Discurso durante a 105ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Críticas à globalização. Convicção do potencial que o desenvolvimento local tem para a solução dos grandes problemas nacionais.

Autor
Amir Lando (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RO)
Nome completo: Amir Francisco Lando
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA DE DESENVOLVIMENTO.:
  • Críticas à globalização. Convicção do potencial que o desenvolvimento local tem para a solução dos grandes problemas nacionais.
Publicação
Publicação no DSF de 27/08/2003 - Página 25082
Assunto
Outros > POLITICA DE DESENVOLVIMENTO.
Indexação
  • ANALISE, DOUTRINA, POLITICA ECONOMICO FINANCEIRA, GLOBALIZAÇÃO, CRITICA, EXCESSO, ATENÇÃO, DESENVOLVIMENTO, MERCADO, OBTENÇÃO, LUCRO, INCENTIVO, POBREZA, EXCLUSÃO, CONCENTRAÇÃO DE RENDA, VIOLENCIA, AFASTAMENTO, POPULAÇÃO, CRESCIMENTO ECONOMICO.
  • DEFESA, CRIAÇÃO, PROJETO, DESENVOLVIMENTO, CAPACIDADE, LOCAL, INVESTIMENTO, RECURSOS FINANCEIROS, TRANSFERENCIA, INFRAESTRUTURA, TECNOLOGIA, MUNICIPIOS, PARTICIPAÇÃO, POPULAÇÃO, SOLUÇÃO, PROBLEMAS BRASILEIROS, DESENVOLVIMENTO NACIONAL.
  • COMPARAÇÃO, INFORMAÇÕES, ESTUDO, INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA (IBGE), MINISTERIO DO DESENVOLVIMENTO AGRARIO, SITUAÇÃO, POPULAÇÃO, ZONA RURAL, ZONA URBANA, DEFESA, INCENTIVO, PRODUÇÃO, ALIMENTOS, EMPREGO, RENDA, MUNICIPIOS, CONTENÇÃO, MIGRAÇÃO, CIDADE, COLABORAÇÃO, GOVERNO FEDERAL, DESENVOLVIMENTO ECONOMICO.

O SR. AMIR LANDO (PMDB - RR. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, que Deus me perdoe, mas sempre desconfiei dos dogmas. Principalmente depois que eles saíram da seara exclusiva da fé religiosa e se semearam no campo dos sistemas políticos e econômicos. Ainda bem que, em economia, eles são infinitos enquanto duram. É que, neste caso, em mão contrária, são os homens os criadores do “Deus-Mercado”. Ele é todo-poderoso, submete nações e governos, subjuga povos, promove coletas, demoniza Estados, mesmo que estes pratiquem o apostolado da democracia.

A atual doutrina deste mercado, para os seus fiéis seguidores, é a chamada globalização. Infiéis, no caso, são aqueles que, como eu, defendem a soberania nacional, os valores internos e as culturas locais. Não me penitencio, porque acredito que tudo o que dissemina a fome e miséria não pode ser venerado. Por isso, estou convicto de que a minha crítica à globalização não me levará à penitência, por excesso de indulgência.

Não tenho dúvidas, entretanto, de que a globalização, como doutrina de salvação das nações, sobretudo as menos desenvolvidas, passou. Deixou, porém, atrás de si, um rastro de destruição, de sofrimento, de pobreza, de dor e de exclusão social. Hoje, um novo dilema se coloca. Não a orbe, o globo, senão que a urbe se levanta como antítese à globalização. Os valores locais, a sociedade local, a comunidade, enfim, constrói soluções para questões devastadoras da orbe. É, neste ponto, que cabe a nós engendrar soluções locais. Por exemplo, a instituição de um sistema financeiro local alicerçado nas cooperativas e associações de crédito, para que se livre das garras da especulação financeira internacional; a construção de um sistema de auto-subsistência, para alimentar populações famintas, a partir de um sistema de trocas regionais, segundo o lema “aqui se come, aqui se produz; aqui se produz, aqui se consome”; a organização da comunidade para atender à demanda habitacional; a criação de uma indústria de processamento de produtos básicos locais, que encontrará na comunidade a capacidade criativa engenhosa para lhe propiciar a necessária sustentabilidade.

