a amam e os que a violentam. Haverá sempre a profecia desses riscos nervosos do urbanista no despertar do ‘‘gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse’’. São as origens da nossa eterna fragilidade. São prenúncios da nossa teimosa busca de definição quando nos querem sob véus, promessa irrealizada, sonho abortado.

            Os antecedentes da idéia, pelos dedos de Lucio, já traziam o fervor de um transe confessado no próprio texto do Plano Piloto quando ele assume a convulsão que o tomara: ‘‘desejo inicialmente desculpar-me pela apresentação sumária do partido aqui sugerido’’. Brasília sempre sob a mira, sem estar pronta, volátil a cada infâmia e volúvel amorosa para corresponder generosa a quem lhe toca.

            A explícita confissão do transe está logo no segundo parágrafo do Relatório: ‘‘apenas me desvencilho de uma solução possível, que não foi procurada mas surgiu, por assim dizer, já pronta’’. E mais veemente ficam os esboços de Lucio quando ele continua em advertências sinceras: ‘‘compareço, não como técnico devidamente aparelhado, pois nem sequer disponho de escritório’’. E resume o brilho na extraordinária pureza tão compatível com a sua obra: ‘‘e se procedo assim candidamente é porque me amparo num raciocínio igualmente simplório: se a sugestão é válida, estes dados, conquanto sumários na sua aparência, já serão suficientes’’.

            Sem a menor cerimônia Lúcio despede-se com um ‘‘e não terei perdido o meu tempo nem tomado o tempo de ninguém’’. O poeta Carlos Drummond de Andrade ao ver os traços comentou ‘‘era rabisco e pulsava’’. O Relatório do Plano Piloto de Lucio Costa foi o projeto número 22 (entre 26 concorrentes) e escolhido no dia 16 de março de 1957. Antes foi ‘‘gesto solto sobre o papel’’. Depois, seiva, lama, suor, injustiça, beleza, crime, dignidade e valores naturais dos habitantes que a legitimam como cidade viva.‘‘O simples fato de Brasília existir é uma coisa esplêndida’’, declara na célebre entrevista da AU. Avalia, isso em 1985, que ‘‘a satisfação que a cidade lhe proporcionou foi muito maior que alguns desencantos’’. E refere-se ao fazer: ‘‘a arquitetura é como se fosse uma conversa cotidiana’’.

            Quais antecedentes embalaram esses esboços? Lá o fundo estariam idéias da nova arquitetura influente do franco-suíço Le Corbusier (1887-1965) que um dia declarou a Stephen Gardiner: ‘‘olhar primeiro, depois observar, e finalmente, talvez, descobrir. Só depois virá a inspiração’’. Mais que a citação honrosa da capela de Ronchamp -- feita por Niemeyer na cobertura ‘‘chapéu de freira’’ da Igrejinha. Charles-Edouard Jeaneret, adotou o apelido Le Corbusier depois da Primeira Guerra quando escrevia para a revista L’Espirit Nouveau. ‘‘Nunca deixei de ser estudante’’, disse aos 40 anos. Era autodidata para o espanto dos acadêmicos: ‘‘dans la vie il faut faire (na vida, é preciso realizar) C’est-à-dire agir dans la moestie , l’exactitude, la précision ( vale dizer, agir com regularidade, modéstia, continuidade e perseverança) declara aos 77 anos e parece definir Lucio como essa presença brasileira capaz de desmentir nossa vocação submissa, colonial e deprimida.

            

            Relatório do Plano Piloto de Brasília

            
            ...José Bonifácio, em 1823, propõe a transferência da Capital para Goiás e sugere o nome de BRASÍLIA.

            Desejo inicialmente desculpar-me perante a direção da Companhia Urbanizadora e a Comissão Julgadora do Concurso pela apresentação sumária do partido aqui sugerido para a nova Capital, e também justificar-me.

            Não pretendia competir e, na verdade, não concorro, -- apenas me desvencilho de uma solução possível, que não foi procurada mas surgiu, por assim dizer, já pronta.

            Compareço, não como técnico devidamente aparelhado, pois nem sequer disponho de escritório, mas como simples maquis do urbanismo, que não pretende prosseguir no desenvolvimento da idéia apresentada senão eventualmente, na qualidade de mero consultor. E se processo assim candidamente é porque me amparo num raciocínio igualmente simplório: se a sugestão é válida, estes dados, conquanto sumários na sua aparência, já serão suficientes, pois revelarão que, apesar da espontaneidade original, ela foi, depois, intensamente pensada e resolvida; se não o é, a exclusão se fará mais facilmente, e não terei perdido o meu tempo nem tomado o tempo de ninguém.

            A liberação do acesso ao concurso reduziu de certo modo a consulta àquilo que de fato importa, ou seja, à concepção urbanística da cidade propriamente dita, porque esta não será, no caso, uma decorrência do planejamento regional, mas a causa dele: a sua fundação é que se dará no ensejo ao ulterior desenvolvimento planejado da região. Trata-se de um ato deliberado de posse, de um gesto de sentido ainda desbravador, nos moldes da tradição colonial. E o que se indaga é como no entender de cada concorrente uma tal cidade deve ser concebida.

            Ela deve ser concebida não como simples organismo capaz de preencher satisfatoriamente e sem esforço as funções vitais próprias de uma cidade moderna qualquer, não apenas como urbs, mas como civitas, possuidora dos atributos inerentes a uma capital. E, para tanto, a condição primeira é achar-se o urbanista imbuído de uma certa dignidade e nobreza de intenção, porquanto dessa atitude fundamental decorrem a ordenação e o senso de conveniência e medida capazes de conferir ao conjunto projetado o desejável caráter monumental. Monumental não no sentido de ostentação, mas no sentido da expressão palpável, por assim dizer, consciente, daquilo que vale e significa. Cidade planejada para o trabalho ordenado e eficiente, mas ao mesmo tempo cidade viva e aprazível, própria ao devaneio e à especulação intelectual, capaz de tornar-se, com o tempo, além de centro de governo e administração, num foco de cultura dos mais lúcidos e sensíveis do país.

            Dito isto, vejamos como nasceu, se definiu e resolveu a presente solução:

            1 -- Nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz.

            2 -- Procurou-se depois a adaptação à topografia local, ao escoamento natural das águas, à melhor orientação, arqueando-se um dos eixos a fim de contê-lo no triângulo equilátero que define a área urbanizada.

