Discurso durante a 34ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

PRESTA ESCLARECIMENTOS SOBRE AS MEDIDAS PROTECIONISTAS NORTE-AMERICANAS NO SETOR SIDERURGICO, SEUS EFEITOS NA ECONOMIA BRASILEIRA TANTO NO MERCADO INTERNO QUANTO NO COMERCIO EXTERIOR, E AS MEDIDAS QUE SERÃO ADOTADAS PELO GOVERNO BRASILEIRO, E A POSIÇÃO QUE O GOVERNO BRASILEIRO ADOTARA FRENTE AO AGRAVAMENTO DA SITUAÇÃO ENTRE PALESTINOS E ISRAELENSES NO ORIENTE MEDIO.

Autor
CELSO LAFER
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
MINISTRO DE ESTADO, CONVOCAÇÃO. POLITICA EXTERNA. COMERCIO EXTERIOR.:
  • PRESTA ESCLARECIMENTOS SOBRE AS MEDIDAS PROTECIONISTAS NORTE-AMERICANAS NO SETOR SIDERURGICO, SEUS EFEITOS NA ECONOMIA BRASILEIRA TANTO NO MERCADO INTERNO QUANTO NO COMERCIO EXTERIOR, E AS MEDIDAS QUE SERÃO ADOTADAS PELO GOVERNO BRASILEIRO, E A POSIÇÃO QUE O GOVERNO BRASILEIRO ADOTARA FRENTE AO AGRAVAMENTO DA SITUAÇÃO ENTRE PALESTINOS E ISRAELENSES NO ORIENTE MEDIO.
Publicação
Publicação no DSF de 05/04/2002 - Página 3809
Assunto
Outros > MINISTRO DE ESTADO, CONVOCAÇÃO. POLITICA EXTERNA. COMERCIO EXTERIOR.
Indexação
  • ANALISE, SITUAÇÃO, INDUSTRIA SIDERURGICA, BRASIL, EVOLUÇÃO, POSTERIORIDADE, PRIVATIZAÇÃO, INVESTIMENTO, MODERNIZAÇÃO, BENEFICIO, COMPETIÇÃO INDUSTRIAL, MAIORIA, PRODUÇÃO, ATENDIMENTO, MERCADO INTERNO, ALTERAÇÃO, CARACTERISTICA, PRODUTO EXPORTADO, REGISTRO, SUPERIORIDADE, QUALIDADE, AÇO.
  • ANALISE, CRISE, MERCADO INTERNACIONAL, AÇO, EXCEDENTE, CAPACIDADE, PRODUÇÃO, AVALIAÇÃO, SIDERURGIA, EUROPA, PAIS ESTRANGEIRO, RUSSIA, UCRANIA, CHINA, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), AMBITO, CONJUNTURA ECONOMICA, ECONOMIA INTERNACIONAL.
  • ANALISE, PROTECIONISMO, IMPORTAÇÃO, AÇO, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), LOBBY, SETOR, SIDERURGIA, AUSENCIA, MODERNIZAÇÃO, REGISTRO, AÇÃO COLETIVA, ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMERCIO (OMC), FAVORECIMENTO, BRASIL.
  • REGISTRO, PREJUIZO, EXPORTAÇÃO, AÇO, BRASIL, UTILIZAÇÃO, SALVAGUARDA, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), ALEGAÇÕES, DEFESA, COMERCIO, ANALISE, POSSIBILIDADE, CONTESTAÇÃO, DESEQUILIBRIO, ECONOMIA INTERNACIONAL.
  • ESCLARECIMENTOS, POSIÇÃO, POLITICA EXTERNA, BRASIL, REFERENCIA, EXPORTAÇÃO, AÇO, CRIAÇÃO, GRUPO DE TRABALHO INTERMINISTERIAL, ITAMARATI (MRE), MINISTERIO DO DESENVOLVIMENTO DA INDUSTRIA E DO COMERCIO EXTERIOR (MDIC), MINISTERIO DA FAZENDA (MF), PARTICIPAÇÃO, REPRESENTANTE, INDUSTRIA SIDERURGICA, ELOGIO, ARTICULAÇÃO, GOVERNO BRASILEIRO, INICIATIVA PRIVADA, TENTATIVA, DEFESA, COMPLEMENTAÇÃO, INDUSTRIA NACIONAL, SIDERURGIA, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), PROPOSTA, ALTERNATIVA, RESTRIÇÃO, ANALISE, EFEITO, NEGOCIAÇÃO, AREA DE LIVRE COMERCIO DAS AMERICAS (ALCA), REALIZAÇÃO, CONSULTA, REGISTRO, PROVIDENCIA, PRAZO, SOLUÇÃO.
  • CRITICA, UNIÃO EUROPEIA, ADOÇÃO, RESTRIÇÃO, IMPORTAÇÃO, AÇO.

O SR. CELSO LAFER - Exmº Sr. Presidente do Senado Federal, Senador Ramez Tebet, Exmos Sras e Srs. Senadores, desde a minha assunção na chefia do Itamaraty, que o Senhor Presidente da República me honrou em confiar, esta é a terceira vez que sou distinguido com a solicitação de minha presença no Plenário desta Casa. Permita-me, pois, Sr. Presidente, agradecer e louvar a iniciativa dos Srs. Senadores Paulo Hartung e Romero Jucá, que me oferecem o privilégio de dirigir-me aos membros desta Casa para expor tema de interesse nacional, no caso o tema do aço e as medidas norte-americanas. Também sei, conforme me informou o Sr. Presidente da Casa, que há requerimento dos Senadores Eduardo Suplicy, Paulo Hartung e Jefferson Péres para que se discuta a questão do Oriente Médio, a que procurarei responder no período das perguntas.

O Senado é, como todos sabemos e quero ressaltar, um foro de excelência em que são debatidas as grandes questões nacionais e internacionais com vista a defesa dos mais elevados interesses da Nação. Essa convocação tem o sentido desse exercício permanente de interação entre o Executivo e o Legislativo, fundado nos princípios democráticos e no Estado de Direito.

Sr. Presidente, Sras e Srs. Senadores, convida-me o Senado Federal a trazer minha avaliação dos problemas com que se defronta o comércio internacional do aço e das dificuldades que daí decorrem para a indústria siderúrgica brasileira e para o próprio comércio exterior do Brasil. Procurarei centrar o foco de minhas observações na vertente externa, onde se dá a ação do Itamaraty por força de sua competência legal.

