Discurso durante a 114ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Necessidade de cumprimento da norma jurídica que dispõe sobre a gratuidade do casamento civil.

Autor
Geraldo Mesquita Júnior (PSB - Partido Socialista Brasileiro/AC)
Nome completo: Geraldo Gurgel de Mesquita Júnior
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • Necessidade de cumprimento da norma jurídica que dispõe sobre a gratuidade do casamento civil.
Publicação
Publicação no DSF de 06/09/2003 - Página 26319
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • CONGRATULAÇÕES, HABITANTE, REGIÃO AMAZONICA, DIA NACIONAL, FLORESTA AMAZONICA.
  • COMENTARIO, HISTORIA, DESRESPEITO, CARTORIO, NORMAS, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, GARANTIA, GRATUIDADE, CERTIDÃO, POPULAÇÃO CARENTE, DIFICULDADE, EXERCICIO, CIDADANIA.
  • JUSTIFICAÇÃO, PROPOSTA, EMENDA CONSTITUCIONAL, AUTORIA, ORADOR, DISPOSIÇÃO, SERVIÇO, REGISTRO PUBLICO, GARANTIA, GRATUIDADE, CERTIDÃO, CASAMENTO CIVIL, POPULAÇÃO CARENTE.

O SR. GERALDO MESQUITA JÚNIOR (Bloco/PSB - AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, antes de me referir ao assunto que me traz à tribuna, quero lembrar algo que foi dito pelo Senador Mozarildo na abertura desta sessão, quanto ao Dia da Amazônia.

Segundo o Senador Mozarildo, que, atentamente, leu todos os jornais de grande circulação deste País antes de vir para cá, nenhuma referência há acerca de data tão importante, a não ser aquela que revela o interesse e a preocupação do Presidente Bush na Amazônia. Como cidadão do Acre e da Amazônia, eu traduzo os sentimentos de toda aquela população quando digo que tal fato não nos causa espécie, não nos desanima. Pelo contrário. Nós, que somos vítimas, secularmente, de tanta discriminação e preconceito, em uma data como esta, mesmo que não seja objeto de cobertura pela imprensa, nós nos animamos mesmo, viramos “bicho”, na Amazônia - bicho no bom sentido -, nos entusiasmamos mais ainda para quebrar tanta resistência, para modificar aquela situação que castiga milhões de pessoas que vivem na região. Junto-me aos meus conterrâneos, homens e mulheres da Amazônia, para festejarmos esta grande data para nós e para todo o País.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, quero aqui também tratar de um outro assunto, inclusive entendo oportuna a presença do Senador Pedro Simon, que muito tem a ver com o que vou dizer, tendo em vista o esforço de S. Exª no trato de questão tão importante.

Há mais de cem anos, desde a Proclamação da República, todas as Constituições brasileiras prescreveram a gratuidade do casamento civil. Apesar disso, os casamentos no Brasil nunca foram celebrados de graça. Os que não podiam pagar permaneciam, segundo a linguagem preconceituosa da burguesia, “amigados”, “amasiados”, “amancebados” ou “juntados”. Ou, como sentenciava o jargão bacharelesco das leis, viviam em “concubinato”. Por isso, mais do que nunca tem cabimento perguntar: se as Constituições não são cumpridas, para que servem?

Como no caso dos casamentos “gratuitos”, grande parte de suas promessas nunca passaram de simples ostentação. Serviam apenas para mostrar como o País, na letra fria das leis, era “democrático”, a despeito da crueza de nossa realidade. Benefícios como habitação, educação, saúde, trabalho remunerado e direitos - fossem eles políticos, individuais ou sociais e econômicos - continuaram, como sempre, privilégios das minorias que por eles podiam pagar.