            3 -- E houve o propósito de aplicar os princípios francos da técnica rodoviária -- inclusive a eliminação dos cruzamentos -- à técnica urbanística, conferindo-se ao eixo arqueado, correspondente às vias naturais de acesso, a função circulatória tronco, com pistas centrais de velocidade e pistas laterais para o tráfego local, e dispondo-se ao longo desse eixo o grosso dos setores residenciais.

            4 -- Como decorrência dessa concentração residencial, os centros cívico e administrativo, o setor cultural, o centro de diversões, o centro esportivo, o setor administrativo municipal, os quartéis, as zonas destinadas à armazenagem, ao abastecimento e às pequenas indústrias locais e, por fim, a estação ferroviária, foram-se naturalmente ordenando e dispondo ao longo do eixo transversal que passou assim a ser o eixo monumental do sistema. Lateralmente à intersecção dos dois eixos, mas participando funcionalmente e em termos de composição urbanística do eixo monumental, localizaram-se o setor bancário e comercial, o setor dos escritórios de empresas e profissões liberais, e ainda os amplos setores do varejo comercial.

            5 -- O cruzamento desse eixo monumental, de cota inferior, com o eixo rodoviário-residencial impôs a criação de uma grande plataforma liberta do tráfego que não se destine ao estacionamento ali, remanso onde se concentrou logicamente o centro de diversões da cidade, com os cinemas, os teatros, os restaurantes etc.

            6 -- O tráfego destinado aos demais setores prossegue, ordenado em mão única, na área térrea inferior coberta pela plataforma e entalada nos dois topos mas aberta nas faces maiores, área utilizada em grande parte para o estacionamento de veículos e onde se localizou a estação rodoviária interurbana, acessível aos passageiros pelo nível superior da plataforma. Apenas as pistas de velocidade mergulham, já então subterrâneas, na parte central desse piso inferior que se espraia até nivelar-se com a esplanada do setor dos ministérios.

            7 -- Desse modo e com a introdução de três trevos completos em cada ramo do eixo rodoviário e outras tantas passagens de nível inferior, o tráfego de automóveis e ônibus se processa tanto na parte central quanto nos setores residenciais sem qualquer cruzamento. Para o tráfego de caminhões estabeleceu-se um sistema secundário autônomo com cruzamentos sinalizados mas sem cruzamento ou interferência alguma com o sistema anterior, salvo acima do setor esportivo, e que acede aos edifícios do setor comercial ao nível do subsolo, contornando o centro cívico em cota inferior, com galerias de acesso previstas no terrapleno.

            8 -- Fixada assim a rede geral do tráfego automóvel, estabeleceram-se, tanto nos setores centrais como nos residenciais, tramas autônomas para o trânsito local dos pedestres a fim de garantir-lhes o uso livre do chão, sem contudo levar tal separação a extremos sistemáticos e antinaturais pois não se deve esquecer que o automóvel, hoje em dia, deixou de ser o inimigo inconciliável do homem, domesticou-se, já faz, por assim, parte da família. Ele só se ‘‘desumaniza’’, readquirindo vis-à-vis do pedestre feição ameaçadora e hostil quando incorporado à massa anônima do tráfego. Há então que separá-los, mas sem perder de vista que, em determinadas condições e para comodidade recíproca, a coexistência se impõe.

            9 -- Veja-se agora como nesse arcabouço de circulação ordenada se integram e articulam os vários setores.

            Destacam-se no conjunto os edifícios destinados aos poderes fundamentais que, sendo em número de três e autônomos, encontraram no triângulo equilátero, vinculado à arquitetura da mais remota antiguidade, a forma elementar apropriada para contê-los. Criou-se então um terrapleno triangular, com arrimo de pedra à vista, sobrelevado na campina circunvizinha a que se tem acesso pela própria rampa da auto-estrada que conduz à residência e ao aeroporto. Em cada ângulo dessa praça -- Praça dos Três Poderes, poderia chamar-se -- localizou-se uma das casas, ficando as do Governo e do Supremo Tribunal na base e a do Congresso no vértice, com frente igualmente para uma ampla esplanada disposta num segundo terrapleno, de forma retangular e nível mais alto, de acordo com a topografia local, igualmente arrimado de pedras em todo o seu perímetro. A aplicação em termos atuais, dessa técnica oriental milenar dos terraplenos, garante a coesão do conjunto e lhe confere uma ênfase monumental imprevista. Ao longo dessa esplanada -- o Mall, dos ingleses --, extenso gramado destinado a pedestres, a paradas e a desfiles, foram dispostos os ministérios e autarquias. Os das Relações Exteriores e Justiça ocupando os cantos inferiores, contíguos ao edifício do Congresso e com enquadramento condigno, os ministérios militares constituindo uma praça autônoma, e os demais ordenados em seqüência -- todos com área privativa de estacionamento --, sendo o último o da Educação, a fim de ficar vizinho do setor cultural, tratado à maneira de parque para melhor ambientação dos museus, da biblioteca, do planetário, das academias, dos institutos etc., setor este também contíguo à ampla área destinada à Cidade Universitária com o respectivo Hospital das Clínicas, e onde também se prevê a instalação do Observatório. A Catedral ficou igualmente localizada nessa esplanada, mas numa praça autônoma disposta lateralmente, não só por questão de protocolo, uma vez que a Igreja é separada do Estado, como por uma questão de escala, tendo-se em vista valorizar o monumento, e ainda, principalmente, por outra razão de ordem arquitetônica: a perspectiva de conjunto da esplanada deve prosseguir desimpedida até além da plataforma onde os dois eixos urbanísticos se cruzam.