Para maior clareza, desdobrarei minha apresentação em duas partes. Na primeira, procurarei trazer os elementos essenciais dos contextos nacional e internacional e, na segunda, as ações e reações que se vêm observando no cenário mundial, destacando, entre estas últimas, a ação desenvolvida pelo Governo brasileiro.

Compor o contexto impõe, antes de mais nada, traçar um quadro sucinto do setor siderúrgico nacional, isto é, das características que determinam o perfil do Brasil como ator nesse comércio, seu peso específico e os interesses que lhe cabe defender.

Começo, portanto, com um apanhado da situação do setor siderúrgico nacional, após o que procurarei destacar algumas das forças que explicam a crise no plano mundial.

Sem subestimar a importância de iniciativas pioneiras das primeiras gerações de industriais brasileiros, é certo que o nascimento e o crescimento da moderna siderurgia no Brasil foram, em grande medida, obra que resultou da ação do Estado, em especial das preocupações do Presidente Getúlio Vargas. O aço era símbolo de industrialização e esta, durante décadas, foi o sinônimo de progresso. O Estado brasileiro entendeu, corretamente, que o País, como detentor de grandes reservas de minério de ferro, podia aspirar a uma siderurgia de envergadura. E atuou nesse sentido. Implantou-a com Vargas e promoveu seu crescimento nas décadas de 60 e 70. O modelo predominantemente estatal, necessário na origem, teve seus êxitos. Sem a ação do Estado nas décadas de 30 e 40, provavelmente não teria o País desenvolvido uma robusta base siderúrgica. O Brasil, nas décadas seguintes, colocou-se entre os principais produtores e exportadores de aço do mundo. O modelo, porém, de ação estatal esgotou-se, como em outros setores, quando a crise gerencial e fiscal do Estado trouxe à tona fraquezas do segmento produtivo.

Nos anos 90 - e creio ser esse o ponto fundamental - o setor siderúrgico passou por sua grande metamorfose. Em três anos, entre 1991 e 1993, toda a siderurgia estatal foi privatizada por meio de leilões públicos e tiveram início maciços investimentos voltados para sua modernização. Apenas no ano de 1998 foram investidos no setor recursos superiores ao total investido na soma de cinco anos, entre 1989 e 1994. Ao todo, entre 1994 e 2000, os novos controladores canalizaram para a produção de ação 10,2 bilhões de dólares em projetos de modernização, de upgrading, de redução de custos e de proteção ambiental.

Não me deterei em pormenores, mas julgo importante ressaltar alguns números que ilustram a transformação pela qual que passou a indústria nacional:

- No processo de consolidação, das 34 empresas existentes no final dos anos 80 restaram 12.

- Instalações antieconômicas foram sistematicamente fechadas.

- Aproximadamente 60% da força de trabalho foi dispensada, o que, por um lado, dá a medida do custo social dessa trasnformação, mas, por outro, revela quão elevados foram os ganhos de produtividade.

            Desse processo há umas tantas resultantes que caberia destacar nesta análise. A primeira é de que a indústria brasileira passou a figurar, segundo analistas internacionais independentes, entre aquelas com mais baixo custo de produção no mundo. Um segundo dado interessante a notar é que, por ter investido essencialmente em modernização e aumento de produtividade, a capacidade de produção propriamente dita expandiu-se pouco: passa de 28 milhões em 1989 a 30 milhões de toneladas em 2000. Combinada com o crescimento da demanda interna, sobretudo a partir do Plano Real, essa situação gerou uma inflexão importante no destino da produção siderúrgica nacional. Passaram a predominar as vendas no próprio mercado brasileiro e não mais no mercado externo, como ocorria antes. Entre 60% e 65% da produção de aço do Brasil está hoje voltada para o atendimento da indústria consumidora doméstica.

Por fim, é importante observar que, em parte como conseqüência dessa distribuição entre mercado interno e externo e em parte como estratégia de inserção no mercado global, a indústria brasileira mudou a combinação, o mix dos seus produtos exportados. Os produtos semi-acabados passaram a dominar em proporção superior a 70% (em volume), a pauta exportadora do setor, enquanto declinou a exportação de acabados (canalizados, em grande parte, para o mercado interno). Consideradas as exportações em valor e não em volume, os produtos acabados ainda predominam, mas os chamados “semis”, no ano passado, já atingiam a marca de 45%. Para os Estados Unidos, a proporção de semi-acabados, como se verá mais tarde, alcança volume próximo de 80%. Vale reter esse dado porque terá desdobramentos na forma como o Brasil é afetado pelas medidas protecionistas norte-americanas.

Esse é, portanto, o quadro da siderurgia brasileira na virada do milênio: indústria privatizada, modernizada e altamente competitiva em termos mundiais. Entre os dados da nossa competitividade está também a qualidade do nosso minério. O Brasil situa-se como oitavo maior produtor de aço no mundo (com produção, como disse, em torno de 28 milhões de toneladas) e figura entre os cinco maiores exportadores mundiais. Tanto sua produção quanto sua exportação apresentam números estáveis nos últimos anos, mas a ênfase nas exportações de semi-acabados para os grandes mercados - Estados Unidos e União Européia - vai-se consolidando como tendência. Há nisso como que uma aposta estratégica na alta competitividade do produto brasileiro e na crescente necessidade de importação de semi-acabados por parte da indústria siderúrgica norte-americana. É que esta última, em seu lento e tumultuado processo de reestruturação, desenvolve um modelo pelo qual algumas usinas abandonam a fase metalúrgica, onde são reconhecidamente pouco competitivas, para trabalharem com o semi-acabado importado e concentrarem-se em linhas de maior valor agregado. A aposta brasileira nessa tendência é tal que algumas empresas siderúrgicas brasileiras adquirem usinas nos EUA para operá-las essencialmente a partir do semi-acabado importado do Brasil. São passos corajosos de uma indústria que se globaliza.

Se o setor siderúrgico brasileiro fez o dever de casa e preparou-se para a competição global, o mesmo não se pode dizer de todos os outros grandes produtores. O mercado internacional do aço está em crise. Em sua origem estão fatores diversos, alguns estruturais, outros de conjuntura.

Entre os primeiros está a existência de um excedente de capacidade instalada. Estima-se como provável que a capacidade instalada no mundo situe-se entre um bilhão e 1,1 bilhão de toneladas, para uma produção que, no ano de 2000, atingiu aproximadamente 850 milhões.

