Discurso durante a 78ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Estudo de S.Exa. sobre as relações de gênero nos assentamentos rurais, com base no livro "Companheiras de luta ou coordenadoras das panelas?", das pesquisadoras Maria das Graças Rua e Miriam Abramovay.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL. FEMINISMO.:
  • Estudo de S.Exa. sobre as relações de gênero nos assentamentos rurais, com base no livro "Companheiras de luta ou coordenadoras das panelas?", das pesquisadoras Maria das Graças Rua e Miriam Abramovay.
Publicação
Publicação no DSF de 06/06/2002 - Página 10605
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL. FEMINISMO.
Indexação
  • LEITURA, ESTUDO, AUTORIA, ORADOR, RELAÇÃO, HOMEM, MULHER, ASSENTAMENTO RURAL, FUNDAMENTAÇÃO, LIVRO, EDIÇÃO, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO A CIENCIA E A CULTURA (UNESCO).
  • COMENTARIO, LIVRO, AUTORIA, MARIA DAS GRAÇAS RUA, MIRIAM ABRAMOVAY, PESQUISADOR, EDIÇÃO, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO A CIENCIA E A CULTURA (UNESCO), DEMONSTRAÇÃO, COMPORTAMENTO, HOMEM, MULHER, ASSENTAMENTO RURAL, REFERENCIA, EDUCAÇÃO, SAUDE, SEXUALIDADE, TRABALHO, PODER, PROPRIEDADE, EXERCICIO, CIDADANIA.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (Bloco/PSDB - CE) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, tive a oportunidade de realizar um estudo sobre as relações de gênero nos assentamentos rurais, com base no livro intitulado Companheiras de luta ou "coordenadoras de panelas"?, das pesquisadoras Maria das Graças Rua e Miriam Abramovay.

A obra, editada em 2000 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), analisa as relações sociais de gênero nos assentamentos rurais implantados entre 1995 e 1998 no Brasil. Mediante o estudo dos papéis femininos e masculinos nesse contexto social, político e econômico heterogêneo e complexo, ela procura desvelar as estruturas sociais já incorporadas pelos assentados que comprometem o pleno exercício da cidadania por reproduzirem assimetrias de gênero.

Observe-se que o livro resulta de uma pesquisa quantitativa e qualitativa de fôlego, realizada em seis Estados: Bahia, Ceará, Mato Grosso, Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo. Essa pesquisa não só oferece o perfil de 2.880 homens e mulheres de 102 assentamentos, como também revela suas atitudes e percepções no tocante à educação, saúde, sexualidade, trabalho, participação, poder e propriedade da terra.

Perfil dos assentados

A pesquisa descrita em Companheiras de luta ou “coordenadoras de panelas”? mostra que a população dos assentamentos não se conforma aos estereótipos vigentes para o meio rural. Nela, predominam os homens, sendo a proporção dos solteiros muito superior àquela existente entre as mulheres. Observam-se, ainda, o predomínio da família nuclear (composta, em média, por cinco ou seis membros), a diminuição de famílias extensas, a redução do número de filhos e a escassa presença de crianças com menos de 14 anos.1

Via de regra, os assentados passaram por intenso processo migratório, são relativamente jovens, professam uma religião (os católicos são de longe os mais numerosos, seguidos dos evangélicos) e dispõem de escassas opções de lazer. As mais comuns, para ambos os sexos, são desenvolvidas no próprio âmbito doméstico: conversar com vizinhos, ouvir rádio, ver TV, visitar parentes e brincar com os filhos. Todas as outras opções de lazer demandam deslocamento para espaços extradomésticos e são exercidas por um número significativamente maior de homens, exceção feita ao acompanhamento de devoções religiosas e às brincadeiras com crianças.

Essas pessoas, na maioria dos casos, trabalham nos próprios assentamentos: os homens predominam na agricultura e na pecuária; as mulheres no lar, embora tenham um perfil ocupacional muito mais diversificado que eles.2

O grau de escolaridade dos assentados varia conforme o sexo e a idade. De fato, os filhos - sobretudo as meninas - possuem percentuais de escolaridade significativamente mais elevados que os pais, o que sugere importantes mudanças educacionais em curso.