            10 -- Nesta plataforma onde, como se via anteriormente, o tráfego é apenas local, situou-se então o centro de diversões da cidade (mistura em termos adequados de Piccadilly Circus, Times Square e Champs Elysées). A face da plataforma debruçada sobre o setor cultural e a esplanada dos ministérios não foi edificada com exceção de uma eventual casa de chá e da Ópera, cujo acesso tanto se faz pelo próprio setor de diversões, como pelo setor cultural contíguo, em plano inferior. Na face fronteira foram concentrados os cinemas e teatros, cujo gabarito se fez baixo e uniforme, constituindo assim o conjunto deles um corpo arquitetônico contínuo, com galeria, amplas calçadas, terraços e cafés, servido as respectivas fachadas em toda a altura de campo livre para a instalação de painéis luminosos de reclame. As várias casas de espetáculo estarão ligadas entre si por travessas no gênero tradicional da rua do Ouvidor, das vielas venezianas ou de galerias cobertas (arcades) e articuladas a pequenos pátios com bares e cafés, e ‘‘loggias’’ na parte dos fundos com vista para o parque, tudo no propósito de propiciar ambiente adequado ao convívio e à expansão. O pavimento térreo do setor central desse conjunto de teatros e cinemas manteve-se vazado em toda a sua extensão, salvo os núcleos de acesso aos pavimentos superiores, a fim de garantir continuidade à perspectiva, e os andares se previram envidraçados nas duas faces para que os restaurantes, clubes, casas de chá etc., tenham vista, de um lado para a esplanada inferior, e do outro para o aclive do parque no prolongamento do eixo monumental e onde ficaram localizados os hotéis comerciais e de turismo e, mais acima, para a torre monumental das estações radioemissoras e de televisão, tratada como elemento plástico integrado na composição geral. Na parte central da plataforma, porém disposto lateralmente, acha-se o saguão da estação rodoviária com bilheteria, bares, restaurantes etc., construção baixa, ligada por escadas rolantes ao ‘‘hall’’ inferior de embarque separado por envidraçamento do cais propriamente dito. O sistema de mão única obriga os ônibus na saída a uma volta, num ou noutro sentido, fora da área coberta pela plataforma, o que permite ao viajante uma última vista do eixo monumental da cidade antes de entrar no eixo rodoviário -- residencial, -- despedida psicologicamente desejável. Previram-se igualmente nessa extensa plataforma destinada principalmente tal como no piso térreo, ao estacionamento de automóveis, duas amplas praças privativas dos pedestres, uma fronteira ao teatro da Ópera e outra, simetricamente disposta, em frente a um pavilhão de pouca altura debruçado sobre os jardins do setor cultural e destinado a restaurantes, bar e casa de chá. Nestas praças, o piso das pistas de rolamento, sempre de sentido único, foi ligeiramente sobrelevado em larga extensão, para o livre cruzamento dos pedestres num e outro sentido, o que permitirá acesso franco e direto tanto aos setores do varejo comercial quanto ao setor dos bancos e escritórios.

            11 -- Lateralmente a esse setor central de diversões, e articulados a ele, encontram-se dois grandes núcleos destinados exclusivamente ao comércio -- lojas e ‘‘magasins’’, e dois setores distintos, o bancário-comercial, e o dos escritórios para profissões liberais, representações e empresas, onde foram localizados, respectivamente, o Banco do Brasil e a sede dos Correios e Telégrafos. Estes núcleos e setores são acessíveis aos automóveis diretamente das respectivas pistas, e aos pedestres por calçadas sem cruzamento, e dispõem de auto portos para estacionamento em dois níveis, e de acesso de serviço pelo subsolo correspondente ao piso inferior da plataforma central. No setor de bancos, tal como no dos escritórios, previram-se três blocos altos e quatro de menor altura, ligados entre si por extensa ala térrea com sobreloja de modo a permitir intercomunicação coberta e amplo espaço para instalação de agências bancárias, agências de empresas, cafés, restaurantes, etc. Em cada núcleo comercial, propõe-se uma seqüência ordenada de blocos baixos e alongados e um maior, de igual altura dos anteriores, todos interligados por um amplo corpo térreo com lojas, sobrelojas e galerias. Dois braços elevados da pista de contorno permitem, também aqui, acesso franco aos pedestres.

            12 -- O setor esportivo, com extensíssima área destinada exclusivamente ao estacionamento de automóveis, instalou-se entre a praça da Municipalidade e a torre radioemissora, que se prevê de planta triangular, com embasamento monumental de concreto aparente até o piso dos ‘‘studios’’ e mais instalações, e superestrutura metálica com mirante localizado a meia altura. De um lado o estádio e mais dependências tendo aos fundos o Jardim Botânico; do outro o hipódromo com as respectivas tribunas e vila hípica e, contíguo, o Jardim Zoológico, constituindo estas duas imensas áreas verdes, simetricamente dispostas em relação ao eixo monumental, como que os pulmões.

            13 -- Na praça Municipal, instalaram-se a Prefeitura, a Polícia Central, o Corpo de Bombeiros e a Assistência Pública. A penitenciária e o hospício, conquanto afastados do centro urbanizado, fazem igualmente parte deste setor.

            14-- Acima do setor municipal foram dispostas as garagens da viação urbana, em seguida, de uma banda e de outra, os quartéis e numa larga faixa transversal o setor destinado ao armazenamento e à instalação das pequenas indústrias de interesse local, com setor residencial autônomo, zona esta rematada pela estação ferroviária e articulada igualmente a um dos ramos da rodovia destinada aos caminhões.

            15 -- Percorrido assim de ponta a ponta esse eixo dito monumental, vê-se que a fluência e unidade do traçado, desde a praça do Governo até à praça Municipal, não exclui a variedade, e cada setor, por assim dizer, vale por si como organismo plasticamente autônomo na composição do conjunto. Essa autonomia cria espaços adequados à escala do homem e permite o diálogo monumental localizado sem prejuízo do desempenho arquitetônico de cada setor na harmoniosa integração urbanística do todo.

            16 -- Quanto ao problema residencial, ocorreu a solução de criar-se uma seqüência contínua de grandes quadras dispostas, em ordem dupla ou singela, de ambos os lados da faixa rodoviária, e emolduradas por uma larga cinta densamente arborizada, árvores de porte, prevalecendo em cada quadra determinada espécie vegetal, com chão gramado e uma cortina suplementar intermitente de arbustos e folhagens, a fim de resguardar melhor, qualquer que seja a posição do observador, o conteúdo das quadras, visto sempre num segundo plano e como que amortecido na paisagem. Disposição que apresenta a dupla vantagem de garantir a ordenação urbanística mesmo quando varie a densidade, categoria, padrão ou qualidade arquitetônica dos edifícios, e de oferecer aos moradores extensas faixas sombreadas para passeio e lazer, independentemente das áreas livres previstas no interior das próprias quadras.

            Dentro destas ‘‘superquadras’’ os blocos residenciais podem dispor-se da maneira mais variada, obedecendo porém a dois princípios gerais: gabarito máximo uniforme, talvez seis pavimentos e pilotis, e separação do tráfego de veículos do trânsito de pedestres, mormente o acesso à escola primária e às comodidades existentes no interior de cada quadra.

            Ao fundo das quadras estende-se a via de serviço para o tráfego de caminhões, destinando-se ao longo dela a frente oposta às quadras, à instalação de garagens, oficinas, depósitos do comércio em grosso etc., e reservando-se uma faixa de terreno, equivalente a uma terceira ordem de quadras, para floricultura, horta e pomar. Entaladas entre essa via de serviço e as vias do eixo rodoviário, intercalam-se então largas e extensas faixas com acesso alternado, ora por uma, ora por outra, e onde se localizaram a igreja, as escolas secundárias, o cinema e o varejo do bairro disposto conforme a sua classe ou natureza.

