Discurso durante a 12ª Sessão Especial, no Senado Federal

Homenagem a memória do Governador, ex-Senador, ex-Deputado Federal e ex-Constituinte Mário Covas, falecido no dia 6 de março de 2001.

Autor
Artur da Tavola (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RJ)
Nome completo: Paulo Alberto Artur da Tavola Moretzsonh Monteiro de Barros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem a memória do Governador, ex-Senador, ex-Deputado Federal e ex-Constituinte Mário Covas, falecido no dia 6 de março de 2001.
Publicação
Publicação no DSF de 06/03/2002 - Página 1426
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE MORTE, MARIO COVAS, GOVERNADOR, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), EX SENADOR, EX-DEPUTADO, ELOGIO, VIDA PUBLICA.
  • ANALISE, NECESSIDADE, ETICA, POLITICA NACIONAL.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. ARTUR DA TÁVOLA (Bloco/PSDB - RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Sr. Governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, Sr. Ministro Arthur Virgílio, Sr. Presidente da Câmara dos Deputados, Deputado Aécio Neves, Srªs e Srs. Senadores, senhoras e senhores, o tema central do discurso de todos os oradores que me antecederam foi o da figura ética de Mário Covas, o que já é um lugar-comum na vida brasileira, tal o acúmulo de exemplos que sua vida e sua ação política determinaram.

            Nesta homenagem, gostaria de abordar um pouco a questão da dignidade na política, não apenas citando-a de passagem como algo que caracterizou o cerne da ação de Mário Covas, mas buscando analisar aquilo que é uma das grandes interrogantes da vida pública e que muitos políticos, diariamente, tratam de solucionar, porque ela chega, às vezes, a ter feições de enigma.

            O que é a moral na política? Mário Covas nos leva a essa reflexão. Diariamente, os políticos usam essa palavra; diariamente, os jornais cobram essa ética; diariamente, os discursos abordam o problema. O que é, efetivamente, a moral na política? Será a moral na política a finalidade da ação política? Ou seja, faz-se política para ser moral?

            Ou será - é a primeira pergunta que cabe nesta reflexão - a questão moral o fundamento da ação política? Faz-se política não propriamente para ser-se moral, mas faz-se política por ser-se moral. Moral na política, como na vida, é, a meu juízo, o uso da dignidade humana e dos mais altos valores tanto da cidadania como da espiritualidade tanto no fundamento quanto nas finalidades. O filósofo Kant, que até hoje norteia qualquer estudo sobre ética e moral no mundo, após anos de reflexão, após estudos sobre a Metafísica - era, enfim, uma catedral de conhecimentos -, ao final da vida, negando a possibilidade de transcendência ou de metafísica como uma apropriação pelo intelecto humano, concluía, já idoso, depois de muito estudar, com este pensamento lapidar: “Acima de mim, o céu estrelado; dentro de mim, a lei moral”.

            O que Kant queria dizer com tudo isso? Se não podemos chegar ao que está além de nós pela razão, podemos chegar ao que está dentro de nós pela certeza de que, sem um comportamento moral, a vida não é possível. E dava ele alguns caminhos para que se deslindasse o que, efetivamente, é um ato moral. Um deles tem muito a ver com o nosso homenageado, tem muito a ver com o dia-a-dia da nossa atividade aqui. Dizia Kant: “É moral todo e qualquer ato que pode ser universalizado”. Estabelecia aí, portanto, um critério de um rigor e de uma grandeza absolutamente únicos. Diante da dúvida de que ato é moral - e nós, na política, todos os dias, somos desafiados por essa pergunta -, a sugestão de Kant ainda está a animar as consciências: é moral o ato que pode ser universalizado. Quanto a esse, não há dúvida de que é moral; quanto aos demais, é preciso examiná-los.

            A meu juízo, essa questão se desenvolve da seguinte maneira, e, com todas elas, Mário Covas tem a ver.

            É uma tendência da contemporaneidade supor que o problema moral na política está apenas na finalidade, ou seja, cobra-se dos políticos a ética a todo instante, os políticos se preocupam com isso, os partidos políticos, inclusive, tripulam esse discurso como seu discurso principal, supondo que apenas a ética do comportamento individual é suficiente para caracterizar uma postura ética. Ora a ética do comportamento individual é um dos fundamentos, sim, da ação política, mas não é necessariamente a sua finalidade; é um passo. Apliquemos esse passo a Mário Covas.

