Discurso durante a 99ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Considerações sobre o federalismo.

Autor
Marco Maciel (PFL - Partido da Frente Liberal/PE)
Nome completo: Marco Antônio de Oliveira Maciel
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
ESTADO DEMOCRATICO.:
  • Considerações sobre o federalismo.
Aparteantes
Almeida Lima.
Publicação
Publicação no DSF de 19/08/2003 - Página 24007
Assunto
Outros > ESTADO DEMOCRATICO.
Indexação
  • COMENTARIO, HISTORIA, CRIAÇÃO, FUNCIONAMENTO, FEDERAÇÃO, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), COMPARAÇÃO, PROCESSO, BRASIL.
  • QUESTIONAMENTO, EFICACIA, PROCESSO, DISTRIBUIÇÃO, PODER, UNIÃO FEDERAL, ESTADOS, MUNICIPIOS, IMPORTANCIA, ADAPTAÇÃO, DESIGUALDADE REGIONAL, AMBITO, POLITICA, ECONOMIA, TERRITORIO, QUANTIDADE, POPULAÇÃO, PACTO, FEDERAÇÃO, GARANTIA, DEMOCRACIA.

O SR. MARCO MACIEL (PFL - PE. Pronuncia o seguinte discurso. Com revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, para a discussão das reformas constitucionais, em que estão empenhados o Congresso Nacional e o Poder Executivo, pode não ser o momento adequado, mas é, seguramente, o mais oportuno, a fim de ferirmos, numa série de pronunciamentos de que este é o primeiro, a desafiadora questão de Federalismo no Brasil.

Considero ser oportuna a ocasião, em face de estarmos inscrevendo na Constituição Federal disposições como limite salarial de integrantes dos poderes e dos serviços públicos estaduais, assunto que dificilmente se discutira no Legislativo de qualquer outra federação, seja ela monárquica ou republicana, presidencialista ou parlamentarista e pouco provavelmente se encontrará em qualquer outra constituição. A indagação cabível, a meu ver, é como e por quê chegamos a tanto?

O cerne desse desafio não respondido pode ser resumido num simples raciocínio: o sistema federativo, por oposição à forma unitária do Estado, prevalecente e praticada em todo o mundo ocidental, por ser a única conhecida até a Constituição americana de 1787, nada mais que uma alternativa para se distribuir espacialmente o poder. Solução utilizada mesmo em estados de pequena ou média expressão territorial, com muito mais razão aplica-se aos de grande área geográfica, como os Estados Unidos, a Índia e a Rússia, para cingir aos mais notórios. Ela tem, para a configuração do poder político, a mesma relevância que a teoria de separação funcional dos poderes, velha de mais de dois séculos e meio, desde que formulada por Montesquieu no Espírito das Leis, em 1748.

A divisão de funções entre poderes do Estado segundo sua especialização pelo referido autor francês e hoje matéria pacífica como requisito essencial à estruturação democrática dos regimes políticos. Sua consagração como preceito ideológico remonta ao art. 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: - “Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não está assegurada, nem a separação de poderes determinada, não possui uma Constituição.”

A origem e o fundamento da divisão espacial do poder, representados pela federação, por sua vez, devem ser procurados entre aqueles que criaram o primeiro regime federativo em todo o mundo. O modelo confederativo, como se sabe, já era conhecido historicamente e foi adotado nos “Artigos da Confederação” que precederam e viabilizaram a luta pela Independência das treze colônias. O que marca a singularidade do novo sistema é exatamente a diferença entre as confederações anteriores e a alternativa criada pelos convencionais da Filadélfia. Comentando os artigos de O Federalista, o constitucionalista Benjamin Fletcher Wright trata do tema, assinalando:

“(...) o ponto de maior distinção entre o novo sistema dos Estados Unidos e o existente na Grécia, na Itália Medieval, na Suíça, na Alemanha ou na Holanda, é que, antes de 1787, o governo central nas federações ou, mais propriamente, confederações, não passava de um agente dos Estados”.