            O mercadinho, os açougues, as vendas, quitandas, casas de ferragens etc., na primeira metade da faixa correspondente ao acesso de serviço; as barbearias, cabeleireiros, modistas, confeitarias etc., na primeira seção da faixa de acesso privativa dos automóveis e ônibus, onde se encontram igualmente os postos de serviço para venda de gasolina. As lojas dispõem-se em renque com vitrinas e passeio coberto na face fronteira às cintas arborizadas de enquadramento dos quarteirões e privativas dos pedestres, e o estacionamento na face oposta, contígua às vias de acesso motorizado, prevendo-se travessas para ligação de uma parte a outra, ficando assim as lojas geminadas duas a duas, embora o seu conjunto constitua um corpo só.

            17 -- A gradação social poderá ser dosada facilmente atribuindo-se maior valor a determinadas quadras como, por exemplo, às quadras singelas contíguas ao setor das embaixadas, setor que se estende de ambos os lados do eixo principal paralelamente ao eixo rodoviário, com alameda de acesso autônomo e via de serviço para o tráfego de caminhões comum às quadras residenciais. Essa alameda, por assim dizer, privativa do bairro das embaixadas e legações, se prevê edificada apenas num dos lados, deixando-se o outro com a vista desimpedida sobre paisagem, excetuando-se o hotel principal localizado nesse setor e próximo do centro da cidade. No outro lado do eixo rodoviário-residencial, as quadras contíguas à rodovia serão naturalmente mais valorizadas que as quadras internas, o que permitirá as gradações próprias do regime vigente; contudo, o agrupamento delas, de quatro em quatro, propicia num certo grau a coexistência social, evitando-se assim uma indevida e indesejável estratificação.  
E seja como for, as diferenças de padrão de uma quadra a outra serão neutralizadas pelo próprio agenciamento urbanístico proposto, e não serão de natureza a afetar o conforto social a que todos têm direito. Elas decorrerão apenas de uma maior ou menos densidade, do maior ou menor espaço atribuído a cada indivíduo e a cada família, da escolha dos materiais e do grau e requinte do acabamento. Neste sentido deve-se impedir a enquistação de favelas tanto na periferia urbana quanto na rural. Cabe à Companhia Urbanizadora prover dentro do esquema proposto acomodações decentes e econômicas para a totalidade da população.

            18 -- Previram-se igualmente setores ilhados, cercados de arvoredos e de campo, destinados a loteamento para casas individuais, sugerindo-se uma disposição dentada em cremalheira, para que as casas construídas nos lotes de topo se destaquem na paisagem, afastadas umas das outras, disposição que ainda permite acesso autônomo de serviço para todos os lotes. E admitiu-se igualmente a construção eventual de casas avulsas isoladas de alto padrão arquitetônico -- o que não implica tamanho -- estabelecendo-se porém como regra, nestes casos, o afastamento mínimo de um quilômetro de casa a casa, o que acentuará o caráter excepcional de tais concessões.

            19 -- Os cemitérios localizados nos extremos do eixo rodoviário-residencial evitam aos cortejos a travessia do cento urbano. Terão chão de grama e serão convenientemente arborizados, com sepulturas rasas e lápides singelas, à maneira inglesa, tudo desprovido de qualquer ostentação.

            20 -- Evitou-se a localização dos bairros residenciais na orla da lagoa, a fim de preservá-la intata, tratada com bosques e campos de feição naturalista e rústica para os passeios e amenidades bucólicas de toda a população urbana. Apenas os clubes esportivos, os restaurantes, os lugares de recreio, os balneários e núcleos de pesca poderão chegar à beira d’água. O clube de Golf situou-se na extremidade leste, contíguo à Residência e ao hotel, ambos em construção, e o Yatch Club na enseada vizinha, entremeados por denso bosque que se estende até à margem da represa, bordejada nesse trecho pela alameda de contorno que intermitentemente se desprende da sua orla para embrenhar-se pelo campo que se pretende eventualmente florido e manchado de arvoredo. Essa estrada se articula ao eixo rodoviário e também à pista autônoma de acesso direto do aeroporto ao centro cívico, por onde entrarão na cidade os visitantes ilustres, podendo a respectiva saída processar-se, com vantagem, pelo próprio eixo rodoviário-residencial. Propõe-se, ainda, a localização do aeroporto definitivo na área interna da represa, a fim de evitar-lhe a travessia ou contorno.

            21 -- Quanto à numeração urbana, a referência deve ser o eixo monumental, distribuindo-se a cidade em metades Norte e Sul; as quadras seriam assinaladas por números, os blocos residenciais por letras, e finalmente o número do apartamento na forma usual, assim por exemplo, N-Q3-L ap 201. A designação dos blocos em relação à entrada da quadra deve seguir da esquerda para a direita, de acordo com a norma.

            22 -- Resta o problema de como dispor do terreno e torná-lo acessíveis ao capital particular. Entendo que as quadras não devem ser loteadas, sugerindo, em vez da venda de lotes, a venda de quotas de terreno, cujo valor dependerá do setor em causa e do gabarito, a fim de não entravar o planejamento atual e possíveis remodelações futuras no delineamento interno das quadras. Entendo também que esse planejamento deveria de preferência anteceder a venda das quotas, mas nada impede que compradores de um número substancial de quotas submetam à aprovação da Companhia projeto próprio de urbanização de uma determinada quadra, e que, além de facilitar aos incorporadores a aquisição de quotas, a própria Companhia funcione, em grande parte, como incorporadora. E entendo igualmente que o preço das quotas, oscilável conforme a procura, deveria incluir uma parcela com taxa fixa, destinada a cobrir as despesas do projeto, no intuito de facilitar tanto o convite a determinados arquitetos como a abertura de concursos para a urbanização e edificação das quadras que não fossem projetadas pela Divisão de Arquitetura da própria Companhia. E sugiro ainda que a aprovação dos projetos se processe em duas etapas, -- anteprojeto e projeto definitivo, no intuito de permitir seleção prévia e melhor controle da qualidade das construções.

