Discurso durante a 12ª Sessão Especial, no Senado Federal

Homenagem a memória do Governador, ex-Senador, ex-Deputado Federal e ex-Constituinte Mário Covas, falecido no dia 6 de março de 2001.

Autor
Jefferson Peres (PDT - Partido Democrático Trabalhista/AM)
Nome completo: José Jefferson Carpinteiro Peres
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem a memória do Governador, ex-Senador, ex-Deputado Federal e ex-Constituinte Mário Covas, falecido no dia 6 de março de 2001.
Publicação
Publicação no DSF de 06/03/2002 - Página 1422
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE MORTE, MARIO COVAS, GOVERNADOR, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), EX SENADOR, EX-DEPUTADO, ELOGIO, VIDA PUBLICA.
  • ANALISE, POLITICA NACIONAL, DEFESA, VALORIZAÇÃO, ETICA, LEGISLATIVO.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. JEFFERSON PÉRES (Bloco/PDT - AM. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Sr. Governador Geraldo Alckmin, Srªs e Srs. Parlamentares, convidados e parentes, seria inútil, porque repetitivo, enaltecer as conhecidas virtudes do homenageado de hoje, proclamadas à exaustão nos incontáveis artigos, crônicas e reportagens que lhe foram dedicados, desde que finalmente nos deixou. Por igual, cansativa se tornaria a enumeração dos seus dados biográficos, também amplamente conhecidos, em razão de sua vida pública de projeção nacional, e esmiuçados por quantos dele se ocuparam nos últimos doze meses.

            Muito me agradaria trazer confidências reveladoras de fatos desconhecidos de sua vida, tanto das suas passagens felizes quanto dos seus dramáticos derradeiros dias. Bem que eu gostaria de poder desvendar, sem comprometê-lo, sua angustiada espera da indesejada das gentes, como lhe chamou Bandeira. Ao meu conhecimento chegou, haurido de uma notícia de jornal, apenas um fiapo, a me dar conta de um momento da sua última temporada de praia. Ali, alguém o teria surpreendido com a vista perdida na imensidão das águas, que lhe teriam inspirado a exclamação repassada de melancolia: “Nunca mais vou ver o mar!” Na singeleza dessa frase, aquele homem forte, a ver suas lamentações e pieguices, revelava toda a sua imensa tristeza por deixar a vida. Foi como um desnudamento de alma, ainda que fugaz. Infelizmente mais não lhes posso contar porque não tive a sorte de privar da sua amizade, muito menos da sua intimidade.

            Não quis o destino tivéssemos mais do que dois breves encontros, que não permitiram sequer aprofundássemos a conversa sobre os assuntos tratados. Devo confessar-lhes que nem mesmo o visitei em sua longa enfermidade. Minha solidariedade se manifestou à distância, quando ele ainda vivia, na forma de um artigo, publicado num jornal de Manaus, que não sei se lhe chegou à mão. Morto, não compareci ao velório nem ao enterro.

            Uma ironia esse distanciamento físico de nós dois, porque me incluo, com indisfarçado orgulho, no grupo afortunado de políticos próximos espiritualmente de Mário Covas, com o qual sentia haver total identificação em termos de compromisso com a ética e o interesse público.

            Mas se não tenho revelações a fazer, nem depoimento a prestar, é de se inquirir o que me impulsionou a dividir esta hora de saudade com outros oradores porventura mais credenciados. Eu responderia que cheguei a esta tribuna sob o acicate de dois motivos a meu juízo relevantes. Um, o imperativo moral de resgatar uma dívida comigo mesmo, ao prestar publicamente tributo ao morto que reverenciei em vida. Outro, não menos imperioso, o de fazer breve, mas necessária reflexão em voz alta sobre o momento que vivemos.

            Atravessamos um tempo difícil, de fatos ominosos, que obscureceram e obscurecem o País e envolveram este Congresso numa sinistra moldura de sombra, ao invés da aura de luminosidade que deveria cercá-lo. Não vou perturbar este evento com a nomeação e a análise desses fatos numa catilinária, além de imprópria, desnecessária, porque eles ainda pairam sobre este plenário como um espectro a nos intranqüilizar e a perturbar a consciência de todos nós.

            Mas está em nossas mãos, exclusivamente nelas, de mais ninguém, o poder de exorcizá-lo ou, ao invés, de deixar que nos arraste esse espectro para o seu mundo esconso, do qual não haverá retorno. Depende de nós mesmos a perdição ou a salvação. Ou nos despenharemos numa ou nos elevaremos noutra, na medida em que saibamos ser dignos ou não da memória de Mário Covas.

            E só lhe honraremos a memória se instituirmos, como prática rotineira, passar a instituição a limpo, fazendo a tarefa que o dever nos impõe, nada prazerosa, antes pesarosa, mas que precisa ser feita, sempre que necessário, porque outro valor mais alto se alevanta.