Educação e mudança social

Com base no pressuposto de que a escolaridade como questão de gênero está superada no Brasil, a pesquisa perscrutou os papéis femininos e masculinos na escola, as oportunidades de estudo, o valor atribuído à escola, a qualidade e as condições locais de ensino e o impacto do trabalho sobre a educação de jovens.

Os dados analisados apontam significativos achados na esfera da educação nos assentamentos rurais. O primeiro diz respeito ao grande valor que os assentados atribuem à educação: eles reconhecem sua importância instrumental de ampliar as oportunidades na vida, seu poder de conferir maior autonomia na relação com o outro e sua ligação com a capacidade de compreender os direitos de cidadania. Daí por que são capazes de muitos esforços para superar tanto os obstáculos ao prosseguimento dos estudos, como a baixa qualidade do ensino e as difíceis condições de freqüência à escola nos assentamentos. O segundo achado relaciona-se ao fato de que, embora a escolaridade seja geralmente baixa entre os assentados, estes ainda são um pouco mais escolarizados que o conjunto do meio rural brasileiro. A terceira e a quarta descoberta sinalizam uma enorme transformação educacional de uma geração para a outra: os jovens são muito mais escolarizados do que os adultos, e as mulheres, mais que os homens.

Ora, na condição de portadoras do nível de escolaridade mais elevado do seu meio, as mulheres jovens são as possíveis agentes de mudança cultural nos assentamentos rurais, especialmente no que se refere às relações de gênero.

No ritmo desse processo vertiginoso de mudança, aliás, as mulheres, de forma geral, procuram vencer as dificuldades de conciliar os estudos com a rotina doméstica. Muito mais do que os homens, elas tentam retomar os estudos, talvez pela necessidade de ensinar os filhos, talvez pelo desejo de recuperar algo que não obtiveram no passado.

Contudo, percebe-se que a educação não apenas se mostra insuficiente para superar as assimetrias de gênero, como ainda reproduz desigualdades entre homens e mulheres, a começar pelo acesso. Basta lembrar que as jovens desfrutam de maiores oportunidades de estudo que os rapazes porque são consideradas desqualificadas para o trabalho no campo, enquanto eles, desde cedo, são convocados e têm de abandonar a escola.

Sexualidade e saúde reprodutiva

Segundo as autoras, a esfera da saúde sexual e reprodutiva nos assentamentos caracteriza-se pela presença de acentuadas clivagens de gênero. Estas se expressam na idéia de que as mulheres devem ser contidas, inclusive a ponto de ignorarem completamente a discussão sobre o tema, enquanto os homens têm o direito ao exercício livre e inconseqüente de sua sexualidade.

De fato, os estereótipos femininos e masculinos são generalizados entre os assentados e exercem forte impacto sobre suas percepções, suas atitudes e seus comportamentos no tocante à virgindade, à contracepção, à gravidez (inclusive a precoce), ao aborto, e à prevenção das doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS). Cobrada somente da mulher, a virgindade constitui símbolo de sua honestidade. O casamento configura o passaporte feminino para a vida sexual, mas a exigência do recato permanece. Daí a vergonha e o receio que obstruem a busca de consultas ginecológicas - já quase inacessíveis devido à distância dos serviços de saúde - e a conseqüente prevenção do câncer de mama e o de colo uterino mediante a realização dos exames específicos.

Note-se que sobre a mulher recai a responsabilidade total por prevenir a gravidez, saudada entre as casadas - mesmo se adolescentes - e condenada entre as solteiras. Contudo, não se tolera a prática do aborto em nenhuma circunstância, sendo ela motivo até para a expulsão, o que também costuma ocorrer com aqueles que fazem uso de drogas ilícitas.

O consumo de álcool, sobretudo aguardente, é disseminado entre os homens de todas as idades e erige-se em problema sério dos assentamentos, seja por levar à dilapidação patrimonial, seja por desencadear a violência doméstica. Esta vitima preferencialmente as mulheres, que sofrem agressões físicas freqüentes, além de serem submetidas à violência simbólica de ver suas atividades e todo o dinheiro da casa sob o controle dos homens.

Os assentados consideram a Aids uma doença essencialmente masculina, ignorando por completo que ela tem se alastrado por intermédio das mulheres, quase sempre contaminadas por seus parceiros fixos. O baixo nível de informação e o medo do estigma inibem a adoção de práticas sexuais responsáveis e preventivas, aumentando a vulnerabilidade de todos. Entretanto, são as mulheres as mais vulneráveis nesse cenário de informação imperfeita e de precário acesso aos serviços sanitários, já que os próprios agentes de saúde compartilham dos estereótipos que incentivam atitudes femininas de risco, como a substituição do uso de preservativo pela confiança na fidelidade conjugal.