Quando a sociedade brasileira, depois de mais de três séculos de vigência das Ordenações Filipinas, velhas, de 1603, baixadas pelo Rei Felipe III de Espanha, sob cujo domínio estava Portugal, finalmente ganhou seu primeiro Código Civil, em 1916, o exercício dos direitos civis ficou ainda mais distante e difícil. Sobretudo para os pobres. Analfabetos ou não, continuaram constituindo suas famílias à margem da lei, “juntando-se” ou “amancebando-se”, trabalhando, sustentando suas famílias e pagando tributos como qualquer cidadão, mesmo sendo privados de votar. Tudo ficou mais complicado. Dos tempos coloniais, herdamos essa instituição odiosa, que todos conhecem como cartório, sinônimo de atraso e de burocracia. Ali, os que podiam pagar registravam os filhos, celebravam seus casamentos, passavam procurações, compravam e vendiam suas propriedades através de escrituras públicas, que, depois, tinham que ser registradas em outros cartórios para que tivessem validade. Reconhecer atestados, obter públicas formas, certificar o óbito, tudo tinha que ser feito em cartório. Milhões e milhões de brasileiros, ao longo desses mais de cem anos, nasceram, casaram, tiveram filhos, os viram morrer e eles próprios foram enterrados, sem que nunca tivessem entrado em um cartório, simplesmente porque não podiam pagar.

Cartórios havia, como ainda hoje, para quase todas as coisas. De notas, de protesto, de registro de tudo: nascimento, casamento, óbito e imóveis. Tudo era - como é hoje - certificado. E pago a peso de ouro. Apenas para que os papéis tivessem “fé pública”. Uma fé que é a presunção de validade que têm todos os documentos públicos. Tudo era público, da fé que o Estado delegava aos escritos e à assinatura dos tabeliães e seus escreventes, juramentados ou não, aos registros que os cartórios certificavam, sem os quais não existíamos. Só os cartórios - como ainda hoje - eram privados. Tornamo-nos, como a maioria dos países latinos, herdeiros da tradição romana, legatários de suas boas e más instituições. Cartórios, ofícios, tabeliães, escreventes e a própria linguagem cartorária eram algumas delas. Mais as más, como essas, do que as boas.

Depois de muitas Constituições, a de 1988 repetiu todas as outras, e em pouco mais inovou. Prometeu, aos que fossem “reconhecidamente pobres, na forma da lei”, como se lê em seu art. 5º, inciso LXXVI - os algarismos também herdados da civilização romana -, a gratuidade não só do casamento, que continua lá no art. 226, §1º, como também “o registro civil de nascimento” e a “certidão de óbito”. Finalmente, os brasileiros, “reconhecidamente pobres, na forma da lei”, poderiam registrar seus filhos, casar e deixar a seus descendentes a certidão em que constaria como, onde, de que, a que horas e onde morreram. Tudo gratuitamente.

Mas ser pobre, e como tal reconhecido “na forma da lei”, impunha ter que ir à delegacia de Polícia, aguardar ser atendido, não poucas vezes destratado, talvez voltar no dia seguinte e pedir o passaporte para ter acesso ao cartório, ou seja, “atestado de pobreza”. Se conseguisse, podia ir ao cartório e, muito provavelmente, ser-lhe-ia exigido, como milhares de vezes ocorreu, reconhecer a firma do delegado. O remédio era pagar e, só então, habilitar-se a casar. Gratuitamente, supunha-se, como mandavam todas as Constituições. Mas isso nunca aconteceu. Nem antes, nem depois da última das Constituições, a mais liberal de todas. Por sinal, apelidada de “cidadã”, porque nela estariam, como parecem estar, todos os direitos da cidadania, evidência de nossa democracia.

Só assim, Sr. Presidente, esse cidadão, “reconhecidamente pobre na forma da lei”, travaria conhecimento com uma invencível e odiosa instituição: a chicana jurídica. Ao mesmo tempo, seria apresentado a outra insuperável invenção nacional, leis que “não pegam”. De acordo com os mais elementares manuais da chicana, saberia que não o casamento, mas a sua celebração, esta sim, era gratuita. O que não é gratuito, ser-lhe-ia explicado, é a habilitação, com seus proclamas, certidões e atestados de residência de qualquer dos nubentes. Esta teria que ser paga. Como sempre, bem paga. Depois, viria a celebração, essa sim, gratuita, como mandam as leis. Mas se paga, é claro, a faina do juiz que, mesmo “de paz”, não trabalha de graça. Taxas e emolumentos somados, só ficaria faltando a certidão, que esta nossa vetusta Constituição, lamentavelmente, também não declara ser grátis.