            Da mesma forma quanto ao setor do varejo comercial e aos setores bancário e dos escritórios das empresas e profissões liberais, que deveriam ser projetados previamente de modo a se poderem fracionar em subsetores e unidades autônomas, sem prejuízo da integridade arquitetônica, e assim se submeterem parceladamente à venda no mercado imobiliário, podendo a construção propriamente dita, ou parte dela, correr por conta dos interessados ou da Companhia, ou ainda, conjuntamente.

            23 -- Resumindo, a solução apresentada é de fácil apreensão, pois se caracteriza pela simplicidade e clareza do risco original, o que não exclui, conforme se viu, a variedade no tratamento das partes, cada qual concebida segundo a natureza peculiar da respectiva função, resultando daí a harmonia de exigências de aparência contraditória. É assim eficiente, acolhedora e íntima. É ao mesmo tempo derramada e concisa, bucólica e urbana, lírica e funcional. O tráfego de automóveis se processa sem cruzamentos, e se restitui o chão, na justa medida, ao pedestre. E por ter o arcabouço tão claramente definido, é de fácil execução: dois eixos, dois terraplenos, uma plataforma, duas pistas largas num sentido, uma rodovia no outro, rodovia que poderá ser construída por partes, -- primeiro as faixas centrais como um trevo de cada lado, depois as pistas laterais, que avançariam com o desenvolvimento normal da cidade. As instalações teriam sempre campo livre nas faixas verdes contíguas às pistas de rolamento. As quadras seriam apenas niveladas e paisagisticamente definidas, com as respectivas cintas plantadas de grama e desde logo arborizadas, mas sem calçamento de qualquer espécie, nem meios-fios. De uma parte, técnica rodoviária; de outra, técnica paisagística de parques e jardins.

            Brasília, capital aérea e rodoviária; cidade parque. Sonho arquisecular do Patriarca.

            Projetos e prazeres

            Defensor do patrimônio, ele guardou lembranças e registros de sua história pessoal, intelectual e profissional. Projetou casas, colecionou soldadinhos e desenhou alguns móveis e vestidos para sua mulher na década de 20.

            Lembranças de meu pai

            "Querido,

            Você já foi, nós continuamos por aqui.

            Desde quando minha irmã se casou,

            15 anos antes de mim, ficamos, eu, você, nós dois, aqui neste terraço à beira-mar.

            A partir daí, neste tête à tête, estabeleceu-se um

            companheirismo em que, por razões de afinidade, as pessoas se entendem sem se falar e sem se olhar.

            Às vezes, tenho vontade de comentar alguma coisa com você, como sempre fiz. Pouco depois de você partir, quando houve homenagens em Brasília, o Nauro Esteves me contou que a primeira vez que o Juscelino falou em mudar a capital foi com o Oscar, lá nas Canoas, saindo da casa do prefeito.

            Quando eu soube disso estava morando ali pertinho, no Alto da Boavista. Que vontade de comentar com você!

            Outro dia, neste mês de fevereiro, uma manchete do Globo dizia: ‘‘EUA assumem luta contra pobreza para vencer o terror‘‘ -- me lembrou a sua ‘‘Teoria das Resultantes Convergentes’’. Pelo que entendi dessa teoria, a humanidade acaba tendendo a encontrar seu caminho no sentido do ‘‘bem de todos e felicidade geral’’ por razões que nada têm a ver com solidariedade moral, mas por imposição do ‘‘Novo Humanismo Científico e Tecnológico’’.

            Me lembro de tantas ocasiões.

            Quando, na primeira viagem à Europa, aos 8 anos de idade, eu tinha que visitar os museus e igrejas antigas, o meu único desejo era bombardeá-las todas. No entanto, hoje em dia, tenho paixão por arte e antigüidades. Penso que você ficaria feliz de ter deixado móveis antigos para quem gosta tanto deles.

            Mais tarde, em outras viagens, seus amigos se tornaram meus amigos como se não houvesse diferença de idade. O Murilo Mendes e a Saudade, em Roma, o Pierre Ghali no Cairo, a Charlotte Perriand em Paris. Quando fui pela primeira vez a St. Tropez em setembro de 1962, com você, chegamos de noite e nos perdemos seguindo na direção das praias. Chegando enfim ao porto, não sabíamos onde jantar. Vimos o Sacha Distel entrando num restaurante e fomos ao mesmo. Neste mesmo ano, estivemos também em Moscou, onde você pela primeira vez na vida se sentiu velho de verdade. É que num ônibus, uma linda jovem soviética lhe cedeu o lugar dela.

            Você, sempre sensível à beleza, graças a Deus nos ensinou a ver: ‘‘Olha!’’ ‘‘Presta atenção!’’

            Lembro no hotel em Montaná, na Suíça, a sua revolta (discreta) em relação a uma faxineira: ‘‘Tão graciosa e tem que ficar ali esfregando o chão’’.

            Voltando ao presente, já que as lembranças são sem fim, me parece que você ficaria muito feliz em saber que criamos a Casa de Lucio Costa. A sede vai ser, graças ao Cândido Mendes e ao empenho do nosso querido Jorge Hue, naquela casa antiga do alto do Cosme Velho que tem abacaxis nas sacadas, e que pertenceu ao seu amigo Marcos Carneiro de Mendonça.

            E como despedida quero contar que a Luiza outro dia me perguntou: ‘‘O que é Deus para você?’’ Tentei me concentrar para responder bem a uma pergunta dessas vinda de uma filha, e disse a ela: ‘‘É uma dimensão dentro de mim.’’

            Há muitos anos atrás você contava que o Aleijadinho,

            já muito doente, pedia que o Senhor lhe pisasse os seus divinos pés. Quando você já estava na última etapa da sua vida, aquela fase tão sacrificada, entrei no seu quarto e fui acolhida com uma expressão tão carinhosa, que se tornou inesquecível para mim.

            Você foi uma das coisas boas da minha vida. Sua doçura e seu amor estarão sempre comigo.

            Um beijo,

            Helena"

            

            Linhas cruzadas

            
            O convívio profissional e pessoal de Lucio Costa com o arquiteto Le Corbusier abre uma janela para que se conheça um pouco mais da personalidade do criador de Brasília. Conheceram-se em 1936, quando o brasileiro quis trazê-lo ao Rio de Janeiro para que desse palpites no projeto do prédio do Ministério da Educação e Saúde Pública.

            O então ministro Gustavo Capanema não gostara do resultado do concurso que havia feito para escolher o projeto. Pagou o prêmio ao vencedor e pediu outro projeto a Lucio Costa -- era a oportunidade de o arquiteto pôr em prática os cinco pontos da arquitetura moderna estabelecidos por Le Corbusier: térreo com pilotis, estrutura independente, aberturas horizontais, terraço-jardim e fachada livre, como cita o arquiteto Guilherme Wisnik.