Analisada de forma menos agregada, a capacidade mundial de produção apresenta situações muito distintas entre países. Há aqueles, como o Brasil, que reestruturam completamente sua indústria na última década e estão em condições de competir. A União Européia operou uma reestruturação em profundidade, com privatizações, fusões e aquisições, fechamento de usinas e modernização tecnológica em grande escala. Reúne hoje quase 20% da produção mundial e continua a perseguir metas ainda mais ambiciosas em termos de consolidação, como se depreende do anúncio da fusão de Usinor, Arbed e Aceralia para a formação da maior empresa siderúrgica do mundo, com volume de produção de 45 milhões de toneladas.

No outro extremo da escala, situa-se o parque siderúrgico da antiga União Soviética, constituído por uma estrutura produtiva hoje superdimensionada, erguida para atender à demanda doméstica de um Estado que se fragmentou. Rússia e Ucrânia, herdeiras principais dessa indústria, não ostentam mais uma economia capaz de gerar consumo próprio para o aço que produzem e vêem-se compelidas a escoá-lo no mercado internacional. Na opinião de analistas conceituados, as usinas russas e ucranianas estariam hoje vendendo abaixo do custo de produção. Com prejuízo, portanto, porém menor do que aquele que decorreria de uma paralisação dos altos fornos ou do fechamento da usina. Os números são eloqüentes. Em 1991, no início do processo de desarticulação do Estado soviético, a Rússia produzia aproximadamente 74 milhões de toneladas de aço e consumia pouco mais de 50 milhões. Em 2000, a produção russa havia caído para 65 milhões e seu consumo, “desabado” para apenas 25 milhões, gerando um excedente exportável de 40 milhões. Embora em escala menor, a história se repete no caso da Ucrânia. O dado importante a reter é o fato de que em 1991 a antiga União Soviética era um ator menor no comércio mundial de aço, ao passo que, em 2000, a CEI (Comunidade de Estados Independentes) transformou-se no maior exportador mundial. Importante também ter presente que, embora tenha havido um início de reestruturação na indústria siderúrgica russa e ucraniana, tal reestruturação foi apenas parcial, estando hoje ambos os países confrontados com capacidade antieconômica, dado o remanescente de usinas tecnologicamente superadas e de baixa produtividade.

Japão e Coréia, dois gigantes da indústria siderúrgica mundial, também vêem-se às voltas com a necessidade de fechar algumas unidades e reestruturar parte do setor, embora não se questione a produtividade da maior parte do seu parque produtivo.

A China, hoje a maior produtora mundial de aço, com 127 milhões de toneladas, ocupa posição peculiar. Consome grande parte do que produz, exporta pouco e também importa pouco. Dispõe de um parque siderúrgico muito diferenciado, com segmentos em que dominam tecnologia de ponta e níveis altíssimos de produtividade e outros, com modelos de produção tidos como inteiramente superados. Hoje interfere pouco no mercado internacional, mas é crescente o seu interesse nos rumos desse mercado.

No elenco das questões estruturais, figuram, por fim, os problemas próprios da indústria siderúrgica dos Estados Unidos.

Vejam V. Exªs, Srªs e Srs. Senadores, que, para compreender o tema do aço, é necessário fazer esta avaliação: o que fizemos nós, no Brasil; como se situa o desafio da indústria siderúrgica na Europa; qual o problema que se coloca na Rússia e na Ucrânia; qual o significado da ação desse setor na China, para podermos compreender o significado das modalidades pelas quais os Estados Unidos atuaram. Para entendermos a posição dos Estados Unidos, é preciso compreender os problemas próprios da indústria siderúrgica dos Estados Unidos.

Embora ostentem uma produção em torno de cem milhões de toneladas, os Estados Unidos consomem mais do que produzem e se colocam como principal mercado importador do mundo. O ingresso do aço importado no mercado norte-americano tem estado, ao longo das três últimas décadas, sujeito a percalços de toda ordem, por conta de repetidas ondas de protecionismo. Na década de 80, foram os chamados “acordos de restrição voluntária”, pelos quais os países exportadores, inclusive o Brasil, obrigavam-se a limitar suas vendas àquele mercado. Na década de 90, os direitos antidumping e as medidas compensatórias, aplicados de forma altamente questionável, cercearam o acesso do aço estrangeiro, situação que persiste até hoje. É tal o número de direitos antidumping e de medidas compensatórias aplicadas pelas autoridades de defesa comercial dos Estados Unidos que, em 2001, não havia praticamente um só país exportador de aço no mundo que não tivesse algum produto siderúrgico sobretaxado naquele país. Estima-se que ações antidumping ou de medidas compensatórias contra alegados subsídios cobriam, no ano passado, 44% de todos os produtos siderúrgicos importados de países não-membros do Nafta.

A aparente contradição entre, por um lado, a necessidade de importar e, por outro, o sistemático cerceamento das importações encontra sua explicação no embate entre os setores dinâmicos da economia americana e a força política do setor siderúrgico mais tradicional. Em grande parte, é este último - representado pelas grandes usinas integradas - que não se reestruturou, perdeu condições de competir, continua resistindo a mudanças, mas mostra-se sempre capaz de alavancar junto ao Congresso e ao Executivo sucessivas medidas de proteção. Sua capacidade de mobilização política decorre da concentração da indústria em um pequeno número de Estados da Federação e da forte participação dos sindicatos nesse movimento de resistência, ambos fatores eleitorais relevantes.

Seria faltar com a verdade afirmar que a indústria siderúrgica norte-americana, como um todo, não se reestruturou. Calcula-se que algo em torno de 50% da produção de aço nos Estados Unidos provém, hoje, das chamadas “miniusinas”, modernas e eficientes. Noutro segmento, o dos chamados re-rollers, usinas que trabalham a partir do semi-acabado importado (inclusive do Brasil) também exibem índices de produtividade elevados. A resistência protecionista maior, porém, está no segmento menos dinâmico, estruturalmente incapacitado de concorrer.

A esse conjunto de elementos estruturais (excesso de capacidade instalada, combinado com a manutenção em atividade de usinas, tecnológica ou gerencialmente, anacrônicas) vieram somar-se, nos últimos anos, dados conjunturais que exacerbaram as tensões entre produção, consumo e comércio. A crise asiática de 1997 e a crise russa de 1998, aliadas à longa estagnação da economia japonesa, foram decisivas. Seu impacto, ao reduzir o consumo, gerou um excedente de produção que foi escoado apressadamente nos principais mercados, ou seja, Europa e, sobretudo, Estados Unidos.