            O trabalho feminino nos assentamentos rurais

A distribuição de ocupações dos assentados, numa análise de superfície, parece corroborar o estereótipo sexual clássico sobre a divisão de tarefas e o seu valor intrínseco: os homens responsabilizam-se pelas atividades produtivas e remuneradas, especialmente as agropecuárias; enquanto as mulheres se limitam a cuidar de suas próprias casas, sem remuneração. Já uma análise mais profunda revela a invisibilidade característica do trabalho feminino, realizado em jornada dupla ou tripla.

Com efeito, mais da metade das assentadas dedicam-se ao trabalho produtivo3 numa jornada semanal, segundo elas, de até quinze horas.4 Essas mulheres capinam, cortam, plantam, colhem, cultivam hortas, criam aves e pequenos animais, sendo responsáveis por três quartos da produção destinada ao consumo da família. Rotulado como “ajuda”, o trabalho delas não ganha visibilidade, seja pelo entendimento de que é extensão dos papéis femininos de mãe, esposa, dona de casa e provedora de necessidades, seja pelo fato de não ser remunerado.

No âmbito familiar, as mulheres geram, cuidam da saúde e da educação, dão atenção aos idosos, organizam e mantêm a casa, lavam, passam, cozinham e costuram. Com esses afazeres, ligados à reprodução biológica e social da família e essenciais à construção de novos papéis femininos e masculinos no mundo atual, elas ocupam todos os seus dias e muitas das suas noites. Mas isso tampouco é visto como trabalho, talvez por não ser remunerado e por não se desvincular do afeto.

Muitas vezes, a jornada do trabalho feminino ainda inclui a realização de atividades comunitárias na base do voluntariado, consideradas tão “naturais” quanto o trabalho doméstico. Isso porque se entende que a vida da mulher só tem sentido quando posta em função dos outros, para os outros. Assim, embora ela apresente um perfil ocupacional bem mais diversificado do que o homem, o padrão de subordinação e invisibilidade de seu trabalho é idêntico àquele encontrado nos demais contextos do meio rural brasileiro.

Na verdade, não se considera trabalho o que ela faz, mas algo situado em um ponto indefinido entre o ócio, o afeto familiar e o lazer. Por isso, os assentados de ambos os sexos atribuem maior valor à tarefa quando a executa um homem.

Nessa lógica que nega à mulher o status de trabalhadora, não há espaço nem prioridade para discutir a necessidade de construção de creches nos assentamentos. Tampouco há espaço para que a mulher tome parte dos processos decisórios sobre a produção ou participe do controle dos ingressos provenientes do seu trabalho.

Não sendo reconhecida como produtora de bens e geradora de riquezas, a assentada não tem acesso às transações comerciais e bancárias, à assistência técnica nem à tecnologia. Sem conseguir transformar sua capacidade de gerar renda em autonomia e poder, ela fica apenas com as responsabilidades, especialmente as que se restringem aos limites da casa. Estas, apesar do trabalho feminino fora do lar e do discurso de igualdade dos assentados, não foram divididas com o homem. Assim, permanece inquestionada a divisão sexual do trabalho e restam preservados os espaços de poder de cada um dos sexos.

            Propriedade da terra, avaliações e expectativas

De acordo com as pesquisadoras, as atitudes dos assentados quanto à propriedade da terra estão carregadas de ambigüidade. Muitos desejam ser proprietários para nunca mais ter patrão, para ter segurança, para garantir a herança dos filhos no futuro. Ao mesmo tempo, receiam ter de enfrentar sozinhos as regras do mercado e temem que a titulação da propriedade destrua os assentamentos por viabilizar a venda dos imóveis. Esse paradoxo é levado ao extremo no caso das mulheres, que são as que mais receiam a titulação e também mais almejam ser “donas da terra”, respectivamente pelo medo de lidar com transações financeiras e pelo desejo de legar a propriedade aos filhos.