            O convidado abriu mão do direito de fazer o projeto sozinho. ‘‘As circunstâncias pediam um grupo’’, explicou mais tarde. Montada a equipe -- todos receberam, igualitariamente, um conto de réis por mês --, fizeram um projeto inicial, mas Lucio encasquetou: queria a interferência direta do mestre da arquitetura moderna. ‘‘Queríamos ter a confirmação que o de que o projeto fosse de pleno agrado de Le Corbusier’’. Falou a Capanema de seus propósitos, mas o ministro disse que era impossível convencer o presidente Getúlio Vargas da vinda de um estrangeiro ao Brasil.  
O arquiteto insistiu tanto que o ministro Capanema achou uma saída: ‘‘Eu levo você ao Vargas, e você explica. Eu não tenho condições de propor isso. O projeto que vocês fizeram está agradando.’’ Foram ao presidente. ‘‘O ministro está muito satisfeito com o projeto que você fez. Por que eu vou chamar um estrangeiro?’’, reagiu Vargas. Tomado por sua devoção às idéias de Le Corbusier, Lucio Costa empenhou-se num discurso apaixonado até que sentiu alguém lhe puxar o paletó. Era Capanema, sugerindo modos ao arquiteto. ‘‘Chamem o homem’’, concordou Getúlio Vargas.  
No mês que passou no Brasil, Le Corbusier fez um risco para o Ministério -- mas queria que o prédio fosse construído à beira-mar, e não no terreno escolhido pelo governo. Capanema não aceitou a exigência e o franco-suíço deixou no Brasil o projeto de um edifício baixo e alongado que serviu de base ao projeto definitivo. Deu aulas, fez o projeto da cidade universitária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (mais tarde rejeitado) e conviveu de perto com a equipe brasileira. ‘‘Foi durante esse curto mas assíduo convívio de quatro semanas que o gênio incubado de Oscar Niemeyer aflorou’’, contou Lucio Costa.

            Concluído o novo projeto, os arquitetos brasileiros enviaram cópias, fotografias e maquetes para o franco-suíço, que respondeu: ‘‘Seu palácio do Ministério da Educação me parece excelente. Quero dizer com isso: animado de um espírito clarividente, consciente dos objetivos -- servir e emocionar. (...) Meus parabéns, meu ‘‘OK’’ (como vocês pedem).’’

            Algum tempo depois, quando as revistas estrangeiras especializadas começaram a elogiar o prédio do Ministério da Educação do Brasil como obra exemplar da arquitetura moderna, Le Corbusier enciumou-se e andou declarando que o projeto original era dele. Mais que isso: fez um esboço do edifício baseado em fotos da obra pronta e publicou como se fosse o risco original.  
Foi então que Lucio Costa mandou-lhe uma correspondência na qual reagia duramente às insinuações de seu mestre. Depois de lembrar que o nome de Le Corbusier estava gravado em placa incrustada no prédio construído, conclui:  
‘‘Aliás, nunca deixamos de vincular diretamente a você o admirável impulso da arquitetura brasileira: se a floração é bela, deveria lhe dar prazer, pois o tronco e as raízes -- são você.

            ‘‘Mas, se é dinheiro que se trata, permito-me levar ao seu conhecimento que, durante as quatro semanas de sua estadia aqui, recebeu mais de que nós outros durante os seis anos que durou o trabalho, pois éramos seis arquitetos, e apesar das contribuições individuais serem desiguais, os honorários sempre foram divididos igualmente entre nós.

            ‘‘P.S. O esboço feito a posteriori, baseado em fotos do edifício construído, e que você publicou como se se tratasse de proposição original, nos causou a todos uma penosa impressão.’’

            Com essa reação implacável, era de se esperar o fim de qualquer vínculo entre os dois arquitetos. Mas o contato se reestabeleceu e um ano depois Le Corbusier mandou-lhe um livro com uma dedicatória de reconciliação: ‘‘Pour Lucio Costa, l’homme de couer e l’homme d’esprit. Avec mon amitié, Le Corbusier’’ (Para Lucio Costa, um homem de coração e de espírito. Com minha amizade...).  
Ao longo dos anos, até a morte de Le Corbusier, em 1965, os dois mestres da arquitetura moderna cultivaram forte vínculo pessoal. Nas pesquisas que tem feito para o documentário O Risco, o cineasta Geraldo Motta Filho encontrou uma carta de Lucio a Le Corbusier, no museu dedicado ao arquiteto franco-suíço, em Paris. Nela, o brasileiro derrama a sua dor mais profunda pela morte da mulher. (Conceição Freitas)  

                        
            Cronologia
             
            27 de fevereiro de 1902 Nasce em Toulon, na França. É registrado no consulado brasileiro em Marselha.

            1909 Seus pais, Joaquim Ribeiro da Costa e Alina Ferreira da Costa, ganham um lote no Leme. Moram um ano nesse endereço.

            1910 A família embarca para a Inglaterra.

            1914 Da Inglaterra, segue para Paris. Com a guerra, vai para Montreux, Suíça.

            1916 Volta ao Brasil e é matriculado pelo pai na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, que queria ter um filho artista. Lucio prefere Arquitetura.

            1922 Visita Diamantina (MG), viagem que lhe faz descobrir a verdadeira arquitetura colonial brasileira.

            1926 ‘‘Por motivos sentimentais insolúveis’’, Lucio Costa resolve viajar. Passa um ano na Europa.

            1927 Doente do pulmão, é internado na Villa Igreja, nos arredores de Roma.

            1929 Casa-se com Julieta Guimarães.

            1930 É nomeado diretor da Escola Nacional de Belas Artes.

            1931 Dá novo rumo ao Salão Nacional de Belas Artes.

            1936 Chefia equipe de arquitetos que desenvolve projeto para o Ministério da Educação e Saúde Pública do Rio de Janeiro, a partir de estudo preliminar de Le Corbusier.

            1937 É nomeado chefe de setor da divisão de Estudos e Tombamento do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).

            1938 Leva Oscar Niemeyer consigo para juntos desenharem o Pavilhão do Brasil na New York World’s Fair (Feira Mundial de Nova York).

            1948 Projeta o Parque Guinle, no Rio de Janeiro, primeiro traço do que depois desembocaria nas superquadras do Plano Piloto de Brasília. Projeta também o Park Hotel em Friburgo, Rio. Muda-se para a cobertura da avenida Delfim Moreira, onde morou até sua morte.

