Discurso durante a Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Análise sobre o aumento da criminalidade e da violência no Brasil.

Autor
Jefferson Peres (PDT - Partido Democrático Trabalhista/AM)
Nome completo: José Jefferson Carpinteiro Peres
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SEGURANÇA PUBLICA.:
  • Análise sobre o aumento da criminalidade e da violência no Brasil.
Publicação
Publicação no DSF de 28/02/2002 - Página 1070
Assunto
Outros > SEGURANÇA PUBLICA.
Indexação
  • GRAVIDADE, AUMENTO, VIOLENCIA, BRASIL, ANALISE, DADOS, HOMICIDIO, SEQUESTRO, CRIME ORGANIZADO, CORRUPÇÃO, FALTA, INTEGRAÇÃO, POLICIA CIVIL, POLICIA MILITAR, IMPUNIDADE, INSUFICIENCIA, SISTEMA PENITENCIARIO.
  • RECLAMAÇÃO, POPULAÇÃO, AUSENCIA, SOLUÇÃO, CRISE, SEGURANÇA PUBLICA, FALTA, RESPONSABILIDADE, UNIÃO FEDERAL, ESTADOS, MUNICIPIOS, ANALISE, AVALIAÇÃO, INEFICACIA, PROVIDENCIA, GOVERNO.
  • EXPECTATIVA, ATUAÇÃO, CONGRESSO NACIONAL, COMISSÃO MISTA, SEGURANÇA PUBLICA.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. JEFFERSON PÉRES (Bloco/PDT - AM) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, quero iniciar este ano legislativo repercutindo o clamor dos brasileiros de todas as classes e regiões contra a gigantesca espiral de criminalidade e violência que não pára de aterrorizar a sociedade e ensangüentar o país.

            Os traumas provocados recentemente pelas execuções do prefeito de Santo André, Celso Daniel; do promotor de Justiça mineiro Francisco José Lins do Rêgo; e pelo seqüestro do publicitário Washington Olivetto - este, felizmente, libertado com vida após dois meses de cativeiro - funcionaram como a gota que fez transbordar o cálice da paciência de um povo cuja massa de cidadãos comuns durante anos a fio nos vinha amargando as afiliações e os horrores agora compartilhados por membros das elites política, empresarial e dos formadores de opinião.

            Os números dessa verdadeira epidemia não poderiam ser piores. Bogotá já cedeu a São Paulo o trágico primeiro lugar como capital mundial do homicídio. No ano passado, a taxa de assassinados da capital colombiana chegou a 34,8 por 100 mil habitantes, contra um índice de 57,4 na maior metrópole brasileira.

            Nesse meio tempo, os seqüestros avançaram em ritmo exponencial. De acordo com dados da Secretaria Estadual de Segurança Pública, as 13 ocorrências de 1999, transformaram-se em 39 no ano seguinte, até saltaram para os inacreditáveis 251 de 2001! E olhem que tais cifras não incluem a nova praga dos seqüestros-relâmpago, perpetrados por uma ralé de bandidos munidos tão-somente de algumas armas, um carro e um barraco, contra vítimas de classe média, microempresários, ou mesmo trabalhadores, envolvendo resgates que variam entre 500 e 20 mil reais.

            O pior, Sr. Presidente, é que, independentemente da modalidade criminosa, estima-se que os dados oficiais disponíveis representem uma modesta parcela de 20% do total real de ocorrências.

            Seja porque a “banda podre” das polícias recebe propina para acobertar os barões do tráfico de armas e de drogas; ou porque a desarticulação institucional e a rivalidade corporativa impedem que as polícias militar e civil (respectivamente encarregadas da vigilância ostensiva e das providências investigativas) partilhem informações e unam eficazmente suas forças; ou, ainda, porque a máquina da Justiça Penal permanece emperrada e o caos da superpopulação carcerária é a regra absoluta, o fato é que, de cada 100 delitos graves, apenas 24 suspeitos são presos; somente 2,5% dos autores de homicídios são descobertos; e ridículo 1% dos condenados paga até o fim sua dívida para com a sociedade.

            Ninguém se admire, portanto, de que uma cidadania cada vez mais descrente desista de formalizar suas queixas.

            A impunidade daí resultante só pode mesmo estimular a explosão do crime, a cada mês, a cada semana, a cada dia.

            Não é preciso ser um expoente da criminologia para perceber que as propostas de alongamento das penas ou de incorporação de novas modalidades à lista dos delitos hediondos, febrilmente desfraldadas como panacéias em momentos desesperados como este, de pouco ou nada valerão para solucionar o problema. De que adianta uma longa pena se é pequeníssima a probabilidade de o criminoso vir a cumpri-la?