            Possuía ou não o nosso homenageado essa ética do comportamento individual, a compostura pessoal, a lealdade - lembrada tão bem aqui por José Serra, Pedro Simon, Eduardo Suplicy e alguns outros oradores -, a ética individual da palavra respeitada? Recordo-me de uma passagem de Mário Covas, tão comum a nós na política: “Mais vale um ‘não’ sincero do que um ‘sim’ que não se pode cumprir”. Durante muitos anos, por sugestão nossa, fundadores do PSDB do Rio de Janeiro, ela ficou na sede do Partido: “Mais vale um ‘não’ sincero do que um ‘sim’ que não se pode cumprir.” A todo instante, nos nossos comportamentos de ética individual, estamos desafiados a “sins” que não se podem cumprir, e raramente se tem efetivamente a coragem do “não”. Mário Covas tinha a coragem do “não” como tinha a certeza do “sim”. Por isso, o seu “sim” era “sim”, e o seu “não” era “não”.

            Mas a ética do comportamento individual é um passo do que me parece a completude da atitude ética na política. O segundo passo seria a ética do comportamento público. O cidadão tem uma ética de comportamento público nos seus atos, no seu bairro, na sua casa, na sua família, na sua comunidade, a sua compostura pessoal, o seu trato com os concidadãos, e o político vive mergulhado na necessidade de uma ética no comportamento público. É o chamado espírito público, é aquela capacidade de olhar por cima de interesses, sejam eleitorais, sejam pessoais, sejam políticos, sejam de carreira, e ter como norte a idéia de que a República foi proclamada exatamente com este fundamento: o da predominância do espírito público, daquilo que é de todos sobre o que é de poucos.

            Há um terceiro passo na ética que também deve ser associado, a meu juízo, à ação de Mário Covas tanto quanto esse primeiro e esse segundo, que é uma das mais difíceis e torturantes situações vividas pelo homem público e também por profissionais liberais, que é a chamada ética da responsabilidade. Quantas vezes a ética da responsabilidade esbarra dentro de nós com a nossa ética de comportamento individual! A ética da responsabilidade é aquela ética ligada ao desempenho das funções. Quantas vezes somos até obrigados a votar contra uma opinião pessoal, quando há, na finalidade desse voto, algo que está além da nossa opinião pessoal: a responsabilidade!

            E os exemplos são vários. Numa casa política, por exemplo, têm direito certos políticos a jogar a casa política no lodo para que eles se saiam como a flor do lodo? Isso é tão comum no nosso meio! Às vezes a ética individual das flores do lodo é irretorquível. Mas não estará aí sendo burlada a ética da responsabilidade, a responsabilidade também de zelar por casas parlamentares num País repleto de ditaduras ao longo de sua história, repleto de fechamentos de parlamento?

            A ética da responsabilidade é aquela que levava Mário Covas, enfermo, a enfrentar greves com o peito aberto, coragem no coração, verdade na alma. Essa é a ética da responsabilidade. Mário nos deu inúmeros exemplos dessa ética. Há a idéia de que tinha uma responsabilidade como fundador de um partido, como um governador, responsabilidade essa que faz muitos tremerem na hora em que ela se impõe e várias vezes leva muitos a se refugiarem - a palavra é essa - na ética de comportamento individual apenas porque ela preserva o político de enfrentar esse tormento, que é o tormento ético. Jung dizia, nas suas memórias, já idoso: “Nada pode livrar-nos de um diário tormento ético”. A ética é a questão central do ser humano na vida e não apenas na política.

            Finalmente existe, ao analisar-se a questão ética aplicada à política, depois dessa ética do comportamento individual, dessa ética do comportamento público e dessa ética da responsabilidade, afinal, a ética dos objetivos: para quê se faz a política. Aí não estão apenas idéias; aí está uma ética, porque são princípios éticos os que norteiam as idéias políticas, são princípios éticos os que estão na raiz das ideologias, são princípios éticos os que estão na raiz da decisão de um ser humano de seguir a classe política, não apenas para dela obter benefícios, mas, sobretudo, para escolher com clareza quais são as finalidades de sua ação. E aqui Mário Covas foi relembrado de modo magnífico por outros oradores, e eu seria redundante se voltasse.