Gráficos de importação de aço nos Estados Unidos mostram picos acentuados naqueles anos, com ingressos maciços de produtos siderúrgicos, russos, japoneses e coreanos, por exemplo, num momento em que a economia americana exibia vitalidade e capacidade de absorção. Mas, se isso era verdade para a economia como um todo, não o era necessariamente para aquela parcela da siderurgia norte-americana menos competitiva.

Sucederam-se, então, renovadas ações antidumping, movidas pela indústria, contra todo e qualquer produto importado, de que resultaram os números que mencionei há pouco. Produtos brasileiros, como os de muitas outras origens, foram atingidos pela proteção na fronteira. Em muitos casos, não satisfeitos com o efeito dissuasivo do antidumping, as investigações conduzidas pelo Departamento do Comércio dos Estados Unidos resultaram na aplicação de direitos compensatórios, por alegados subsídios. Mesmo empresas privatizadas tiveram seus produtos sobretaxados, como resultado de uma interpretação claramente distorcida das normas, que identifica subsídios residuais, inclusive em casos em que a empresa tenha sido vendida em leilão público.

É algo que afetou as indústrias européias e as nossas, daí uma ação em andamento na OMC, da qual participamos como terceira parte.

Empenhado em dar proteção ainda mais radical à sua siderurgia, o Congresso norte-americano aprovou uma emenda à sua Lei de Comércio, a chamada Emenda Byrd, pela qual os direitos antidumping arrecadados revertem em benefício das empresas peticionárias. A medida configura claramente um subsídio ao setor, o que levou vários países, inclusive o Brasil, a associarem-se numa ação conjunta na OMC contra a Emenda, processo que ainda está em curso naquela Organização.

Em 1999, atingido por direitos antidumping e medidas compensatórias elevadas sobre laminados a quente, o setor siderúrgico brasileiro sugeriu ao Governo examinar a possibilidade de negociar um acordo específico com os Estados Unidos para aquele produto. Trata-se de um tipo de instrumento denominado “acordo suspensivo”, em que o Governo brasileiro aceita restringir o volume exportado e, em paralelo, empresas exportadoras comprometem-se a não vender abaixo de um determinado preço; como contrapartida, o Governo norte-americano “suspende” (e daí a denominação “acordo suspensivo”) a aplicação das sobretaxas. As negociações realizaram-se a contento, o acordo foi negociado mas se revelou parcialmente eficaz apenas no primeiro ano de vigência, em 2000.

Em suma, a partir de 1998, a crise da indústria siderúrgica dos Estados Unidos foi-se acentuando, à medida que o ingresso do produto importado colocava em evidência suas fraquezas estruturais. Porém, as ações antidumping não foram vistas no plano interno como suficientes e o setor clamou por mais proteção. É interessante notar que, não obstante sua forte ligação com os sindicatos, a Administração democrata do Presidente Clinton logrou resistir às pressões. Menos de seis meses depois, porém, o Presidente George W. Bush anunciou, em junho de 2001, o início da investigação que acabaria por levar, em março último, à aplicação de salvaguardas na importação de vários produtos siderúrgicos. Nos quatro anos que vão de 1998 a 2001, 24 empresas siderúrgicas norte-americanas pediram concordata, entre elas duas das maiores do setor, a Bethlehem Steel e a LTV.

Esses são, em grandes linhas, os elementos que compõem o contexto nacional e internacional que cabe ter presentes. Resumo: no plano interno, uma indústria revitalizada e competitiva, fruto de corajoso processo de privatização e de pesados investimentos dos seus novos controladores. No plano global, um excesso de capacidade instalada, com bolsões de produção antieconômica em segmentos da produção norte-americana e também, por exemplo, na Rússia e na Ucrânia. No mercado norte-americano, mais especificamente, surto de importações, gerado pelas crises asiática e russa, que pôs a nu as antigas e conhecidas dificuldades de um segmento que não se modernizou e que insiste em sobreviver ao abrigo de medidas protecionistas. O Congresso se mobiliza e o Executivo cede à pressão de congressistas, empresas e sindicatos. Em 5 de março são anunciadas sobretaxas e quotas que virtualmente fecham o mercado dos Estados Unidos à importação de grande parte dos produtos siderúrgicos.

Detenho-me, agora, na segunda parte da minha exposição, nas reações que vêm marcando o cenário do comércio internacional do aço.

Seria ocioso descrever as diversas etapas e procedimentos que a Administração norte-americana seguiu entre junho de 2001, quando o Presidente Bush anunciou sem plano, e março de 2002, quando as medidas de proteção foram tornadas públicas. Recordo apenas que a International Trade Commission, órgão autônomo do Governo norte-americano, foi acionada pelo Presidente para proceder a uma investigação abrangente. O objetivo, conforme determinam a legislação de comércio dos Estados Unidos e as próprias normas da OMC, era apurar se as importações de aço estariam causando “dano ou ameaça de dano” à indústria siderúrgica local. Trata-se de requisito indispensável para a aplicação de medidas de proteção. Ao final de seus trabalhos, a Comissão entendeu que 16, dos 33 produtos analisados, foram prejudicados pela concorrência do produto importado. Seguiram-se, na etapa seguinte, recomendações ao Presidente Bush e este, ouvida a assessoria da Casa Branca, baixou as salvaguardas que conhecemos.

Que medidas são essas? No essencial, a decisão consistiu em estabelecer: (1) quota de 4,9 milhões de toneladas métricas para semi-acabados, com aumento de 450 mil t.m. ao ano; (2) tarifas de 30% sobre laminados planos, em geral, passando a 24% no segundo ano e a 18% no terceiro; (3) tarifas iniciais de 15% ou 8% para outros produtos, conforme o caso (produtos longos, inoxidável etc.); (4) algumas exclusões (aço-ferramenta, por exemplo); (5) isenção de qualquer restrição para México, Canadá, Jordânia e Israel - com os quais os Estados Unidos mantêm acordos de livre comércio; isenções para países em desenvolvimento em produtos cujas exportações fossem inferiores a 3% das importações norte-americanas. As salvaguardas terão duração de três anos e entraram em vigor em 20 de março.