Não se pode permitir que os efeitos da globalização destruam os valores locais. Por isso, não há contradição, em tempos de mercado global, na defesa do desenvolvimento local sustentável. A realidade tem demonstrado que a doutrina da globalização não deu conta de sanar os graves problemas da crescente pobreza mundial e, em particular, do Brasil, colocando em risco a sustentabilidade humana e ambiental de todo o planeta. Ao contrário, no rastilho da internacionalização dos mercados, a especulação financeira, a dívida decuplicada em menos de dez anos, a concentração de renda, a fome, a miséria, a exclusão social e a violência. Refém do mercado e dos credores, resta ao Estado agilizar os potenciais locais, tanto no sentido de uma maior eficiência na alocação dos recursos, cada vez mais escassos, quanto da maior conscientização da população como partícipe de um efetivo processo de mudança social, econômica e política.

Ainda bem que, apesar da força dos argumentos e da praga da especulação financeira, a globalização, até aqui, não foi suficiente para homogeneizar as culturas locais. Em todos os espaços, territoriais e humanos, ainda persistem experiências singulares, expressando identidade dentro da diversidade. Isto porque, é no local onde se desenvolvem os fatos sociais mais elementares e fundamentais da vida humana, o conjunto das relações e atividades sociais, econômicas, políticas, culturais e afetivas. Esse local, eu entendo, como todas as relações humanas, estejam elas nas comunidades, nos assentamentos de reforma agrária, nos municípios ou nas microrregiões que congregam valores e interesses comuns.

É que a própria doutrina da globalização, por definição concentradora, impulsionou o seu próprio contraditório, num processo dialético, demonstrando a necessidade da construção de um novo paradigma, revendo valores, conceitos, instituições, modelos e finalidades do desenvolvimento. E, no caso, as experiências locais têm apontado a melhor direção. Inúmeros municípios e comunidades vêm edificando projetos de desenvolvimento local, calcado não somente sob a ótica dos investimentos puramente financeiros, da transferência de tecnologia e da infra-estrutura econômica, mas, principalmente, na concepção do respeito aos ecossistemas, da democratização do conhecimento e do poder, da importância das relações sociais e, até, da valorização das energias emocionais e afetivas. Esse tratamento local dos problemas substitui, também, uma prática, constante até então, de tratar as questões a partir de um enfoque vertical e setorializado, sem a compreensão exigida da lógica cruel de um modelo econômico discriminante. O desenvolvimento local abrange todas as dimensões da realidade, o econômico, o social, o político, o cultural e o ambiental.

Em um primeiro momento, o município pode ser a instância mais importante para a concretização deste novo paradigma de desenvolvimento. É no município onde, obviamente, a realidade se revela. É exatamente ali que atuam os diferentes atores e grupos sociais, que se movimentam no sentido da solução de problemas, na agilização de potenciais e na conscientização popular no sentido da melhor escolha da sua representação política. A melhor gestão da política pública se dá no município, legitimada pela participação da população local em todas as suas etapas, desde a concepção, até a avaliação da eficiência e da eficácia dos resultados.

Um outro dogma, alimentado pelo viés da metodologia, é que o Brasil é um país essencialmente urbano, onde, apenas, um em cada cinco pessoas vive em espaços rurais. É que o IBGE considera urbana toda a população que reside nas sedes dos municípios e dos distritos, independente de suas características, como tamanho, densidade demográfica e relações econômicas e sociais que ali se estabelecem. É como se as placas indicativas de “perímetro urbano” modificassem, consideravelmente, as relações que, a partir dali, se celebram. Isso não espelha a realidade. Os municípios brasileiros, isso sem contar os distritos no seu mais interior, são, na sua imensa maioria, tipicamente rurais.

Estudos recentes, realizados pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, com base em critérios adotados por organizações internacionais, dão conta de que, ao contrário do que estipula o IBGE, quase um terço da população brasileira, 52 milhões de pessoas, mora em áreas essencialmente rurais, em 4.500 municípios, ou mais de 80% deles. Isso, sem contar as populações que migraram para as grandes cidades, mas que mantêm, vivas, caracteristicamente rurais.

Essa tese no sentido de “ruralizar” o País não significa que se queira descartar os problemas caracterizados como tipicamente urbanos. Ao contrário, o rural e o urbano, no País, são faces de uma mesma moeda, cujos problemas principais advêm da exclusão social que coloca o Brasil na lanterna da distribuição de renda de todo o planeta. O que se quer enfatizar é que, pelas características de seu processo histórico de ocupação, e pelas conseqüentes habilidades herdadas pela sua população, o desenvolvimento rural tem todas as condições, no Brasil, de alavancar o novo paradigma de desenvolvimento sustentado no tratamento de problemas e na agilização de potenciais locais. 