Entretanto, são poucas as mulheres capazes de formalizar esse legado por si próprias, já que o cadastramento se revela uma instituição masculina por excelência. De fato, apenas 12,6% das assentadas - segundo o Censo da Reforma Agrária - possuem cadastro como titulares de terras, o que reflete o seu déficit de cidadania e sua invisibilidade econômica.

Longe de fundar-se em um impedimento legal -que inexiste -, essa percentagem ínfima deve-se às atitudes que reforçam as assimetrias de gênero tomadas por assentados, agentes dos movimentos sociais e encarregados institucionais do cadastro.

Destaque-se, de início, a postura dos técnicos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), instituição responsável pelo cadastramento. Neste, eles priorizam os homens, só aceitando a titularidade feminina em três casos: quando a mulher é solteira, viúva ou separada; quando o homem não preenche alguns dos requisitos eliminatórios do cadastramento e quando ele tem problemas de saúde ou de alcoolismo.

Vale dizer que esses técnicos nada mais fazem do que seguir a política de assentamento do órgão que encara o homem como cabeça do casal e a mulher como sua dependente. Assim, se o cadastrado morre, o primogênito (e não a mãe) assume a titularidade; se a cadastrada se casa, ela perde a titularidade para o marido.

Enfatize-se, ainda, o comportamento dos agentes sociais, nomeadamente daqueles que integram os movimentos de trabalhadores envolvidos no processo de seleção para o assentamento. Essas pessoas, via de regra do sexo masculino, reúnem-se em assembléia com os representantes do conselho municipal do desenvolvimento rural e das entidades municipais e estaduais com vista a escolher quem - entre os nomes aprovados pelo Incra - será contemplado com parcelas de terra. A escolha quase nunca recai sobre as mulheres.

Por fim, são também relevantes as atitudes dos assentados que acabam por reforçar a situação de dependência feminina: os homens acham “natural” serem os titulares do cadastro, enquanto as mulheres não possuem os documentos pessoais exigidos para o cadastramento nem para o acesso aos mecanismos de proteção do trabalho.5

Logo, quando ocorre a separação do casal assentado, a mulher enfrenta uma situação bem difícil. Vê-se obrigada a sair do lote, quase sempre cadastrado no nome do marido, pois a parcela de terra não pode ser legalmente dividida.6 Não fosse o bastante, ela sequer conta com a possibilidade de requerer algum tipo de pensão, uma vez que o marido não possui renda.

Apesar desses contrapontos, os assentados - na sua maioria - estão satisfeitos com a reforma agrária, tributando-lhe os créditos de uma vida mais digna, segura e de melhor qualidade. Criticam, porém, a política agrícola do governo e a precariedade do equipamento social nos assentamentos, especialmente nas áreas de educação, cultura, saúde e lazer.

Sobre os seus sonhos para o futuro, eles enfatizam a esperança de ter saúde, educação e trabalho, raramente fazendo referência a projetos pessoais. Todos, sem exceção, sonham com uma vida melhor e um futuro digno para os filhos: os homens desejam que eles permaneçam no campo; as mulheres querem que eles estudem e sejam profissionais valorizados. Nesse sentido, existe a expectativa de que sejam desenhadas políticas públicas capazes de garantir a permanência dos assentamentos, mediante a instituição de mecanismos que superem a forte tensão entre os incentivos para ficar (que afetam sobremaneira os adultos) e os estímulos para sair (que atingem principalmente os jovens, as moças em particular).

Registrem-se, a propósito, duas mudanças importantes no discurso e na prática feminina nos assentamentos. A mulher mais jovem já não confere ao casamento o status de projeto central de sua vida, hoje voltada ao estudo, à possibilidade de trabalhar e de ser independente. Ela e as outras mostram-se comprometidas também com o que acontece fora do assentamento, longe dos limites do lar: sonham com a mudança social e política do País viabilizada pela justiça social que acreditam ter lugar com a melhor distribuição das oportunidades, a eliminação do sofrimento e da fome e a verdadeira reforma agrária.

            Percepções de gênero e cidadania

Como em todas as sociedades, também nos assentamentos existem normas de comportamento que são aplicadas a todos e a cada um de seus membros. As normas sociais veiculam os papéis esperados dos indivíduos, fazendo com que haja uma certa regularidade de ações e pensamentos, dentro de uma lógica de gênero. Assim, espera-se da mulher virtude e fragilidade, enquanto credita-se ao homem o instinto irrefreável e a força.