            Enquanto os benefícios da delinqüência forem tão palpáveis e os custos do castigo tão rarefeitos, os negócios do “Crime S/A” seguirão crescendo prósperos e imperturbáveis.

            No entanto, Sr. Presidente, a questão assume de vez a forma de um pesadelo kafkiano quando nossa imaginação mais delirante visita, por um átimo, a hipótese utópica do fim da impunidade, do dia para a noite! Sim, porque onde jogar esse contingente de sentenciados, enormemente acrescido, se os presídios continuam superlotados, verdadeiras universidades do crime, etapa culminante de uma trajetória sociopatológica que começa nos “jardins de infância” das inenarráveis Febens?!? Dali, além das regulares e sangrentas rebeliões incendiadas por audaciosos “comandos”, só se pode esperar mesmo a reprodução ampliada do banditismo mediante o convívio promíscuo de facínoras de altíssima periculosidade com delinqüentes primários, em sua maioria ainda passíveis de reabilitação se ao menos existisse um programa de penas alternativas digno deste nome...

            Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, ao povo tanto se lhe dá se a presente onda de crimes é um problema adscrito à órbita federal, estadual, ou municipal; se os assassinos de Celso Daniel e de outro prefeito petista, Antônio da Costa Santos (o Toninho do PT), de Campinas, ou os seqüestradores de Washington Olivetto tiveram motivações político-ideológicas ou meramente pecuniárias; se a repressão e a prevenção da violência delinqüente são tarefas da PM ou da Polícia Civil.

            A sociedade já faz muito mais do que seria razoável para a própria sobrevivência competitiva da economia nacional, permitindo a extração de mais de um terço do que produz com o suor do seu rosto, sob a forma de uma estonteante panóplia de impostos, taxas e contribuições.

            O povo, minhas senhoras e meus senhores, exige do poder público - e aqui me refiro às três esferas e aos três níveis de governo - a pura e simples restauração do mais elementar dos direitos humanos, o direito de viver, trabalhar, estudar, ir e vir em paz a qualquer hora no dia ou da noite; o direito à tranqüilidade no lar; o direito de reconquistar as vias públicas, privatizadas por gangues de assaltantes, quadrilhas de seqüestradores e exércitos de narcotraficantes.

            Quem estiver sinceramente preocupado com o pleito deste ano deverá compreender que a nação não tolera mais o “jogo de empurra” que está desmoralizando o debate sobre a segurança pública neste país.

            Comecemos por analisar a parcela de responsabilidade que cabe ao Executivo federal. Ela não é pequena; afinal, vivemos sob regime presidencialista, fortemente enraizado nas tradições de uma cultura política centralizadora.

            O que tem feito o governo federal diante desta avassaladora maré de delinqüência? Muito pouco, além de reagir por espasmos sempre que a epidemia atinge novos e maiores auges e captura as manchetes da mídia, cobrando providências urgentes.

            Se não, vejamos: em meados de 2000, o seqüestro de um ônibus no Rio, cujo desfecho foi o bárbaro assassinato de uma jovem passageira, motivou o lançamento do primeiro Plano Nacional de Segurança Pública, anunciado com pompa e circunstância pelo Palácio do Planalto e o Ministério da Justiça. Menos de um ano depois, uma rebelião em série dos presídios paulistas ensejou a “segunda edição” desse mesmo plano.

            Agora, que o governo acaba de divulgar uma “terceira edição”, cabe uma avaliação, por mínima que seja, dos resultados alcançados pelas duas anteriores.

            Ora, os números da execução orçamentária mostram que os compromissos solenes com a tranqüilidade do cidadão empalidecem quando um valor mais alto se alevanta, no caso o cumprimento minudente do arrocho recessivo acertado com o Fundo Monetário Internacional.

            Assim, no ano passado, as despesas da Segurança Pública ficaram aquém do programado. Se o Orçamento Geral da União previa 2,5 bilhões de reais para o setor, apenas 1,85 bilhão foi empenhado e tão-somente 1,6 bilhão acabou sendo pago. Um elenco de providências destinadas à prevenção do crime organizado - aquelas mesmas iniciativas que voltam a ser vedetes na versão 2002 do plano, a exemplo de sistemas de inteligência baseados em alta tecnologia de processamento e transmissão de dados interligando as polícias estaduais e a polícia federal - em 2001, apesar dos 16,7 milhões de reais previstos, tiveram empenhados 8,3 milhões, ou menos que a metade. Minúscula parcela de 464 mil reais foi gasta no reequipamento das polícias rodoviárias (prioridade absoluta no combate à explosão do roubo de cargas nas estradas), ante os 12,2 milhões que haviam sido orçados.