            Quero apenas voltar aos tempos iniciais do PSDB. Naquele momento erigiu ali, queiram ou não seus opositores, uma decisão política na vida brasileira: ser um Partido de esquerda contemporâneo, que não aceita nem o Estado máximo dos totalitários nem o Estado mínimo dos liberais, mas - e usando uma expressão de Norberto Bobbio que está no Manifesto do Partido - “o Estado socialmente necessário”. Há aí uma colocação de finalidade da ação política. E vejo, treze anos depois, até com alguns desencantos no caminho, o quanto, de alguma forma, vamos conseguindo, no PSDB, manter essa linha. Há uma grande coerência por trás dessa posição e dos homens que a mantêm.

            Recordo que Mário Covas dizia, quando analisávamos juntos algumas imperfeições de A, B, C ou D, que o que importa é que o esqueleto de um partido continue unido nas suas idéias e na sua dignidade. É verdade, porque a todo instante esbarramos com desencantos passageiros, momentos de discordância. Aí está a ética das finalidades da ação política. A ação política tem uma finalidade, ela se destina a alguma coisa.

            Passando por esses quatro pontos, que podem definir, aí sim, em plenitude, o que é uma ação ética de um político, e analisando a vida de Mário Covas, podemos passo a passo compreender como ele os viveu integralmente, dentro de si; não viveu apenas na inteligência, porque um dos segredos de Mário Covas, com a sua inteligência de engenheiro, aguda, aguçada, percuciente, era a paixão - a paixão! -, que o fez entrar nas lutas, ensangüentando os flancos desde os tempos da juventude até a luta contra a doença. Essa paixão estava inerente a uma visão racional de vida. Entusiasmo, como sabem os senhores e as senhoras, etimologicamente, quer dizer com Deus dentro, (do gr. enthousiasmós). Mário Covas era um homem do entusiasmo, desde os seus maus humores insuportáveis, quando saía alguma nota no “Painel” da Folha - mau humor, aliás, que acompanha a Bancada de São Paulo, não sei por que -, até os momentos em que alegre, festeiro, vendo o Santos jogar, abraçando o companheiro, dando-lhe solidariedade, soltava aquele coração imenso.

            “Nada pode nos livrar de um diário tormento ético”, dizia Jung, e eu repito aqui. Daí o grande drama da existência que, narrado por lendas medievais, desaguou no grande Fausto, de Goethe, marco do pensamento ocidental, o homem que vendeu a alma ao diabo. O que é vender a alma ao diabo? É apenas, como no drama, entregar a alma ao diabo para que a juventude não acabe? Não! Diariamente somos desafiados a vender a alma ao diabo, no sentido pleno da palavra: um interesse aqui, um conflito político ali, visões menores da política, esmagamentos injustos, terríveis, que sofremos, às vezes, dentro dos próprios partidos. Diariamente. Todos nós. Portanto, diariamente somos desafiados a vender a alma ao diabo. É mais fácil fazer um acordo ali, um entendimento acolá. Vender a alma ao diabo é abrir-se mão do que se é em troca de algum benefício. Mário Covas jamais o fez. O forte da sua vida é que essa foi uma expressão do seu ser e não, como acontece tantas vezes, inclusive na política, o ser adaptado ao tipo de vida possível.

            E, graças a isso, ele conseguiu - muitos ficam no caminho nessa trajetória - completar a sua vida e deixar para o País esse legado, porque todos perceberam - o País percebeu, a imprensa percebeu - em profundidade que ali estava um exemplo a ser seguido.

            Há um soneto de um poeta brasileiro, por nome Luiz Carlos, que recordo, na conclusão de minha fala, porque sempre penso nele quando me lembro de Mário Covas.

            Diz o seguinte:

      Sofre, mas não declines da confiança que, sereno, puseste no futuro.

      Se és bom, tens o caminho mais seguro.

      O bem é uma subida que não cansa.

      Sofre, que o sofrimento é uma esperança em quem deseja revelar-se puro.

      Que fora o claro, se não fora o escuro.

      Sem sofrimento, a glória não se alcança.

      Não te assustem pedradas.

      Olha o mundo com os olhos virgens do relance da ira.

      Vê que o solo ferido é mais fecundo.

      E se tens n’alma o céu, por que temê-las?

      As pedras que o homem contra Deus atira,

      Ao contato do céu, tornam-se estrelas.

            Muito Obrigado. (Palmas.)

 

            


            Modelo13/28/247:43



Este texto não substitui o publicado no DSF de 06/03/2002 - Página 1426