Os resultados da pesquisa sob exame não fogem a essa lógica. Contudo, eles indicam diferenças marcantes entre homens e mulheres no tocante à liberdade de comportamento, às percepções e ao exercício dos direitos, denunciando a mudança que está em curso nas relações de gênero nos assentamentos rurais do País.

É verdade que os assentados de ambos os sexos compartilham um modelo em que a imagem feminina agrega atributos de inferioridade, subordinação, constrangimento e medo, e a imagem masculina incorpora as características de superioridade, força, coragem e liberdade em todas as suas acepções. Esse modelo é transmitido às novas gerações mediante padrões de socialização que diferenciam claramente meninos e meninas.

Nada disso, entretanto, permanece inquestionado. As mulheres exibem uma surpreendente imagem do seu próprio sexo, pois acreditam que a responsabilidade, a inteligência e a experiência são mais atributos femininos do que masculinos, discordando da opinião dos homens. Também se consideram mais pacientes e dedicadas e menos medrosas do que eles as julgam.

Chama a atenção no discurso dos assentados uma nova concepção de igualdade entre homens e mulheres, o que abre possibilidades para novas formas de pensar e de agir. Essa nova concepção sugere que não há diferenças na forma de educar e na criação dada aos filhos e às filhas, sobretudo no que se refere às tarefas domésticas. Atualmente, muitas mulheres reconhecem a diferenciação de papéis que elas mesmas impõem aos seus filhos e lutam por superar tais desigualdades.

Esses sinais de mudança nas relações de gênero também se manifestam quando são colocadas em tela as percepções sobre os direitos da mulher. A igualdade entre os sexos no campo normativo está relativamente estabelecida nas percepções de homens e mulheres. Todavia, no mundo das práticas efetivas, os homens ainda possuem mais oportunidades (de trabalhar, de tomar decisões etc.) do que as mulheres, embora não tenham tanta consciência dessa discrepância quanto elas.

A divisão sexual do trabalho gera conseqüências sobre a percepção dos direitos. O confinamento das mulheres no espaço doméstico e o fato de somente os homens terem acesso ao mundo público fazem com que as diferenças no exercício da cidadania sejam aceitas como naturais.

Logo, homens e mulheres apresentam representações distintas para a expressão “direitos da mulher”. Sem percepção efetiva do que seja isso, os homens primeiro indicam atributos subjetivos de gênero (por exemplo, sacrifício, sinceridade, paciência), depois se referem a melhores condições de vida não-material (ter dignidade, não sofrer violência, não ser humilhada, não ser ofendida, ser valorizada), mencionam valores éticos genéricos (igualdade, justiça, oportunidade) e chegam aos atributos domésticos (cuidar da casa, tratar bem do marido, cuidar dos filhos, etc.). As mulheres, por sua vez, entendem direitos como carências e necessidades, subjetivas e objetivas. Assim, nomeiam primeiro as melhores condições de vida não-material e os direitos econômicos (inclusive ao cadastramento, à propriedade de terra e à remuneração do trabalho), citam a liberdade, a independência e o direito de ir e vir, mencionam os atributos subjetivos de gênero e, por fim, clamam pelo direito ao lazer.

Gênero, participação e poder nos assentamentos rurais

As desigualdades de gênero expressas como assimetrias no exercício dos direitos possivelmente afetam a participação cidadã das mulheres tanto no que se refere à posse e ao uso da terra quanto ao envolvimento no processo de tomada de decisão nos espaços de representação dos assentados.

Em parte devido a essas desigualdades, a participação7 das mulheres, nos assentamentos, surge como uma iniciativa privada, individual ou familiar, não sendo objeto de discussão nas assembléias e reuniões. Essa participação difere substancialmente daquela verificada nos acampamentos.

Nestes, a atividade participativa de homens e mulheres parece marcada pelo ímpeto da conquista da terra e pela excepcionalidade do contexto de conflito e luta. O papel exercido pelas mulheres afigura-se fundamental nesse estágio. Além do trabalho reprodutivo, de sustento e apoio à mobilização, verifica-se que são elas que, muitas vezes, tomam a frente da luta, seja como parte da estratégia de enfrentamento aos seus opositores, seja em defesa e proteção de seus companheiros.8 Ainda assim, elas permanecem em segundo plano nos processos de negociação política, cabendo predominantemente aos homens o papel de tomadores de decisão.

