Discurso durante a 66ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Análise das políticas de segurança pública.

Autor
Antonio Carlos Valadares (PSB - Partido Socialista Brasileiro/SE)
Nome completo: Antonio Carlos Valadares
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SEGURANÇA PUBLICA.:
  • Análise das políticas de segurança pública.
Publicação
Publicação no DSF de 30/05/2003 - Página 13706
Assunto
Outros > SEGURANÇA PUBLICA.
Indexação
  • ANALISE, SEGURANÇA PUBLICA, VINCULAÇÃO, EXCLUSÃO, POBREZA, CRIME ORGANIZADO, FALTA, SOLIDARIEDADE, SOCIEDADE.
  • OPOSIÇÃO, PENA DE MORTE, PRISÃO PERPETUA, AGRAVAÇÃO PENAL, OBJETIVO, COMBATE, CRIME, DEFESA, EXTINÇÃO, IMPUNIDADE, ATENÇÃO, CARACTERISTICA, MODERNIZAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO, CRIME ORGANIZADO, IMPLANTAÇÃO, POLITICA SOCIAL, VALORIZAÇÃO, CIDADANIA, POPULAÇÃO CARENTE, MOBILIZAÇÃO, SOCIALIZAÇÃO.

O SR. ANTONIO CARLOS VALADARES (Bloco/PSB - SE) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, venho à tribuna do Senado Federal tratar de um importante aspecto da “segurança pública” que está sendo esquecido nos debates que estão sendo travados, porque para pensar em segurança pública é necessário, antes de tudo, como pressuposto fundamental da questão, verificar como andam os espaços de sociabilidade da sociedade brasileira.

É pouco provável alguém pensar que falar em sociabilidade, diante da completa falência do sistema de segurança pública nacional, é discutir teoria, enquanto o crime organizado aterroriza o País, matando juízes e atraindo os jovens brasileiros para a bandidagem.

Sr. Presidente, não resta dúvida de que a democracia brasileira, a passos lentos, mas firme e constante, assenta-se na sociabilidade, reciprocidade e comunicação no espaço público como cerne da cidadania, indo além dos limites da democracia eleitoral ou representativa; pois é a unidade e a integração que fazem um povo viver em um território, exteriorizar-se por este sentimento de caminhar junto e de organizar um Estado - o que deve ser, cotidianamente, alimentado por todas as formas e manifestações de participação coletiva.

Isso nos leva, Sr. Presidente, à questão da criminalidade e sua vinculação retórica com a pobreza. É que para a sociedade contemporânea, em que o capital transnacional financeiro-eletrônico inicia o movimento de abandonar a mão-de-obra, a pobreza não é mais mero exército de reserva de mão-de-obra. Tornou-se uma pobreza sem destino, que precisa ser isolada, neutralizada e destituída de poder.

Vejo uma onda gigantesca de alguns setores da sociedade partindo do pressuposto de que o delinqüente e os atos criminosos são apenas e tão-somente uma agressão ao consenso moral e normativo da sociedade. Por isso pregam que a punição do crime é uma necessidade imperiosa para o restabelecimento dos valores centrais do núcleo “da lei e da ordem” ao invés de tratar a segurança pública como elemento representativo da verdadeira sociabilidade entre os seres humanos - ou seja, do sentimento de solidariedade e de respeito mútuo.

Não vamos desviar a atenção dos que deveriam estar sendo controlados: os que fazem fortuna traficando drogas e armas, por um lado, e os que desviam as verbas que deveriam ser destinadas às políticas públicas que educariam esses jovens para uma sociabilidade positiva e para o direito de participação no Estado brasileiro.