            1952 Faz o projeto para a Casa do Estudante Brasileiro, na Cidade Universitária de Paris.

            1954 Perde a mulher num acidente.

            1957 Vence o concurso para a construção de Brasília.

            1960 É agraciado com o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Harvard, Estados Unidos.

            1964 Faz o pavilhão do Brasil para a XIII Trienal de Milão, cujos símbolos eram a rede e o violão.

            1965 Morre Le Corbusier. Lucio Costa comparece ao funeral, em Menton, na França.

            1969 Cria o plano diretor para a reurbanização da Baixada de Jacarepaguá, que inclui a Barra da Tijuca, no Rio.

            1970 Agraciado pelo presidente George Pompidou com a Legião de Honra no grau de Commandeur.

            1976 Participa da concorrência para a construção da nova capital da Nigéria. A proposta não é levada adiante.

            1987 Apresenta Brasília Revisitada, no qual pede que se respeitem as quatro escalas que estiveram na concepção da cidade (monumental, residencial, gregária e bucólica).

            1989 Recebe o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Brasília.

            1998 Conclui seu livro autobiográfico Lucio Costa, Registro de uma Vivência.

            13 de junho de 1998 Morre em sua casa, no Leblon, Rio de Janeiro.

            
            

            Homenagens

            Hoje

            Conferência do professor Nestor Goulart, da Universidade de São Paulo, sobre a vida e obra de Lucio Costa, no Auditório Dois Candangos, da Universidade de Brasília, às 16h.

            Lançamento do selo comemorativo dos Correios, no Paço Imperial, Rio de Janeiro.

            Ato solene na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

            7 de março

            Abertura da Exposição Lucio Costa - 1902/2002, no Paço Imperial, no Rio de Janeiro. Serão mais de 200 itens exibidos em 12 módulos e numa sala dedicada à construção de Brasília. A exposição vai até 12 de maio.

            De 13 a 17 de maio

            Seminário internacional Um Século de Lucio Costa, no Palácio Gustavo Capanema, no Rio.

            10 de outubro

            Inauguração da exposição Lucio Costa -- 1902/2002 no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em Brasília. Vai até 24 de novembro.

            Lançamento de Medalha Comemorativa da Casa da Moeda, no CCBB, em Brasília.

            De 13 a 15 de novembro

            Homenagem em Paris, promovida pela Casa do Brasil na Cidade Universitária.

            O homem do século

            O presidente da República, o arquiteto de Brasília e o poeta amazonense escrevem sobre Lucio Costa.

            O QUE ELE ME ENSINOU

            Oscar Niemeyer

            É difícil para mim falar de Lucio Costa, sem voltar atrás -- quase setenta anos atrás --, quando comecei a trabalhar em seu escritório, no 20º andar do Edifício A Noite, na Praça Mauá, no Rio de Janeiro. E contar com esse período foi importante para a minha vida profissional.

            Com ele aprendi os segredos da arquitetura e essa maneira idealista, de total correção, que sempre exibiu. Lembro que me entusiasmava com os desenhos primorosos que fazia, as casas belíssimas que projetava e, depois, com o correr do tempo, as obras importantes que foi elaborando, como o conjunto Guinle nas Laranjeiras, o Hotel de Friburgo, o Jóquei Clube do Rio de Janeiro etc.

            Em 1936, Gustavo Capanema, então ministro da Educação e Saúde, o convidou para projetar a sede daquele ministério. Contente com o novo trabalho, Lucio organizou a sua equipe, elaborando o projeto que, com a presença de Le Corbusier, deixou de lado, para, generosamente, apoiar a solução que aquele arquiteto, muito à vontade, sugeriu e se tornou realidade.

            Coisa parecida e marcada pelo mesmo sentido de desprendimento ocorreu com o nosso amigo, quando, vencedor do concurso de projetos para o pavilhão do Brasil na Exposição de Nova York, Lucio, gostando do projeto que eu apresentara, resolveu convidar-me para com ele desenhar o projeto definitivo da cidade.

            O tempo correu. Veio Pampulha, depois Brasília. A construção do Palácio do Alvorada foi iniciada. Faltava apenas o Plano Piloto, e JK, aflito, insistia para que eu fizesse esse trabalho, que sempre recusei, ficando decidida a realização de um concurso de projetos para o Plano Piloto de Brasília. Uma comissão para o julgamento dos projetos apresentados, composta por arquitetos estrangeiros, foi organizada e os trabalho começaram.

            Foi nessa ocasião que o Institutos dos Arquitetos do Brasil (IAB) resolveu se manifestar contra o concurso, e o seu presidente procurou-me, dizendo que vinha da parte de Israel Pinheiro, que lhe declarara: ‘‘Procure o Oscar, o assunto é com ele’’. Sabíamos ele e eu que a tendência era escolher o projeto de Lucio Costa, e fui categórico, pondo fim à questão: ‘‘Vocês vão encontrar todos os obstáculos da minha parte.’’

            Hoje, fico satisfeito ao recordar esse episódio e, mais ainda, ao lembrar que fui eu quem desenhei o Espaço Lucio Costa e consegui, com o meu amigo e ex-governador de Brasília, José Aparecido de Oliveira, a sua construção na Praça dos Três Poderes.

            Era pouco em relação às inúmeras manifestações de apreço que dele recebi. Mas gostei de fazê-lo, e isso foi muito bom para mim.

            Releio o texto e sinto que alguma coisa devo dizer sobre o Plano Piloto. Que é um projeto inteligente, logicamente distribuído pelo terreno. Que as áreas de habitação são mais simples e acolhedoras, providas das escolas e do comércio local indispensáveis. E que o Eixo Monumental tão bem concebido pelo meu amigo garante a grandeza que uma capital reclama.

            Os anos passaram, coisas boas e ruins têm influído no urbanismo da nova capital. Com os que colaboraram com Lucio me solidarizo, nessa luta pela preservação do Plano Piloto de Brasília, que tanta alegria e angústias lhe deu.

            DOCE HUMANISTA

            Thiago de Mello

            Tive a alegria, que nunca se acabou, de conhecer Lucio Costa no começo dos anos 50. Fui (tomei coragem) levar meus poemas ao Carlos Drummond de Andrade, a quem também ainda não conhecia, lá no 9º andar do Ministério da Educação, no Rio de Janeiro. Drummond leu meus versos, disse que eu havia nascido com a tara, conversamos sobre o Amazonas e, no instante da despedida, o poeta me levou a um canto da sala e me apresentou a um cidadão de bigodes severos e sorriso meigo, seu companheiro de trabalho no Serviço de Patrimônio Histórico Nacional, criado e dirigido por Rodrigo M. F. de Andrade. Era Lucio Costa, a quem eu conhecia só de nome e já de fama: lera mais de uma vez o seu nome gravado numa coluna do Ministério entre os criadores do edifício.