A relativa eqüidade entre os sexos, observada no ambiente dos acampamentos, se esgarça e perde significado nos assentamentos. Uma vez conquistada a terra, parece ocorrer a rotinização da ação coletiva, com impacto sobre a participação de ambos os sexos, embora a feminina fique muito mais restrita. Além dos cargos tradicionalmente reservados às mulheres (professoras e agentes de saúde), elas ocupam - quando muito - posições menores, subalternas e auxiliares na estrutura organizacional da liderança dos assentamentos, basicamente voltadas para as rotinas administrativas: secretária, tesoureira, membro do conselho fiscal.

Essa baixa participação das mulheres nas instâncias de poder dos assentamentos pode ser explicada pela ocorrência de três fatores: primeiro, pelas convicções dos assentados de ambos os sexos quanto aos papéis e às limitações de homens e mulheres no exercício das atividades associativas, inclusive de liderança; segundo, pelas assimetrias das relações de poder entre homens e mulheres, que impõem constrangimentos diversos à participação feminina; terceiro, pelas barreiras formais - inscritas em regimentos ou estatutos - e informais existentes nos assentamentos, que limitam os direitos de participação às mulheres cadastradas, ou sócias das cooperativas, excluindo as outras. Ademais, participar requer tempo, local para deixar os filhos, possibilidade de viajar e de fazer cursos e a disponibilidade de recursos financeiros para pagar uma mensalidade à associação, condições que faltam às assentadas.

À guisa de conclusão

O título Companheiras de luta ou “coordenadoras de panelas”? não introduz um estudo sobre mulheres, embora nomeie uma pesquisa sobre relações sociais que privilegia a perspectiva de gênero, tão cara ao feminismo. Ele reflete, isto sim, uma postura política de valorização das populações marginalizadas, particularmente o segmento do meio rural mais excluído e vulnerável em função das dificuldades de acesso aos serviços de saúde, assistência, informação e educação: as mulheres assentadas.

A escolha do cenário de estudo nada tem de casual, uma vez que os assentamentos rurais representam um espaço privilegiado para o desenvolvimento de políticas públicas voltadas à promoção da igualdade de gênero. Primeiro, porque eles contam com limites espaciais bastante definidos, possuindo uma certa “territorialidade”. Segundo, porque seu cotidiano está pautado em regulamentos, divisão de trabalho e hierarquia que caracterizam organização. Terceiro, porque seus membros compartilham uma identidade social (a de “assentados”) decorrente da experiência comum de luta e da discriminação por vezes sofrida. Quarto, porque agregam um significativo capital social, conceito que traduz as identificações baseadas em valores compartidos que se realizam pela negação das desigualdades existentes na ordem do mercado.9 Finalmente, porque apresentam uma história muito peculiar, imbricada na mobilização social e num discurso que privilegia a educação cultural e a ética da igualdade na participação.

Não surpreende, pois, que a educação e, de modo mais específico, a escolaridade sejam tão valorizadas nos assentamentos por homens e mulheres, que as encaram como via de superação das barreiras sociais existentes. Nelas, além de meio de ascensão social e de aumento da empregabilidade, eles reconhecem o acesso possível aos bens culturais, à conscientização do mundo e à capacidade de transformar a sociedade pelo conhecimento dos próprios direitos e desenvolvimento da cidadania.

Trata-se de uma idéia de educação também compartilhada por Amartya Sen, autor do novo conceito de desenvolvimento humano adotado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Segundo ele, a educação exerce impacto positivo sobre as relações sociais em geral, e a expansão da escolaridade das mulheres pode reduzir a desigualdade entre os sexos.

Contudo, se a escolaridade constitui uma condição necessária para transformar as relações de gênero nos assentamentos rurais, mediante a superação das desigualdades entre homens e mulheres, ela não se revela suficiente. Isso porque, também ali, o sistema escolar reproduz as iniqüidades de gênero que organizam a estrutura social e cultural como todo. Ademais, a educação formal privilegia a preparação dos indivíduos para o mercado de trabalho (área que encerra nítidas desvantagens para as mulheres), em detrimento da ênfase no desenvolvimento humano.