De forma simplificada, as conseqüências para o Brasil podem ser enquadradas em três grandes categorias de produtos:

- Nos semi-acabados - sobretudo, placas -, que respondem por aproximadamente 75% das exportações brasileiras para o mercado norte-americanos, coube ao Brasil uma cota de 2,5 milhões de toneladas métricas. Nossas vendas desse produto para os Estados Unidos haviam totalizado 2,4 milhões de toneladas em 2000 e 2,1 milhões de toneladas no ano passado. A cota alocada pareceria, à primeira vista, ser suficiente para atender ao pico das exportações brasileiras, mas, evidentemente, não é esse o único parâmetro da avaliação. Estava nos planos da siderurgia brasileira explorar mais a fundo sua vertente de complementaridade com o segmento da indústria norte-americana interessado em processar o semi-acabado produzido no Brasil. Entre outros projetos, havia de concreto o fato de a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) ter adquirido uma usina norte-americana, a Heartland Steel, com o objetivo de alimentá-la, já a partir deste ano, com placas brasileiras. Consideradas essas expectativas de exportação, estima-se que seria necessário um milhão de toneladas a mais para que a quota pudesse atender ao potencial de exportações do Brasil.

- No segmento de laminados planos, há situações um tanto diferenciadas. Em laminados a quente, por exemplo, as exportações brasileiras já haviam praticamente cessado. O acordo suspensivo de antidumping, negociado com o Governo norte-americano em 1999, tornara-se inoperante, conforme mencionei há pouco. A indústria alimentava, porém, a expectativa de retornar ao mercado, beneficiando-se de um possível processo de revisão de dumping ou do ingresso de um novo exportador, perspectiva que desaparece com a sobretaxa de 30%. Em chapas grossas, produto de que o Brasil conseguira exportar aproximadamente 15 milhões de dólares no ano passado, também fica inviabilizada a presença brasileira no mercado norte-americano. Na categoria de laminados a frio, o Brasil embarcara para os Estados Unidos 59 milhões de dólares no ano passado, porém sua posição era vulnerável; acabara de sofrer medida compensatória e aguardava determinação de dumping. Subsistia algum otimismo na indústria, em face da possibilidade de que o Brasil lograsse reverter, em setembro, na instância administrativa própria, a determinação de dano, o que lhe permitiria manter-se no mercado; a sobretaxa de 30% elimina essas chances. Em chapas galvanizadas, com exportações de 8,6 milhões de dólares em 2001, também desaparecem as possibilidades de acesso com a sobretaxa de 30%. Restou o item folha de flandres, igualmente sobretaxado em 30%, mas para o qual o Brasil, como país em desenvolvimento, será beneficiado por isenção.

- No segmento de produtos não-planos, a isenção que contemplou exportações provenientes de países em desenvolvimento com participação inferior a 3% nas importações realizadas pelos Estados Unidos beneficiou o Brasil em produtos como vergalhões, barras e perfis leves. Em outros casos, as vendas brasileiras não chegaram a ser afetadas, porque os produtos não foram atingidos pelas salvaguardas, como é o caso de certos tubos e de aço-ferramenta.

Grosso modo, esse é o quadro que resulta, para o Brasil, das medidas anunciadas pelo Presidente Bush.

Valem aqui algumas observações de natureza jurídica e política e outras de cunho mais propriamente comercial. Juridicamente, ao fazer uso de “salvaguardas”, o Governo norte-americano está aplicando não só sua legislação comercial, mas também dispositivos do acordo pertinente da OMC que lhe asseguram o direito a esse recurso de defesa comercial. Trata-se de medida extrema, que se caracteriza por se aplicar indiscriminadamente contra produto de todas as origens e que, como outras ações defensivas, têm prazo de aplicação limitado (três anos, neste caso). Não se trata, portanto, de ação contra o aço brasileiro, mas sim contra o aço importado em geral. Não se trata tampouco de uma medida que não esteja contemplada nas regras do comércio internacional.

O que, entretanto, é passível de contestação - reitero - é a base fatual em que o Governo norte-americano fundamentou sua decisão. Mais especificamente, o que se coloca em dúvida é, sobretudo, se estariam atendidos os requisitos de “surto” de importações e de relação causal entre importações e ameaça de dano à indústria local que os acordos da OMC exigem. E essa foi a posição do Itamaraty desde o primeiro momento. Essa análise varia, naturalmente, de produto a produto e, pelo menos em alguns casos, os números apresentados não são inequivocamente apresentáveis e convincentes. Do ponto de vista político (mas com significativas implicações comerciais), convém notar a preocupação que tiveram os Estados Unidos em isentar o México e o Canadá das salvaguardas, amparando essa decisão no fato de serem ambos partes na área de livre comércio do Nafta.

Examinadas as salvaguardas pela vertente de seu impacto comercial, há alguma discordância no tocante às perdas sofridas pelo Brasil. As exportações totais de aço brasileiro para os Estados Unidos somaram, em 2001, US$734 milhões, dos quais aproximadamente US$400 milhões em semi-acabados. Se nos limitarmos a um cotejo com as vendas realizadas no ano passado - ou seja, supondo-se que o Brasil repetiria no corrente ano o volume que exportou em 2001 -, as barreiras agora impostas representam perda de mercado da ordem de US$91 milhões, isto é, de aproximadamente 13%. Numa comparação com a União Européia, Japão ou Coréia, sobre os quais o impacto das medidas norte-americanas foi próximo da média de 60%, a posição do Brasil oferece algum conforto. Não é essa, entretanto, a leitura que a indústria brasileira faz das salvaguardas. Somados o que o setor esperava continuar exportando mais o mercado que esperava recuperar e ainda o que, legitimamente, almejava conquistar, as perdas podem representar, neste ano, US$290 milhões.

Entendendo essa posição do setor: na dinâmica do comércio, importa o futuro mais que o passado, por mais subjetiva que possa ser nossa visão do que ainda está por vir. A mudança das regras do jogo tumultua o comércio internacional e semeia a incerteza. É na estabilidade das regras que se assentam as relações de comércio e o planejamento da produção. A previsibilidade é da essência das trocas comerciais e um dos pilares em que se baseia o sistema multilateral de comércio. As salvaguardas norte-americanas não são más apenas porque possam ter fundamentação jurídica duvidosa ou porque exibam quão resistente pode ser o núcleo duro do protecionismo naquele país, mas também pelo grave distúrbio que geram nas relações de troca e no sistema produtivo.

Tomada e anunciada a decisão de aplicar salvaguardas, o Governo norte-americano agradou a alguns setores domésticos, porém rapidamente se viu confrontado com reação negativa por parte dos principais atores do comércio siderúrgico internacional.