Benjamin Constant de Rebecque, antes de Tocqueville, já tinha chamado a atenção em seus Escritos Políticos, para a circunstância para ele mais relevante que o fundamento da teoria de Montesquieu ao escrever: “A questão central do poder não é sua divisão, mas a sua quantidade”. Para o grande liberal francês de origem suíça, não basta saber quem detém o poder, mas de que parcela dispõem aqueles que o detêm. Os convencionais da Filadélfia, vide, mais uma vez, O Federalista, foram acusados exatamente de abandonar os velhos princípios e defender algo para muitos considerado impossível: como dividir algo indivisível, como a soberania do Estado? O próprio Hamilton, um dos autores de “O Federalista”, advogava um poder centralizado. Madison, no chamado Plano Virgínia previa uma cessão geral de poderes ao governo central. Em compensação, defendia a competência do congresso para vetar a legislação estadual que contrariasse, na opinião da legislatura nacional, as cláusulas da União.

O argumento de que a soberania do novo Estado não seria dividida, mas compartilhada entre a União e os Estados, terminou prevalecendo, não sem dificuldades.

Invoco muito sumariamente o modelo americano, tão somente para lembrar o quanto se distingue do nosso caso. Os Estados Unidos nasceram federalistas. O Brasil nasceu unitário. Nos Estados Unidos, os “Artigos da Confederação” precedem a Independência e a Constituição. Por isso, lá tem sentido falar-se em pacto federativo. Entre outras razões, porque o documento que o materializou, a Constituição, foi aberta à adesão das antigas colônias e não entrou em vigor senão quando a maioria dos Estados explicita e voluntariamente a ratificaram. A Federação Brasileira - frise-se - é fruto de árvore republicana. Foi “constituída”, é a palavra empregada no texto da Constituição de 1891, pela união indissolúvel e perpétua de suas antigas províncias”. Precede a própria Constituição, pois sua origem é o Decreto nº 1, de 15 de novembro de 1889, que institucionalizou o novo regime. Não houve consulta, discussão, negociação e nem sequer adesão. Foi declarada, imposta e considerada cláusula pétrea, como, aliás, até hoje.

É aqui que voltamos forçosamente à questão levantada por Benjamin Constant de Rebecque, em 1815. Que qualidade de poder se concede à União, e que parcela dela ser atribuída aos Estados? Em que medida se deve separar, de forma insofismável, a soberania nacional da autonomia estadual? Em 1787, volto aos Estados Unidos, dividir as funções de governo segundo sua especialização, era questão resolvida há 40 anos. Institucionalizar a Federação levou algum tempo.

A Constituição foi assinada pelos convencionais, em 17 de setembro de 1787 e até dezembro apenas três das antigas colônias a ratificaram. Em 1788, mais oito o fizeram e só em 30 de abril de 1789 George Washington tomou posse como primeiro presidente. Carolina do Norte e Rhoder Island, quando o Congresso já havia votado as dez primeiras emendas, portanto bem depois de promulgada a constituição.

Entre nós, a amplitude da autonomia e também das responsabilidades estaduais foi consagrada na Constituição de 1891, em versão não verificada em qualquer dos textos constitucionais posteriores. O princípio geral estava fixado no art. 65, notadamente em seu item 2º, de acordo com o qual era assegurado aos Estados “todo e qualquer poder e direito que não lhe foi negado por cláusula expressa ou implicitamente contida nas cláusulas expressas da Constituição”. Em outras palavras, era-lhe permitido tudo que não lhes fosse expressamente proibido. Outra de suas prescrições assecuratórias dava ampla autonomia. O art. 5º, no qual se lê: “Incumbe a cada Estado prover, a expensas próprias, as necessidades de seu governo e administração: a União porém, prestará socorro ao Estado que, em caso de calamidade pública, o solicitar”. Era auxílio tão excepcional a ponto de ser incluído entre as atribuições do Congresso Nacional, por força de sua competência privativa, inscrita no art. 34, item 14: “conceder subsídios aos Estados, na hipótese do art. 5º”.

Trata-se, sem dúvida, de uma autonomia à autrance, num País que, depois de três séculos de dependência de uma metrópole européia, e de 65 anos de unitarismo centralizado, viu-se sob um regime de partilha de poderes que, testado, mostrou distorções, inconvenientes e desajustes só muito tardiamente corrigidos. Entre eles estava não só a regionalização dos partidos, mas a própria estadualização do sistema eleitoral, em face do que dispunha o mesmo art. 34 referente a competência do Congresso em seu item 22: “Regular as condições e o processo das eleições para os cargos federais, em todo o País”.

Outro dos aspectos da ampla autonomia estadual está explicitada nos artigos 61 e 62, referentes ao Poder Judiciário. O primeiro dispunha que as decisões dos juízes ou tribunais dos Estado, nas matérias de sua competência porão termo aos processos e às questões, salvo habeas corpus ou espólio de estrangeiro quando a espécie não estiver prevista em convenção ou tratado. E o segundo proibia a interferência da justiça dos Estados nas questões submetidas aos tribunais federais e as destes nas das justiças estaduais.