            Quanto ao policiamento comunitário, Sr. Presidente, fator decisivo nos projetos vitoriosos de redução da criminalidade em vários países do mundo desenvolvido, de uma dotação original de 140,4 milhões de reais, 9 milhões foram remanejados para outras rubricas; 80,2 milhões foram empenhados; e somente 62,4 milhões foram pagos.

            Vale acrescentar que, na famosa lista de 52 projetos que o governo escolheu para marcar os últimos dois anos da presidência Fernando Henrique Cardoso, apenas um se refere à Segurança Pública e está orçado em 947,16 milhões de reais, do total de 67,2 bilhões, destinado ao chamado Avança Brasil.

            A meu ver, contudo, esse sistemático subfinanciamento não é sequer o principal obstáculo à concretização das intenções governamentais. Muito mais grave que a deficiência quantitativa de recursos me parece ser a falta de um rumo definido, a ausência de uma orientação estratégica.

            Afinal, quem confunde um plano com um rol de desejos bem-intencionados, montado de afogadilho em resposta à tragédia da hora, na tentativa de apaziguar o clamor da opinião pública, até que incidentes domésticos ou internacionais de outra ordem desviem mais uma vez sua atenção, quem faz isso - repito - pode até passar “de raspão” no vestibular de marketing político, mas será inapelavelmente reprovado em qualquer teste de planejamento, com suas exigências básicas de metas específicas, dotações suficientes, prazos rigorosos e critérios objetivos de mensuração dos resultados.

            Em um nível mais profundo, estrutural, penso que o governo não deveria desvencilhar-se de uma autocrítica, reconhecendo que existe, sim, uma simbiose entre a curva ascendente da criminalidade e o gráfico de estagnação e crescimento medíocre do Produto Interno Bruto nos últimos sete anos, o que agravou o cenário com taxas de desemprego inéditas em cidades industriais como São Paulo, Campinas e os municípios do chamado ABC, hoje mergulhadas em um inferno de violência e insegurança. Não se trata, eu insisto, de mera coincidência. Desde que o Sr. Fernando Henrique Cardoso assumiu o Ministério da Fazenda a convite de Itamar Franco até hoje, a renda per capita exibiu um tímido crescimento médio de 1,36% ao ano, pouco mais da metade da taxa verificada no perto do 1965/1999. Isso acrescentou 3,7 milhões de pessoas ao estoque nacional de desempregados, que agora encosta na marca recorde de 8 milhões de homens e mulheres sem trabalho.

            Nos seis anos entre 1993 e 1999, enquanto a taxa de desemprego aberto aumentou 53,2%, a renda per capita limitou-se a crescer 11,6%.

            Obviamente, não proponho nenhuma associação simplista e mecânica entre o “econômico” e o “social”. Incorrer nessa falácia nos conduziria ao raciocínio absurdo e injusto de que todo pobre é um ladrão ou assassino em potencial, quando sabemos que, na realidade, o cidadão mais humilde, morador da periferia desassistida, é a vítima mais provável e freqüente do banditismo desenfreado, já que não pode proteger-se da violência atrás das cercas eletrificadas de condomínios exclusivos ou da blindagem de carros luxuosos.

            Quero tão-somente indicar, Sr. Presidente, que o colapso das expectativas de ascensão socioeconômica e profissional de milhões de jovens barrados na entrada do mercado de trabalho, em conjugação com os valores aquisitivos e materialistas obsessivamente disseminados pela publicidade, constitui ingrediente do nosso caos cotidiano, por menos disposto que o governo se mostre a reconhecer a contribuição do modelo econômico vigente para esse venenoso caldo de cultura.

            Mas qual! O presidente prefere navegar ao largo dessa discussão, lançando a culpa no Congresso Nacional. É a omissão premeditada no feitio daquele “jogo de empurra” que há pouco referi.

            No aparatoso evento da inauguração de dois centros integrados de operações de segurança (Ciops) em cidades do violento entorno do Distrito Federal, Sua Excelência queixou-se da paralisia decisória do parlamento, desafiando-o a votar, a toque de caixa, seis dezenas de projetos de lei e emendas constitucionais atinentes à segurança pública. (Aliás, quem elege 60 “prioridades” demonstra que ignora até mesmo por onde começar...).