A reação brasileira inclui, até o momento, duas fases distintas: a primeira remonta ao próprio início da investigação encomendada pelo Presidente Bush à International Trade Commission e engloba todo o trabalho desenvolvido antes do anúncio das salvaguardas; a segunda, às diversas instâncias em que se vem desdobrando o trabalho diplomático desde 5 de março último.

Em 15 de agosto de 2001, algumas semanas depois de o Presidente norte-americano anunciar o início de uma investigação abrangente sobre as importações de produtos siderúrgicos, o Governo brasileiro realizou a primeira sessão do chamado Grupo de Acompanhamento da Política Siderúrgica dos Estados Unidos. A Camex debatera o assunto e decidira-se pela criação desse grupo, sob a coordenação do Ministério das Relações Exteriores e com a participação dos Ministérios do Desenvolvimento, da Indústria e do Comércio Exterior e da Fazenda, para discutir cenários possíveis e formular recomendações aos Ministros sobre cursos de ação. A indústria brasileira tinha representação própria no Grupo de Acompanhamento, e sua participação foi crucial desde o primeiro momento. Ali se distribuíram tarefas, tendo cabido à indústria colaborar com dados e avaliações para a identificação dos produtos de maior vulnerabilidade, assim como mapear seus aliados potenciais nos Estados Unidos (setor importador e outros) e iniciar o trabalho de articulação com os mesmos. Simultaneamente, a indústria auxiliaria, com seus advogados, no levantamento e preparação de linhas de defesa a serem exploradas pelo Governo brasileiro. Este, por sua vez, encarregar-se-ia de realizar sondagens iniciais junto aos próprios setores governamentais norte-americanos e junto a governos de outros países interessados, e de preparar as gestões diplomáticas a serem realizadas nos diversos níveis, quando chegasse o momento apropriado.

O Grupo de Acompanhamento debateu também questões paralelas, como o posicionamento que o Brasil passaria a adotar na OCDE, onde, por iniciativa norte-americana (neste caso com o apoio europeu) convocara-se uma Reunião de Alto Nível para discutir o problema de excesso de capacidade instalada no plano mundial e eventuais ações destinadas a reduzi-la. Assinalo, a propósito, que, nas três Reuniões de Alto Nível da OCDE realizadas até o momento, o Brasil pôde ter destacada participação, graças à qualidade dos estudos que a indústria siderúrgica brasileira fez chegar ao Governo e que permitiram firmar posição sobre a alta competitividade do aço produzido no País. São incertos, porém, os rumos que essas discussões podem tomar na OCDE, em vista do clima político tenso e conflituoso que se vem formando no comércio internacional do aço entre as principais potências comerciais.

Retomo a descrição do trabalho de articulação entre o Governo brasileiro e o setor privado no seio deste Grupo de Acompanhamento, para registrar que foram extensamente debatidos os interesses em jogo e traçado um roteiro para a ação combinada de ambos. Numa primeira fase, que se estendeu até dezembro de 2001, a apresentação dos interesses brasileiros, dado o procedimento administrativo próprio nesses casos, ficou sob a responsabilidade do setor privado, chamado a levar seus pontos de vista à International Trade Commission, dos Estados Unidos, a quem cabia a investigação inicial e a realização de audiências com todos os segmentos interessados (produtores, importadores, exportadores etc.). A indústria brasileira esteve, nessa instância, sempre representada e demonstrou que permanecera estável, ao longo do tempo, a parcela de mercado ocupada pelas exportações brasileiras naquele mercado, não se caracterizando, portanto, qualquer incremento de vulto nas vendas do Brasil.

É o tema do “surto de importações” e a comprovação nossa de que o Brasil não era responsável por nenhum surto de importações de aço nos Estados Unidos.

O que houvera, isto sim, fora um deslocamento de produtos acabados em favor dos semi-acabados, destinados, estes últimos, à alimentação daquele segmento da indústria siderúrgica norte-americana que se modernizava. Era patente, por conseguinte, haver complementariedade entre as duas indústrias, quando menos no que se referia à parte mais substancial das exportações brasileiras. Depoimentos importantes em favor dessa tese foram também apresentados pelas próprias usinas que trabalham com o produto importado.

Em outubro, a International Trade Comission apresentou suas conclusões após quatro meses de trabalhos. Como indiquei anteriormente, dos 33 produtos que examinou, concluiu haver dano ou ameaça de dano em 16 deles, dentre os quais as placas, principal item da pauta siderúrgica brasileira para o mercado norte-americano. A ampla gama de produtos tidos como sensíveis pela Comissão deflagra, já neste momento, uma primeira onda de preocupação em grande número de países. Dirigentes da indústria brasileira realizaram, então, importante missão a Washington para contatos em vários níveis de governo.

Seguiu-se um período em que a International Trade Commision deliberou sozinha sobre as eventuais medidas restritivas que proporá ao Presidente dos Estados Unidos. Pouco antes do Natal, foram dadas a público recomendações formuladas. Foram recomendadas quotas para os semi-acabados e tarifas de até 20% para os acabados. Não foi contemplada uma quota específica para o Brasil.

Teve, então, início a fase mais importante do trabalho que fora planejado pelo Grupo de Acompanhamento do nosso País. Da data da entrega das recomendações à data da decisão presidencial, transcorreu um período de aproximadamente sessenta dias, durante o qual tanto a indústria quanto o Governo brasileiros agiram de forma sincronizada.

A indústria fez chegar às autoridades norte-americanas, separadamente e em articulação com seus clientes nos Estados Unidos, novos dados que reforçam a tese da complementaridade. O Governo realizou também um trabalho similar com o mesmo objetivo, amparado, porém, em gestões efetuadas em dois níveis distintos. Em meados de janeiro, deslocou-se a Washington uma missão de alto nível, sob a coordenação do Itamaraty e da Camex e integrada também pelo Presidente da Companhia Siderúrgica de Tubarão (em representação do setor privado), que efetuou gestões no Departamento de Comércio, no Tesouro, no USTR e na Casa Branca, em alguns casos em nível de vice-Ministro. Foram levados e expostos dados e análises em defesa da posição brasileira pela exclusão dos semi-acabados e de outros produtos de interesse do Brasil.