Observe-se que, por um lado, a transformação das relações de gênero é, em grande medida, resultado de progressiva e profunda mudança cultural, não decorrendo do simples aumento da escolaridade. Por outro, as mudanças na escolarização feminina deverão produzir impactos substantivos sobre as relações de gênero apenas a médio e longo prazos.

Não obstante, as jovens mais escolarizadas podem tornar-se, progressivamente, importantes agentes na superação das assimetrias de gênero e, dessa maneira, melhorar a qualidade de vida e as oportunidades femininas no futuro. Assim, parece promissora a descoberta de que as moças registram o nível de escolaridade mais elevado dos assentamentos.

Infelizmente, não há avanço similar na esfera da sexualidade, que apresenta enormes assimetrias de gênero, sobretudo em função do recato exigido das mulheres e da ousadia esperada dos homens. A prática desses comportamentos e a falta de informação suficiente para assegurar atitudes responsáveis e seguras tornam ambos os sexos vulneráveis às doenças sexualmente transmissíveis, especialmente a Aids.

Preocupa sobremaneira a falta de prevenção nos assentamentos entre casais em união estável, grupo cada vez mais atingido pela doença. Essa expansão se deve não só à infidelidade conjugal, mas também ao medo (feminino) de negociar o uso do preservativo, o que poderia parecer o rompimento do pacto de confiança mútua.

Igualmente preocupante é a convicção de que os assentamentos constituem sistemas fechados, protegidos e invulneráveis aos perigos de fora, inclusive ao contágio da doença. Isso, no entanto, não condiz com a realidade, uma vez que os assentados têm longa história como migrantes, muitos dos seus familiares trabalham nas cidades vizinhas e seus filhos adolescentes estudam nas imediações.

Registre-se, por oportuno, que as normas de gênero imprimem à sexualidade da mulher assentada as características de submissão e de inferioridade, mediante uma severa disciplina do corpo feminino. Essa disciplina impõe a virgindade, rechaça o aborto e cobra uma vivência sexual comedida, que se reflete até na responsabilidade pela prevenção da gravidez.

A exemplo do que ocorre com a sexualidade, também o trabalho feminino mostra-se carregado de clivagens e assimetrias de gênero. O desconhecimento da especificidade que marca a contribuição das mulheres no mundo do trabalho - e, por conseguinte, nos processos de desenvolvimento - favorece a subestimação de suas atividades na família e no espaço produtivo, acentuando a idéia de invisibilidade. O enfoque mais amplo dado pelas pesquisadoras evidencia que a plena participação das mulheres pode ser viabilizada mediante a eliminação das limitações que as marginalizam ou as tornam invisíveis, seja nas atividades domésticas, seja nas atividades públicas e produtivas.

Vale recordar que a pesquisa confirma que as mulheres atuam em todas as atividades do campo. Porém, tanto o discurso feminino quanto o masculino dão a esse trabalho o rótulo de “ajuda”, já que são os homens que recebem e administram a renda. Esse discurso não encontra respaldo senão na crença de que as mulheres não têm capacidade física ou psicológica de realizar as mesmas atividades que os homens, embora efetivamente o façam.

Note-se que a falácia da “naturalidade” da divisão sexual do trabalho vê-se desvelada pela pesquisa no momento em que as mulheres declaram-se não só trabalhadoras sem remuneração em atividades produtivas, mas ainda responsáveis por tarefas no mundo doméstico. Na verdade, essa divisão constitui uma amostra da persistência da imersão da sociedade ruralista numa cultura patriarcal.

Contudo, o novo já aparece: fica claro que as mulheres objetivamente geram renda que se incorpora ao orçamento familiar. Talvez assim se esteja gestando, nos assentamentos, o embrião de um novo papel feminino rural.

Hoje, no entanto, a invisibilidade do trabalho feminino reflete-se na forma como ele se dilui na cooperação familiar e no desconhecimento, por parte das mulheres, dos seus direitos sociais mais elementares, como o acesso à terra. Mesmo na ausência de restrições legais ao cadastramento, e ainda que as mulheres tenham passado pelo processo de acampamento, os cadastros são feitos em nome dos maridos, que também são os titulares do crédito e os agentes de comercialização do que foi produzido por ambos. Todavia, são fatores de natureza cultural e organizacional que mantêm as assimetrias de gênero no acesso à terra. Eles se expressam claramente na menor disponibilidade, entre as mulheres, da documentação necessária ao exercício dos direitos de cidadania.