            Ao estender a mão para me despedir do homem famoso, ele simplesmente disse: ‘‘Não, senhor. Faço questão de acompanhá-lo ao elevador!’’ Não ficou na porta do elevador. Desceu comigo e simplesmente me disse que queria ler os meus poemas, que me desse autorização para pedi-los ao Drummond. Pois foi assim: num só dia conheci duas pessoas que passaram a fazer parte de minha vida, na qual tiveram a maior importância.

            Foi convivência de quase meio século. Falávamos muito mais da vida do que da arte. Da vida do homem neste país e neste lindo e degradado lugar chamado Terra. Quando passei a visitá-lo com mais freqüência em sua casa do Leblon, Lucio comentava os fatos do dia, divulgados pela televisão. O meu amigo padecia de indignidade moral contra tudo que fere a beleza da dignidade humana.

            Lucio escrevia como um príncipe. Não era só um dos grandes arquitetos e urbanistas do século. Era um poderoso humanista. E um escritor de primeira água. Basta ler os textos que escreveu quando nomeado diretor da Escola de Belas Artes, os seus ensaios sobre arquitetura brasileira (um deles traduzi e publiquei no Chile quando fui adido cultural naquele país). O livro que nos deixou, sobre sua vida e sua obra, é desses que nenhuma pessoa que se pretenda culta pode deixar de ler. É uma luminosa lição.

            Gostava e pedia que eu lhe dissesse poemas, em voz alta. Falava da qualidade musical e do ‘‘timbre intimista’’ de minha voz. Durante os anos em que escreveu sua autobiografia, eu lia para ele trechos que ele acabara de escrever. Estar com Lucio, ouvir a sua voz cheia de sabedoria e de doçura, foi uma das grandes bênçãos de minha vida. Ficou feliz quando lhe disse que Joaquim Cardozo, só conhecido como engenheiro-calculista, era um de meus poetas prediletos. Era também o dele.

            Quando voltei do exílio e saí da cadeia, disse, em entrevista coletiva, que ia viver na minha floresta, que queria ter minha casa lá. Uns três dias depois, Lucio me chamou e disse ‘‘Venha buscar a sua casa porque ela já está pronta’’. Um dia, levei a ele fotos da casa em construção. Ele me agradeceu tão efusivamente como se fosse um principiante vendo seu primeiro projeto em execução. Eu é que deveria agradecê-lo. Nunca teria dinheiro para pagar à altura um projeto de Lucio Costa. Divulgada em reportagens em reportagens pela imprensa ou em revistas especializadas, nacionais ou estrangeiras, é considerada uma bela obra-prima.

            Depois Lucio projetou uma segunda casa, que construí num lugar mais silencioso, na beira do rio Andirá; e um pavilhão que termina por uma torre, para abrigar biblioteca e museu. Em toda a Amazônia são os únicos projetos de Lucio desenhados e edificados.

            Era a pessoa mais delicada que já conheci. Era a delicadeza em toda a sua riqueza e profundidade. O respeito que tinha por si próprio e pelo seu trabalho lhe advinha do superior respeito pelo ser humano. Por toda e qualquer pessoa que conhecia.

            O ARQUITETO DA HISTÓRIA

            Fernando Henrique Cardoso

            Neste 27 de fevereiro, comemoramos o centenário de nascimento de Lucio Costa. Seu legado inspirador é de tal ordem que chega a ser quase injusto associar seu nome apenas à construção de Brasília. O fato é que, ainda que jamais tivesse estado envolvido no projeto da construção da nova capital, Lucio Costa teria deixado sua marca como um dos maiores arquitetos brasileiros.

            Sua atuação inovadora à frente da Escola Nacional de Belas Artes, para dar apenas em exemplo, se expressa em gestos concretos como a reformulação, ainda em 1931, do Salão Nacional de Belas Artes. Como a consolidar o modernismo que se aproximava de completar sua primeira década de existência, Lucio Costa convida para o júri do Salão artistas da estatura de Anita Malfatti e Manuel Bandeira. O compromisso de Lucio Costa com a afirmação de uma estética nacional independente e sintonizada com seu tempo já ali se manifestava de forma clara. Com a construção de Brasília, Lucio Costa reafirma em escala monumental este compromisso. Deixa de ser um dos maiores arquitetos brasileiros, para transformar-se em um dos mais importantes criadores de nossos tempos. Sua obra é viva; seu traço, somos nós que o percorremos e o completamos, nós que temos em Brasília uma capital de que se orgulha cada brasileiro.

            Ao pensar em Lucio Costa, emociona perceber como -- fiel à própria harmonia de seu traço -- nele se integram em perfeita sintonia uma trajetória pública coroada pelo mais indiscutível e reconhecido êxito com uma discrição pessoal que apenas o engrandece ainda mais. Lembro-me do orgulho com que Lucio insistia em sublinhar que seu projeto para Brasília fora escolhido em concurso público. Sua vocação era a de servir ao Brasil.

            Em seu projeto, cuja apresentação é precedida por um pedido de desculpas à comissão julgadora, Lucio Costa descreve sua concepção narrando que ela ‘‘nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto...’’ Imaginava Lucio que esse gesto primário se desenhava apenas no espaço em que logo surgiria Brasília. Sua modéstia o traiu. A verdade é que sua lição foi aprendida e a mesma coragem com que assinalou um lugar, a sociedade brasileira construiu um futuro. Com gesto decidido, somos um povo que ao longo dos anos foi capaz de transformar-se, de erguer um país à altura de nossos mais generosos sonhos de justiça e felicidade. O Brasil de hoje é um país que se orgulha de uma trajetória ao longo da qual conquistamos a liberdade, asseguramos a estabilidade e, sobretudo, fomos capazes de construir uma rede de proteção social que ampara cada brasileiro que dela necessite. A prosperidade, aqui, deve ser em benefício de todos. Em sua inspiração, Lucio Costa desenhou uma capital de vastos espaços, uma capital para todos. Sob sua inspiração, os brasileiros vamos construindo um futuro igualmente amplo, um futuro também para todos.

            Obrigado, Lucio.


            Modelo15/8/248:01



Este texto não substitui o publicado no DSF de 28/02/2002 - Página 1025