Em 31 de janeiro, viajei, acompanhado pelo Ministro Sergio Amaral, a Washington, onde mantivemos encontros com o Embaixador Robert Zoellick, Representante dos Estados Unidos para o Comércio, e com o Secretário de Comércio Don Evans. Nesses encontros ministeriais, além da reiteração de aspectos técnicos e comerciais, o que buscamos foi passar a mensagem política: o Brasil era parte da solução e não do problema da indústria siderúrgica norte-americana, pois a maior parte das vendas brasileiras destinavam-se ao reprocessamento por parte do próprio setor, nos Estados Unidos. Mais do que isso: era de tal modo clara a percepção dos interesses complementares, que empresas brasileiras haviam passado a investir nos Estados Unidos, na certeza de que era inexorável o aumento dos fluxos de semi-acabados brasileiros no processo de reestruturação da indústria norte-americana.

Insistimos em que, na hipótese extrema de o Presidente Bush optar por medidas restritivas, era fundamental que se estabelecesse uma quota específica para as placas produzidas no Brasil, em nível compatível não só com as exportações do passado recente, mas também com as necessidades de expansão reconhecidas. Mencionamos com ênfase, também, a necessidade de que se excluíssem certos produtos acabados.

Devo dizer que, na argumentação e na defesa da quota específica, vali-me da experiência minha anterior em Genebra e do risco de dificuldades quando a quota é genérica e não específica, que foi o que ocorreu num outro contencioso, o contencioso do frango. A idéia da quota específica pela qual batalhei era a da garantia do acesso de mercado e, portanto, a de traduzir, em segurança das expectativas, uma medida que, ainda que restritiva, assegurasse um capítulo importante das exportações do Brasil.

Lembramos, por fim, que o aço era produto emblemático nas relações comerciais entre os dois países. Novas restrições ao aço brasileiro não deixariam de ser lidas, no Brasil, como manifestação do poder de resistência dos segmentos mais protecionistas e, por conseguinte, interpretadas como sinalização pouco positiva para as negociações da Alca.

Tanto o Embaixador Zoellick quanto o Secretário Evans nos ouviram com atenção e cuidado. Não deixaram de expor os dilemas políticos em que estavam envolvidos, eles mesmos e o Presidente Bush, num ano eleitoral, e a necessidade que tinha o Executivo de amenizar pressões protecionistas no Congresso contra a aprovação da chamada Trade Promotion Authority, indispensável para que os Estados Unidos pudessem dispor de plena autoridade negociadora nas múltiplas negociações comerciais em andamento, na nova Rodada da OMC, na Alca e outras frentes. Solicitaram algumas informações adicionais (que lhes foram depois encaminhadas) e comprometeram-se a levar em conta nossas ponderações.

Sr. Presidente, o sinal indica que meu tempo está se esgotando. Solicito mais cinco minutos, para encerrar minha exposição. O que não for possível expor será respondido no período destinado às questões.

Em meados de fevereiro, por fim, voltei a acionar o Embaixador Zoellick e o Secretário Evans, por carta que lhes foi entregue pela Embaixada do Brasil em Washington e na qual reiterei os interesses do Brasil. Tiveram o oportunidade de ouvir a reiteração de nossos pontos de vista.

No dia 5 de março, o Embaixador Zoellick chamou-me por telefone, antes do anúncio oficial das medidas, para dizer-me que se havia empenhado pessoalmente para que nossos pleitos fossem atendidos na medida do possível. É justo que se reconheça esse esforço. Foi visível o cuidado do USTR para minimizar o impacto das medidas sobre o Brasil, em contraste, inclusive, com o tratamento reservado a parceiros de maior peso econômico.

Naquele mesmo dia, as salvaguardas norte-americanas foram efetivamente anunciadas. Procedemos à análise necessária e extraímos as conclusões que expus acima. Alguns elementos importantíssimos das posições que havíamos levado a Washington estavam sem dúvida contempladas. Foi estabelecida a quota para os semi-acabados, em contraste com a elevação tarifária aplicada aos produtos acabados. A quota tarifária foi distribuída por fornecedores, o que oferece um ganho de preço aos seus detentores. A porção alocada ao Brasil (52% da quota) foi favorável. A quota será ampliada anualmente, no montante solicitado por nós, e o Brasil terá a mesma proporção, 52%, da quota adicional. Para outros produtos, foram obtidas algumas isenções que preservam nosso espaço naquele mercado.

Por outro lado, o volume total da quota ficou aquém de nossas aspirações, e, no tocante a produtos acabados, a sobretaxa de 30%, embora aplicável a importações das diversas origens e não só do Brasil, é superior ao que a própria International Trade Commission recomendara, inviabilizando nossa presença no mercado internacional.

Creio que não preciso lembrar a nota à imprensa que o Itamaraty divulgou, expressando a posição do Governo brasileiro. Nela, o Governo deixa explícitas nossas ressalvas quanto à fundamentação jurídica da medida quando declara que a “aplicação de medidas de salvaguarda sem a comprovação de surto de importação ou de dano à indústria local fere os princípios do comércio internacional”. Ao se referir ao impacto das restrições, o Governo destaca a insuficiência da quota alocada ao Brasil e o virtual alijamento dos laminados planos brasileiros do mercado norte-americano e informa que já solicitou consultas aos Estados Unidos, como lhe faculta o Acordo de Salvaguardas da OMC. Assinala ainda que “à luz dessas consultas e do que vier a apontar a análise pormenorizada dos dados, o Brasil decidirá que cursos de ação tomar, inclusive no tocante a eventual recursos à OMC”. A nota declara, por fim, que a adoção das medidas de salvaguardas por parte do Governo dos Estados Unidos “não deixará de ter conseqüências sobre as negociações multilaterais no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC) e, em especial, no contexto da Alca”.

Considero importante ter presentes os termos da nota que distribuí, porque ali estão colocadas com clareza, por um lado, nossa constatação de que algum esforço foi desenvolvido pelas autoridades norte-americanas no sentido de preservar parcela significativa de nossas exportações e, por outro, nossa insatisfação com a adoção da medida, como um todo, e com o que coube ao Brasil, em particular. A nota sinaliza também os primeiros movimentos do roteiro que o Brasil se propunha a percorrer: o Brasil realizaria consultas e decidiria, à luz dos resultados alcançados, cursos de ação futuros, inclusive recurso à OMC (entenda-se: ao mecanismo de solução de controvérsias daquela Organização). Estas premissas e considerações foram retomadas em artigo que publiquei em O Estado de São Paulo, em 25 de março.