            Se não formos sensíveis o suficiente para compreendermos que a sociedade não mais aceita a repetição de padrões de conduta antes tolerados, haveremos de provocar uma onda incontida de descontentamento, tanto mais atemorizante quanto invisível e silenciosa, sem força para fazer soçobrar as instituições, mas na qual soçobrará, com certeza, o pouco de estima que a Nação ainda possa ter pela classe política. Sim, porque passaremos à condição de atores patéticos, de um teatro mambembe, encenadores de uma pantomina sem graça, a representar para ninguém, já que o público terá voltado as costas ao espetáculo tedioso, com o desdém impiedoso de quem já não sente, pela troupe decadente, o mais leve traço de respeito.

            Vale realçar que fatos episódicos não serão bastantes. Mais do que isso, é preciso que as medidas saneadoras não sejam mera satisfação à sociedade, mas que representem um divisor de águas, marco inaugural de uma profunda mudança em nossos abastardados costumes políticos. Ou damos a esta solenidade o caráter de unção religiosa, revestida do compromisso de eliminar no Parlamento brasileiro o fosso, às vezes de enorme largueza, a separar a prédica da prática, ou toda esta louvação se transformará numa irrisão, num escárnio à memória de quem pretendemos homenagear. E aos que me perguntarem o que nos acontecerá se recairmos na cegueira do comportamento passado, direi que não tenho condições de responder. Mas recorro à ajuda dos poetas, com sua capacidade de dizer em poucas linhas o que os prosadores não conseguem exprimir em muitas páginas. E quem me socorre é Fernando Pessoa, para alertar que, se não for digno da hora presente, este Congresso será, doravante:

      Mais do que a besta sadia

      Cadáver adiado que procria.

            Aos Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, eu diria que, malcomparando, os cidadãos comuns hoje nos olham como uma espécie de ex-dependentes de drogas em clínica de recuperação. Se continuarem as ações afirmativas, seremos considerados curados. Mas se houver recaída, seremos olhados como doentes irrecuperáveis.

            Isto é o que seremos, se não tivermos feito a catarse e a contrição com o propósito de regeneração. Continuaremos com a aparência de vivos, parlapatando e procriando, mas estaremos moralmente extintos, fulminados pelo desapreço de toda a Nação, num estado de espírito muito próximo da náusea. E ao homenageado, em seu túmulo, a homenagem haverá de soar como ofensa.

            Não acompanho o entendimento de tantos outros, que viram como formidável manifestação de hipocrisia coletiva aquele desfile de políticos ante o esquife de Mário Covas, a louvar-lhe as virtudes, que muitos nunca praticaram. Prefiro acreditar que eram sinceros, sim, naquele instante, graças à afloração daquilo que há de bom nos fundos desvãos da alma de qualquer ser humano. Tenho como crença inarredável que todos somos órfãos de santidade. Haja ou não centelha divina em nossa criação, convencido estou de que em cada um de nós, por pior que seja, existe um anseio ético, uma ânsia de transcendência, um desejo de perfeição, como se fora o desejo permanente de um Santo Graal mítico e inatingível, à semelhança do horizonte que vislumbramos sem jamais alcançar. Triste não é não alcançá-lo: é não buscá-lo. Todos, no íntimo, o querem. Nenhum consegue tê-lo. A diferença está em que uns poucos se dispõem ao sacrifício de persegui-lo inflexivelmente, com coerência e determinação. Mário Covas foi um desses que o buscou sempre, sem no entanto se livrar, por certo, das imperfeições inerentes à condição humana. Foi por fazer dessa busca um ideal de vida que se tornou um ser de exceção, admirado e justamente reverenciado. Nisso residiu sua grandeza.

            Dentre as tantas manifestações de pesar pelo seu desaparecimento, publicadas na imprensa, nenhuma me pareceu mais apropriada do que a feita por um jornalista, cujo nome esqueci, ao invocar os versos famosos de Garcia Lorca em seu “Llanto por Ignácio Sanches Mejía,” popular toureiro abatido e morto pelo touro que enfrentou, no auge de sua carreira:

      Tardará mucho tiempo em nacer

      Se es que nace

      Un andaluz tan claro

      Tan rico de aventura.

            A evocação se impõe pelas evidentes similitudes dos dois personagens. Como Ignácio, Covas era também de sangue hispânico, também um toureador, também travou sua derradeira batalha contra um feroz miúra interior, e igualmente tombou ante os aplausos e o pranto da platéia comovida. Por isso, para homenagear o grande morto, cuja ausência empobrece ainda mais a tão maculada arena da nossa vida pública, nada mais adequado do que os versos, adaptados, de Lorca, com os quais encerro este doído preito de saudade:

      Vai demorar muito a nascer

      Se é que nasce

      Um homem público tão claro

      Tão rico de decência

      Como foi Mário Covas.

            Muito obrigado, Sr. Presidente. (Palmas.)

 

            


            Modelo15/8/247:38



Este texto não substitui o publicado no DSF de 06/03/2002 - Página 1422