A despeito da inexperiência nacional na organização federativa do Estado, apesar de se tratar de um modelo inédito e desconhecido no País e sem embargo de suas deficiências, a república sob a qual viveu a Nação em 1891 e 1930, foi - assim penso - até hoje a fase mais duradoura e de maior continuidade política, institucional e econômica do Brasil Republicano. É bem verdade que sua estabilidade se alicerçou em dois pilares. Num pacto de conveniência engenhoso como a “política dos governadores” de Campos Salles que sacrificou a autenticidade do voto e uma continuada ação intervencionista a que não estiveram ausentes sublevações, insurreições, rebeliões e até bombardeio por forças federais das capitais de alguns Estados.

O que marcou então as diferenças entre o federalismo americano e a sobrevivência da federação republicana entre nós? É preciso lembrar, desde logo, que as 13 colônias que se confederaram constituíam uma pequena nesga na costa ocidental da América do Norte, ao passo que o Brasil do fim do século XIX, já era num país de dimensões continentais e desde o Império um conjunto assimétrico de províncias, quer sob o ponto de vista territorial e demográfico, quer economicamente.

No primeiro caso, o modelo de divisão espacial dos poderes foi sendo sedimentado ao longo de mais de um século, e é bom não esquecer que quando os interesses regionais se confrontaram com os da União, o país viveu a mais sangrenta das guerras civis do continente. Hoje, a distância que separa o Estado de maior do de menor renda é de apenas quatro vezes nos Estados Unidos, enquanto entre nós é de 14,7 vezes. Isto para nos referirmos ao critério econômico, porque se apelarmos para a diferença da expressão demográfica, a distância é um para cem! Equilibrar poderes, distribuir competências e repartir responsabilidades rigorosamente simétricas, numa Nação tão profundamente assimétrica, mais que um desafio de engenharia política, continua sendo uma incógnita ainda não decifrado.

Talvez por isso esta que é Casa da Federação e, portanto, cujo primeiro dever é a busca do equilíbrio federativo, tenha certa dificuldade em buscar soluções para o enigma que, como a esfinge, ameaça nos devorar politicamente.

Soubemos na Carta de 1988, tornar simétrica a divisão de poderes do Estado, e à época cunhei o neologismo “eqüipotência dos poderes”, para definir uma das características de uma república verdadeiramente democrática. Creio que, nessa matéria, nossa experiência constitucional tem sido bem sucedida, nos períodos de normalidade institucional. O que nos falta agora é conciliarmos a assimetria política, econômica, territorial e demográfica do País, com a simetria federativa, requisito sem o qual poderemos continuar sendo uma democracia, mas corremos o risco de desvirtuar a federação que herdamos do regime republicano.

Não pretendo esgotar o enigma que nos legou Benjamin Constant de Rebecque. Reservo-me, Sr. Presidente, para voltar proximamente ao tema, consciente de que, numa análise superficial, jamais responderemos a questão que angustia toda e qualquer federação. Estarão distribuídos de forma equilibrada os poderes de que dispõe a União e aqueles concedidos aos Estados? Trata-se não só de uma questão de poder, mas da quantidade dele, a retida e a repartida. Os limites colocados pela Constituição são realistas, exeqüíveis e adequados à nossa realidade e às nossas necessidades? Esta, a meu ver, a pergunta que, em algum momento teremos que nos fazer - e penso ter esta Legislatura a tarefa de responder - se quisermos, como almejamos, o aprimoramento do regime, a sua eficiência e, acima de tudo, a sua estabilidade. Para esse objetivo espero concorrer com outras intervenções sobre a necessidade de realizarmos as mudanças político-institucionais capazes de ensejar avanços no território da governabilidade.

O Sr. Almeida Lima (PDT - SE) - Senador Marco Maciel, V. Exª me concede um aparte?

O SR. MARCO MACIEL (PFL - PE) - Concedo um aparte ao nobre Senador Almeida Lima.