Com o anúncio das salvaguardas norte-americanas, teve início a segunda fase da ação diplomática brasileira, essencialmente calcada na premissa de que se devem explorar todas as possibilidades que oferecem as consultas, ou seja, esgotar as chances da solução negociada. Essas consultas iniciaram-se, em alto nível, com a visita que o próprio Embaixador Robert Zoellick realizou ao Brasil nos dias 11 e 12 de março, durante a qual foram reiteradas nossas preocupações e foram exaustivamente apresentadas a perspectiva que temos da questão e a necessidade de que seja encontrada, quando menos, fórmula que não desestimule a crescente parceria entre os setores siderúrgicos dos dois países.

Uma semana mais tarde, no dia 19 de março, realizaram-se em Genebra, no escalão técnico-diplomático apropriado, as consultas com os Estados Unidos solicitadas pelo Brasil, cumprindo-se, portanto, formalmente, os requisitos estabelecidos pelo Acordo de Salvaguardas. Nessas consultas, foram questionadas as bases jurídicas da aplicação das medidas e apresentadas pelos representantes brasileiros alternativas possíveis de solução, sempre ao amparo de uma interlocução permanente com o setor privado. A delegação norte-americana foi informada, também ao amparo do Acordo de Salvaguardas, que o Brasil se reserva o direito de pleitear compensações.

Nem as conversações mantidas com o Embaixador Robert Zoellick nem as consultas formais realizadas em Genebra podiam produzir resultados imediatos. Os Estados Unidos vêm realizando consultas do gênero com quase dez países e têm prazo até 14 deste mês para decidir sobre eventuais alterações em suas medidas.

Simultaneamente a essas ações, o setor privado brasileiro vem articulando-se com usinas norte-americanas para a apresentação de “pedidos de isenção” para tipos específicos de semi-acabados, valendo-se de um prazo de 120 dias em que a Administração dos Estados Unidos estará examinando situações de produtos especiais. Esse prazo esgota-se na segunda semana de julho.

Temos, em suma, duas datas-limite para que o Governo dos Estados Unidos introduza mudanças em suas salvaguardas: uma mais próxima, em 14 deste mês, como eventual resultado das consultas realizadas; outra mais distante, em meados de julho, quando poderá decidir sobre isenções de natureza pontual. O Governo e o setor siderúrgico nacional vêm trabalhando em sintonia a fim de assegurar que não se perca nenhuma das oportunidades, dentro dos prazos legalmente estabelecidos, para fazer chegar às autoridades norte-americanas as modificações que o Brasil considera necessárias.

Sr. Presidente, eu teria, porque o assunto é vasto, várias outras considerações a fazer. Encerro neste ponto o que penso ser uma apresentação dos fatos e dos aspectos mais relevantes em torno da decisão do Governo dos Estados Unidos. Não há razões que a justifiquem, como não há motivos para pensarmos que a mesma possa permanecer encapsulada, como um ato isolado. Creio apenas, para concluir, que há uma dimensão abrangente das medidas norte-americanas que é o “efeito dominó” daquela decisão na aplicação de salvaguardas também por parte da União Européia, anunciada na semana passada, bem como nos movimentos preventivos de elevação de tarifas por parte de alguns países de nossa região (México, Venezuela e Chile). Corre-se o risco de um alastramento incontrolável de medidas de proteção no setor siderúrgico. Ao comentar, no dia 25 de março último, as restrições adotadas pela União Européia (cujas conseqüências ainda estamos analisando), declarei ser lamentável que tanto os Estados Unidos quanto a Europa, sobre os quais pesa a responsabilidade maior pela preservação do sistema multilateral de comércio, adotem medidas que ameaçam gerar profunda desorganização no mercado mundial e que colocam em dúvida a solidez das regras em que assenta a OMC.

Permito-me algumas observações a título de conclusão.

Em primeiro lugar, parece-me necessário deixar claro que as ações ou reações de diferentes países às salvaguardas aplicadas pelos Estados Unidos estão sendo cuidadosamente acompanhadas pelo Governo brasileiro, particularmente no que respeita a eventual recurso ao mecanismo de solução de controvérsias da Organização Mundial do Comércio. Cada país ou grupo terá, porém, sua avaliação própria dos prejuízos potenciais de sua indústria e da melhor forma de acudir a essa situação específica. O mecanismo de solução de controvérsias pode até revelar-se o único caminho possível. Não será nunca, entretanto, o caminho mais ágil. Dezoito meses ou mais podem transcorrer até que um “veredicto” se materialize e que, com base nele, se possa vislumbrar a correção do problema. O Brasil perseguirá a via negociada enquanto ela estiver aberta e fará, no momento oportuno, sua avaliação própria sobre cursos alternativos de ação.

Estimo também indispensável deixar constância da colaboração que o Governo Brasileiro tem recebido do setor siderúrgico nacional e destacar a conjugação de esforços e articulação que foi possível preservar entre ambos nas diversas etapas em que se tem desdobrado a ação diplomática brasileira. Estou convencido de que podemos e devemos, juntos, dar continuidade à busca da solução para o problema de acesso com que se vê confrontada a indústria. Até porque - e disso também estou convencido - essa coordenação foi vitoriosa. É ingênuo, para não dizer injusto, supor ter sido obra do acaso a posição diferenciada que tocou ao Brasil no conjunto das medidas norte-americanas. Empenhou-se a indústria e empenhei-me pessoalmente, em sucessivas reuniões e consultas, bem como por meio de cartas e mesmo de chamadas telefônicas, até o último momento, para minimizar o impacto das salvaguardas sobre as exportações brasileiras. Estejam os Srs. Senadores seguros de que raras vezes terá sido possível estabelecer tão estreita cooperação entre Governo e setor privado numa ação conjugada dessa envergadura para a defesa do interesse nacional.

Não posso por fim deixar de me referir ao envolvimento do próprio Congresso Nacional - seja do Senado Federal, seja da Câmara dos Deputados. Compreendendo ambos a importância do momento, fizeram chegar ao Executivo as manifestações de preocupação e o respaldo parlamentar indispensável. E próprio dos regimes democráticos.

Com isso, Sr. Presidente, permito-me encerrar essa intervenção inicial consciente das suas insuficiências, mas registro que elas são fruto da grande magnitude de fatores que incidem nessa questão.

Tenho dito sempre que a diplomacia do comércio internacional envolve análise concreta. É preciso ir à nomenclatura da tarifa nos seus diversos dígitos para se entender esses aspectos. Daí a importância da distinção entre os semi-acabados e os produtos acabados e, dentro de cada um deles, lidar com a sua especificidade.

Agradeço mais uma vez a oportunidade que tive de expor esses pontos. Estou à disposição dos Srs. Senadores para as questões que queiram levantar.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 05/04/2002 - Página 3809