Com todos esses passos, fomos construindo, ao longo de mais de um século, assim bem fundamentadas, a teoria e a metodologia do casamento gratuito, uma complexa instituição que, agora se sabe, compõe-se de várias etapas: habilitação, celebração e certificação. Amancebar-se, juntar-se, amasiar-se, amigar-se ou viver em concubinato, como se vê, era bem mais fácil, mais prático e mais barato. À teoria e à metodologia do casamento, só opondo a sociologia do “jeito”, invenção com a qual os brasileiros deserdados de todas as eras aprenderam a viver.

A Constituição de 88 está próxima da maioridade. Se fosse verdadeiramente uma cidadã, como foi proclamada, só por dois dias não poderia votar no ano que vem, pois, em 5 de outubro, completará 16 anos. E as eleições, infelizmente, serão realizadas no dia 3. Nada menos de cinco leis foram votadas pelo Congresso, para fazer valer a gratuidade de tantas Constituições. Os registradores - assim se chamam os donos dos cartórios de registro das “pessoas naturais”, que é como nos chamam - usaram os subterfúgios de sempre. Alegaram, entre muitas outras razões, tratar-se de serviço realizado pela iniciativa privada, mediante delegação do Estado, como reza o art. 236 da atual Constituição. E como nesse reino da livre iniciativa não se trabalha de graça, só pagando, decretaram eles.

O pagamento sempre foi uma queda de braço entre notários, tabeliães e o povo, pelo menos desde 1305, em Portugal. No Brasil, não haveria de ser diferente. E já se sabe quem sempre perdia. A Constituição que lhes assegurou a posse dos cartórios, de cujas rendas vivem, é a mesma que declarou a gratuidade do casamento e das certidões, de nascimento e de óbito. Beneficiaram-se do dispositivo que lhes assegurou a benesse mas, em aberto desafio ao Estado, jamais cumpriram os que lhes impunham o dever de atender, gratuitamente, os brasileiros que, à falta de identificação, não têm acesso aos direitos de cidadãos simplesmente porque não podem pagar.

Somente quando o Estado, sempre tão poderoso com os fracos, cedeu às suas exigências, fazendo com que os usuários dos serviços cartoriais e de registro pagassem as certidões que a Constituição e as leis do País declaram ser gratuitas, passaram a fornecer o que os “reconhecidamente pobres, nos termos da lei”, necessitavam para ter acesso aos serviços que sempre lhes foram negados. Trata-se, sem dúvida, da única gratuidade remunerada, Sr. Presidente, do mundo.

Esta é, em poucas palavras, a história de uma instituição odiosa, da qual o Brasil ainda não conseguiu se livrar. Os cartórios tornaram-se, no Brasil, um Estado dentro do Estado. Impunemente, desafiam a Constituição e as leis, submetendo-as a seus interesses e caprichos, contra os quais reagimos ou continuaremos, como até hoje, sendo impiedosamente explorados. Uma história que vale a pena ser lida.

Nesse sentido, Sr. Presidente, estou oferecendo ao Senado Federal a possibilidade de começar a mudar esse quadro dantesco, que pune e castiga o cidadão brasileiro. Apresentei, recentemente, a Proposta de Emenda Constitucional nº 62, que dá nova redação ao art. 236 da Constituição Federal, dispondo sobre os serviços de registro público e notariais, colocando-os a serviço da sociedade com o resgate de característica, a meu ver, essencial, qual seja, a natureza pública.

Peço a atenção dos meus ilustres Pares e o necessário apoio para a sua aprovação.

Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 06/09/2003 - Página 26319