Amordaçados pela lei do silêncio, seduzidos pelos apelos dos justiceiros ou grupos de extermínio, muitos trabalhadores pobres, de várias afiliações religiosas e políticas, acabam por comprometer-se com políticas conservadoras, autoritárias e de violação dos direitos humanos no seu desespero para sair de uma situação que lhes parece insuportável. E, muitas vezes, a sociedade também caminha neste sentido, deixando-se seduzir pelas propostas de apelo fácil no combate a criminalidade. É o que vemos em algumas propostas de pena capital, prisão perpétua, ou agravamento exorbitante da pena. Senhor Presidente, vamos lembrar que a maioria dos penalistas asseguram que não é o tamanho da pena, mas a certeza de sua aplicabilidade que pode induzir a uma diminuição da criminalidade. Apenas para exemplificar, o Dr. Marco Nahoum, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, classificou as propostas de aumento de penas como "irrelevantes" explicando que: "Ninguém deixa de matar ninguém por conta do aumento de penas, ou pelo crime ter sido alçado à categoria de hediondo. A lei dos crimes hediondos veio para inibir os seqüestros, da mesma forma que a classificação do homicídio como crime hediondo veio para inibir os homicídios, mas nenhuma dessas medidas legislativas barrou o avanço desses crimes. Esse não é o remédio adequado para o problema".

É preciso, pois, examinar com cuidado os mecanismos de combate ao crime que estão sendo apresentados, pois tais mecanismos parecem estar agora montados, rigidamente, na lógica da própria violência. As mesmas pessoas que falam tanto da globalização da economia insistem em repetir uma fórmula usada para criticar a política de segurança da República Velha, na qual “questão social” era “questão policial”.

Hoje o fenômeno da globalização também alcançou as organizações criminosas. Não há como negar a necessidade de se entender essa onda recente de violência no Brasil dentro do panorama do crime organizado internacionalmente; ou seja, do crime também transnacional, com características econômicas, políticas e culturais sui generis, sem perder algo do velho capitalismo da busca desenfreada do lucro a qualquer preço.

Dentro deste contexto de que o crime organizado possui estruturas complexas e movimenta um grande volume de dinheiro, é imperioso compreender o aumento da violência no Brasil moderno além das (necessárias) reformas institucionais do sistema penal e penitenciário, pois se por um lado é preciso compreender a bancarrota das instituições encarregadas de manter a lei, seja porque estão ausentes ou tornaram-se coniventes com o negócio ilegal; por outro lado, é necessário compreender o crime como decorrência da desagregação ou do esvaziamento das organizações vicinais ao Estado - Igrejas, associações de moradores, escolas, clubes, associações de pais e mestres e até mesmo das ONGs.

Sr. Presidente, para compreender o aumento da violência no Brasil, é necessário saber que o crime organizado hoje é uma entidade tão forte, presente e estruturado como qualquer Estado Nacional. E que ele se alimenta “daquela pobreza que precisa ser controlada, excluída, destituída de poder, porque está atrapalhando o bem-viver”, decorrência direta do fracasso do sistema social que, como disse antes, transformou a reserva da mão-de-obra do sistema capitalista em uma população sem destino e sem rumo! 

O problema do aumento da criminalidade vai desde a análise das técnicas do crime organizado, como livro de contas e planos elaborados; passando pela perda das figuras paternas e maternas que não mais se oferecem como modelos nem são capazes de controlar seus filhos; da mudança dos valores associados ao consumo, especialmente o consumo de “estilo” mais caro; pela total obsolescência do sistema legalista; até a uma patologia social derivada da cultura industrial de massa.

Tais afirmações, Srªs e Srs. Senadores, não implicam excluir a reforma no sistema penal e penitenciário ou até mesmo desprezar a distribuição de renda no País, que apresenta um dos índices mais altos, senão o maior, de desigualdade social no mundo; mas sim um alerta para o fato de que apenas a implementação de políticas públicas que não contemplem a especificidade da nova criminalidade não serão suficientes nem eficazes para combater o crime organizado, até porque frisar os altos ganhos daquilo que os favelados chamam "dinheiro fácil" é decretar o fracasso de qualquer política social, pois são raríssimos os empregos, mesmo os de classe média, que oferecem os níveis de renda supostamente existentes no tráfico de drogas ilegais.

Ao mesmo tempo, é preciso afastar o preconceito existente na postura de “se implantar política social para combater o crime organizado”. Ora, Srªs. e Srs. Senadores, as políticas sociais devem ser implantadas não porque os pobres constituam um perigo à segurança pública, não porque eles sejam a classe perigosa, mas porque um país democrático e justo não pode existir sem tais políticas! As políticas sociais, se destinadas a combater a criminalidade, refletem puro preconceito, pois estarão tratando os indivíduos pobres como “objeto de direito”; enquanto, na verdade, se as compreendermos porque são inadmissíveis a privação de oportunidades e a desigualdade social, os beneficiários serão “sujeitos de direitos”, ou seja, cidadãos!