O momento atual para as políticas públicas aponta no sentido da necessidade, urgente, da resolução dos problemas advindos, exatamente, do processo de globalização, ou seja, a falta de recursos carreados para o pagamento de uma dívida que se avolumou decorrente do próprio modelo econômico adotado nos últimos anos, a inexistência de instrumentos, por parte do Estado, para promover o crescimento econômico com distribuição de renda e o próprio desmonte do Estado, em nome da maior eficiência do mercado. É aí que se coloca, portanto, a necessidade de se articular as políticas nacionais com as iniciativas locais.

Não restam dúvidas de que, entre os grandes problemas nacionais da atualidade, gerados por um modelo concentrador de renda, ressaltam-se a fome, o desemprego e a violência. Esses mesmos problemas são reforçados pela desenfreada migração rural-urbana, captada pela metodologia do IBGE. Não há como negá-la. Ocorre que, as migrações são mais significativas nas populações mais jovens. Decorrem, daí, dois outros problemas: os que saem, geralmente encontram-se em idade produtiva, mas com habilidades para o trabalho rural, e com potenciais limitados para atividades urbanas; os que ficam nas pequenas localidades, normalmente crianças e idosos, são, exatamente, aqueles que mais necessitam da atuação do Estado, principalmente em termos de educação e saúde.

Esses mesmos problemas tornam-se, portanto, recorrentes. Quem sai, leva consigo potenciais que, na maioria das vezes, se perdem com a migração. Além disso, esses migrantes, outrora produtores de alimentos, passam a demandar a produção de outrem, agora nas cidades. Diminuem, assim, a oferta destes produtos, e aumentam a demanda, com os conhecidos impactos em termos de quantidade e preço. O desemprego aumentado nas cidades, segundo as regras do mercado, pressiona pela diminuição dos salários de que quem já se encontra ocupado, pela maior mobilidade do emprego menos qualificado. Tudo isso contribui para o recrudescimento da fome e da exclusão social. Essa mesma exclusão tende a gerar a violência, numa verdadeira guerra civil não declarada, em especial nas grandes cidades, para onde se dirigiu, em sua maior parcela, a população migrante. Neste sentido, tais problemas, além de recorrentes, são cumulativos.

As teses mais pessimistas dão conta de que, mais dia, menos dia, a população rural, pelo menos nos moldes adotados pelo IBGE, está fadada ao desaparecimento. Os defensores desta mesma tese justificam-na com a constatação de que, hoje, o rural já é, para muitos, sinônimo de atraso, assim como as cidades significam o futuro, o moderno. Para eles, se inevitável a confirmação desta tese, o novo paradigma teria que ser, ainda, outro.

É evidente que não confesso essa tese, embora a idéia me preocupe. É por isso que o desenvolvimento local é, na minha visão, o grande potencial para a resolução dos grandes problemas nacionais, nos dias de hoje. Produção de alimentos, emprego e segurança social podem ser alcançados na medida em que se reforcem, exatamente, aquelas habilidades, que hoje se perdem com o inchaço das grandes cidades. Os distritos, longe de serem problemas, como na tese “urbanista”, podem ser considerados grandes potenciais, à medida que, mantendo o trabalho rural, as populações se concentram em pequenos espaços territoriais, dando margem a uma maior capilaridade dos serviços de educação e saúde, por exemplo.

É por tudo isso que, na política nacional, há que se promover, também, mais uma reversão: ao invés dos prefeitos e representantes locais terem que se dirigir, constantemente, ao Governo Federal, na tentativa, quase súplica, de solucionar os problemas do município, ou da microrregião, é o Governo Federal que tem que se direcionar para os municípios, na busca dos potenciais locais, para a resolução dos grandes problemas nacionais.

Como são os homens os grandes criadores de “factóides”, no intuito de extrair vantagens, não importando se eles geram a exclusão e a injustiça social, cabe a eles, e somente a eles, a remissão dos pecados e a ressurreição do Estado.

Era o que eu tinha a dizer.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 27/08/2003 - Página 25082