            Curioso! O governo dispõe de confortável maioria nas duas Casas, a qual com raríssimas exceções sempre lhe garantiu vitórias esmagadoras nas votações dos últimos sete anos. Por que essa maioria não foi acionada até agora para atacar um problema cuja prioridade é consenso antigo na sociedade brasileira?

            Mas, há pequenos gestos muito mais reveladores da sinceridade - ou insinceridade - dos governantes do que milhares de eloqüentes discursos. Ao fim daquela mesma cerimônia em que o Presidente da República atacou a inércia congressual e enalteceu as virtudes da ação e da “vontade política” no combate ao crime, os jornalistas que ali permaneceram descobriram que o centro de unificação do trabalho das polícias militar e civil não passava de um cenário, desmontado poucas horas depois. Computadores e outros equipamentos foram dali levados de volta às delegacias, quartéis e bases do corpo de bombeiros que os haviam emprestado... Sem comentários.

            Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, os governos dos Estados também aderiram alegremente ao “jogo de empurra” - e não apenas nessa área, como revela o recente bate-boca entre Anthony Garotinho e o ministro da Saúde José Serra acerca da responsabilidade federal ou estadual sobre o mosquito da dengue, enquanto a população fluminense sofre com a pior epidemia da última década.

            No tocante à segurança pública, os senhores governadores decantam em prosa e verso a unificação das polícias, o que, somente no estado de São Paulo, traria uma economia anual de 250 milhões de reais. Mas, até agora, ninguém demonstrou coragem, visão e vontade suficientes para tirar a idéia do papel. Afinal, para que, se é mais fácil, novamente, empurrar a culpa para o Congresso?...

            Não quero concluir minha fala, Sr. Presidente, sem deixar bem claro que nós, parlamentares, temos sérias responsabilidades no enfrentamento da questão e que, para bem cumpri-las, devemos antes que tudo, calçar as sandálias da humildade numa sincera autocrítica.

            Reconheçamos, pois, que as cerca de 245 proposições em tramitação neste Senado e na Câmara dos Deputados não se limitam a refletir o terror e a insegurança que tomam conta do povo. Essa profusão de propostas, desafortunadamente, é também sintomática das disputas entre lobbies corporativistas dos diversos segmentos policiais que, não raro, mostram-se mais preocupados consigo próprios do que com o bem comum.

            Claro que o policial precisa ser condignamente remunerado e também contar com benefícios adicionais de assistência à saúde, à educação e à habitação para si e sua família, compatíveis com as enormes exigências físicas e psíquicas da missão exercida.

            O que questiono é que uma preciosa proporção de 20% do efetivo das PMs permaneça nos quartéis em funções burocrático-militares, quando nunca foi tão premente a necessidade de polícia nas ruas.

            O que lamento é a disparidade entre os vencimentos de oficiais e delegados, de um lado, e os magros proventos de praças e investigadores, de outro.

            O que condeno são as rivalidades e ciumeiras que consomem tempo e energia preciosos, enquanto, bem o lembra a ex-deputada Sandra Cavalcanti, em inspirado artigo no jornal O Estado de S. Paulo, o cidadão continua carente “de uma rede de locais de fácil acesso, abertos dia e noite, para queixas e reclamações, registros de ocorrências ou denúncias graves, paralelamente a um policiamento ostensivo e intensivo [...], uniformizado ou à paisana, reprimindo [e prevenindo] roubos, furtos, agressões, desrespeito às leis, atentados ao pudor, prejuízos ao patrimônio, público ou privado, prática de atividades ilegais, desordens”, e assim por diante.

            Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a decisão dos presidentes do Senado, Ramez Tebet, e da Câmara, Aécio Neves, de constituir comissão especial mista para examinar, classificar, sistematizar e ordenar prioritariamente os PLs e PECs relativos à Segurança Pública, mostra que o Congresso Nacional nunca esteve tão disposto a dar uma resposta eficaz e sincera aos reclamos do povo.

            De agora em diante, que Deus e nossa consciência cívica e moral nos inspirem no cumprimento dessa importantíssima e inadiável tarefa, tomando o interesse público por exclusivo critério das nossas deliberações, sem cair no canto de sereia do corporativismo, nem ceder à tentação desmoralizadora e suicida do “jogo de empurra”.

            Muito obrigado.


            Modelo15/8/249:55



Este texto não substitui o publicado no DSF de 28/02/2002 - Página 1070