No mesmo sentido, acenar apenas para reforma do sistema penal e penitenciário é acentuar a concepção preconceituosa de se buscar controlar a pobreza que se tornou descartável e inoportuna.

Veja, Sr. Presidente, o exemplo da política de combate às drogas, que no Brasil - à semelhança dos Estados Unidos - é fundada exclusivamente no critério punitivo. Tal política reflete uma simplificação ineficaz do problema, pois nem nos Estados Unidos nem no Brasil a punição diminuiu o uso das drogas. Aliás, o uso das drogas não pode ser vinculado ao pobre, pois elas também são usadas por grupos profissionais bem-remunerados e prestigiados, como jornalistas, artistas e operadores da bolsa de valores, ou por estudantes universitários de famílias prósperas, quiçá utilizado até por empresários, parlamentares, ou outras altas autoridades. A grande diferença - e aqui está outra manifestação da desigualdade do Brasil - é que os usuários pobres não têm o mesmo acesso aos serviços de saúde para tratá-los no caso de abuso, nem para defendê-los no caso de problemas com a Justiça. Em suma, sem uma política pública que modifique a atual criminalização do uso de drogas, sem uma política de redução do risco do seu uso na área da saúde e sem um projeto educativo de prevenção de seu uso entre os jovens não conseguiremos modificar o atual cenário de violência e injustiça existente no País.

Srªs e Srs. Senadores, estamos vendo o falso movimento de alguns setores da sociedade querendo se mobilizar para combater a violência que assola o Brasil. O uso político dessa desgraça, que acrescenta ainda mais sofrimento para as famílias pobres, pode estar garantindo espaço nos jornais, mas não nos está tornando mais capazes de montar políticas públicas eficazes para minorar os problemas complexos desse quebra-cabeça. Hoje temos a enfrentar, simultaneamente, uma questão social, que é também uma questão de educação e de saúde pública, articulada a uma questão jurídico-penal-policial e de compreender o crime organizado como uma bem articulada estrutura internacional.

Uma tarefa de tal monta, que envolve tantos e tão complexos processos, não pode ser exclusividade de nenhuma instância ou organização (governamental ou não). Esses problemas tampouco serão resolvidos com o funcionamento focalizado do Sistema de Justiça, que pune o criminoso menor, menos importante, ou seja, somente o pobre. Isso também significa estar atento e responder às insidiosas tendências da globalização via mídia e indústria cultural, principalmente aquelas que alteraram as formas de sociabilidade e de solidariedade, sobretudo as que organizam os jovens das camadas mais pobres. Por isso, é preciso um trabalho intenso com a juventude para reconquistar seu coração e mente, com a valorização daquilo que foi montado no País pela iniciativa política e a criatividade cultural das camadas da população chamadas de populares.

São louváveis e bastante oportunas as discussões e propostas sobre a “segurança pública”, sob o ponto de vista de se melhorar o sistema penal e penitenciário brasileiro, bem como aqueles projetos legislativos que advogam políticas sociais visando a combater a criminalidade entre os jovens. Todavia, é bastante rarefeito o fôlego dos programas governamentais dos Estados e Municípios que visam a facilitar a sociabilidade da população, por exemplo, abrindo espaço político para reconhecer e estabelecer todos os tipos de parcerias com todas as formas de associações comunitárias, reforçando a solidariedade e mobilizando a sociedade para os jogos sociais.

Assim, Sr. Presidente, ao lado de medidas policialescas, são necessárias políticas de segurança pública democráticas que trarão de volta o respeito à dignidade humana, a cidadania, a efervescência social e cultural em favor da população. Para cuidar da segurança pública e reduzir a violência é necessário, antes de tudo, abandonar os valores de consumo e o preconceito de que todo pobre é bandido, sempre tratando o crime organizado como a grande empresa transnacional que ele é.

Era o tinha a dizer.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 30/05/2003 - Página 13706