Portanto, um dos grandes desafios da reforma agrária consiste em superar as desigualdades de gênero no tocante à propriedade. As mulheres precisam assumir amplamente os seus direitos, obter toda a sua documentação pessoal e ser cadastradas como beneficiárias dos projetos de assentamento rural em termos de igualdade com os homens.

Existe, ainda, um outro desafio a vencer, desta feita pelas entidades associativas que atuam nos assentamentos: recuperar os ganhos de capital social - cooperação, ação solidária, envolvimento cívico - no ambiente de desmobilização que caracteriza a fase pós-conquista da terra.

Apesar de tudo isso, cabe enfatizar que os resultados da pesquisa mostram que a vida nos assentamentos oferece perspectivas muito melhores do que a situação anterior de pobreza ou miséria vivida pelos assentados. De uma parte, porque possibilita uma condição mínima de sobrevivência material. De outra, porque confere dignidade a essas pessoas, que agora contam com uma parcela de terra onde podem ter residência fixa e tirar o sustento com o seu próprio trabalho.

Por todo o exposto ao longo do presente estudo, pode-se concluir que o livro sob exame impõe-se como obra de referência obrigatória a todos os que queiram estudar a questão de gênero no Brasil de agora em diante. Ele aumenta sensivelmente o campo de conhecimento dessas questões, sobretudo no meio rural, estimula a incorporação da perspectiva de gênero aos mais diversos setores da vida nacional e fomenta o debate de práticas exemplares sobre a autonomia das mulheres na luta contra a pobreza, pelo pleno exercício da cidadania e pela promoção de uma cultura de paz.


1 A família extensa diferencia-se da nuclear (reunião de pai, mãe e filhos) porque também incorpora parentes e agregados.


2 O trabalho da mulher fora de casa, como se verá adiante, parece invisível nos assentamentos, exceto no Rio Grande do Sul e no Paraná.


3 Recebe essa denominação o conjunto de atividades que produzem serviços e bens de consumo para o mercado, gerando renda.


4 Diferentemente das trabalhadoras urbanas, que têm que sair de casa para realizar suas tarefas extradomésticas, no meio rural é difícil separar o trabalho realizado na horta, no quintal e no roçado, do cotidiano da casa. Isso, possivelmente, leva a uma subestimação, pelas próprias mulheres, da jornada dedicada à atividade agropecuária, e contribui para a invisibilidade do seu trabalho.


5 Para cadastrar-se, o interessado deve apresentar os seguintes documentos: registro geral de identificação, certificado de pessoa física, carteira de trabalho, certificado de reservista, atestado de antecedentes criminais, certidão de casamento e certidão de registro de emancipação para os solteiros menores de 21 e maiores de 16 anos. Merece destaque, entre os documentos necessários ao desfrute dos benefícios previdenciários, o Bloco de Notas ou Bloco do Produtor, que caracteriza o indivíduo como trabalhador rural autônomo e mostra-se condição, no caso das mulheres, para o recebimento do salário-maternidade.


6 A parcela não pode ser dividida por três razões: primeiro, porque corresponde ao tamanho mínimo do módulo rural, não sendo passível de divisão legal; segundo, porque o módulo rural é o necessário para viabilizar a produção para o sustento de uma família, não duas; terceiro, porque a falta do título de propriedade da terra não permite que a parcela entre na partilha de bens.


7 Sob a perspectiva de gênero, a participação é sempre política e expressa a busca de autonomia, podendo envolver tanto posições de enfrentamento, como de colaboração e composição de interesses.


8 De fato, elas participam dos saques e das mobilizações, sofrem a repressão policial tanto quanto os homens e constituem importante elemento estratégico na medida em que legitimam a ocupação pela presença da família.


9 Com efeito, os assentamentos apresentam todas as condições institucionais e funcionais para a existência do capital social, a saber: controle social mediante normas compartidas pelo grupo e sanção, difamação ou castigo de indivíduos transgressores; criação de confiança entre os membros do grupo; cooperação coordenada em tarefas; resolução de conflitos; mobilização e gestão de recursos comunitários; legitimação de líderes; geração de trabalho em equipe.



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Este texto não substitui o publicado no DSF de 06/06/2002 - Página 10605