O Sr. Almeida Lima (PDT - SE) - Senador Marco Maciel, quero me congratular com V. Exª por mais uma vez trazer ao Senado Federal esse tema que versa sobre a necessidade, assim me parece, pela conclusão de V. Exª, de profunda reforma política do Estado brasileiro. Vejo que V. Exª deseja retomar tal matéria em pronunciamentos seguintes. Devo dizer a V. Exª e a esta Casa que esse tem sido um tema que tenho integrado às minhas preocupações, haja vista que foi matéria do meu primeiro pronunciamento, hoje sintetizado em três propostas de emenda à Constituição já apresentadas a esta Casa, de números 52, 53 e 54. Não me refiro, como pareceu em outro instante de uma fala minha, à reforma político-eleitoral-partidária, que se encontra em andamento no Congresso Nacional, embora também entenda, nas proposituras, que o assunto não esteja esgotado, mas que deve ser bem mais amplamente discutido, sobretudo até por considerar que hoje não vivenciamos uma república democrática, mas uma república aristocrática. Mas aí esse é um outro tema. Quero me somar e dizer que, possivelmente ainda esta semana, ocuparei a tribuna desta Casa para discorrer sobre essa matéria e, pela primeira vez no plenário, embora já tenha concedido várias entrevistas a respeito na TV Senado, farei uma abordagem mais explícita da Proposta nº 53, que versa exatamente sobre o enxugamento do Poder Legislativo brasileiro, além da distribuição de suas competências em torno dos Poderes, não apenas quanto ao aspecto territorial, ao qual V. Exª acabou de referir-se, mas também quanto à questão das funções, das competências no que diz respeito aos três Poderes e a seus três níveis: União, Estados e Municípios. Quero, evidentemente, fazer uma observação final, conclusiva, sobretudo porque se trata de um aparte. Faço uma referência à literatura, à teoria política, citada por V. Exª, com relação à origem da Federação Americana. Na verdade, foram felizes com relação ao tema e à discussão, o que não aconteceu no Brasil. Se, no início, planejavam uma confederação, resultou, pela Convenção de Filadélfia, uma federação, que se distingue da primeira pela necessidade que o Governo da União tinha de se relacionar não apenas com os Estados, integrantes da Federação, mas também com o cidadão, o que não era permitido no modelo previsto anteriormente de confederação, em que a União não poderia estabelecer a legislação que atingisse os interesses diretos do cidadão nos Estados, mas apenas quanto aos Estados. Nos artigos federalistas, esse ponto ficou bastante equacionado, depois de discutido, chegando a se contrapor à doutrina até então conhecida e dominante de uma figura esplêndida, citada por V. Exª, o Barão de Montesquieu. Na sua obra O Espírito das Leis, ele imaginava, assim como Rousseau, não ser possível a criação de uma federação em países cuja dimensão territorial fosse tão extensa como a dos Estados Unidos, pois até então tinha como referência histórica as cidades gregas e romanas, onde havia governos populares, repúblicas populares, mas que não se adequavam a essa grande extensão territorial. Madison, Jay e Hamilton mostraram, com muita clareza, com muita evidência, que era possível se houvesse a divisão o mais eqüitativa possível dos poderes, com a instituição do que chamavam pesos e contrapesos, estabelecendo um equilíbrio entre os Poderes da União e, por reflexo, dos Estados e, na sua extensão, dos Municípios. Portanto, entendo que aquele foi um momento feliz da Nação americana. O que faltou a nós foi essa discussão para se estabelecer um instrumento político de Estado capaz de promover as transformações e o desenvolvimento econômico e social que aquele povo vivencia até hoje, dando exemplo a toda a humanidade. Era a simples contribuição que eu queria dar a V. Exª, dizendo que esta Casa deveria, sim, ter a responsabilidade maior de discutir com muita profundidade o tema que mais uma vez V. Exª traz a este plenário.

O SR. MARCO MACIEL (PFL - PE) - Nobre Senador Almeida Lima, louvo a preocupação que V. Exª tem demonstrado, no exercício do mandato de Senador, com as instituições, de modo especial com as reformas voltadas para o aperfeiçoamento das instituições brasileiras, inclusive da Federação.

            Como V. Exª observou, foi muito diverso o processo de consolidação institucional brasileiro se comparado com o dos Estados Unidos. Estimo que possamos continuar a discutir esse tema, posto que se trata de matéria que ajudará, e muito, a melhorar os níveis de governabilidade do País e que diz respeito ao Senado Federal, a Casa da Federação, a Casa dos Estados. O aperfeiçoamento não somente da República e das instituições republicanas, mas sobretudo da Federação que é algo que nos interessa de perto.

Portanto, minhas palavras de agradecimento ao aparte de V. Exª.

Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/08/2003 - Página 24007