Discurso durante a 119ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Considerações sobre a política indigenista do Brasil. Referências à sentença judicial que emancipa um índio da tutela da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). (como Líder)

Autor
Mozarildo Cavalcanti (PPS - CIDADANIA/RR)
Nome completo: Francisco Mozarildo de Melo Cavalcanti
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INDIGENISTA.:
  • Considerações sobre a política indigenista do Brasil. Referências à sentença judicial que emancipa um índio da tutela da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). (como Líder)
Aparteantes
Augusto Botelho.
Publicação
Publicação no DSF de 12/09/2003 - Página 26994
Assunto
Outros > POLITICA INDIGENISTA.
Indexação
  • ANALISE, DECISÃO JUDICIAL, JUSTIÇA FEDERAL, EMANCIPAÇÃO, INDIO, ESTADO DE RORAIMA (RR), RECONHECIMENTO, CAPACIDADE, EXERCICIO, CIDADANIA, EXCLUSÃO, REGIME, TUTELA, FUNDAÇÃO NACIONAL DO INDIO (FUNAI), DEFESA, OPÇÃO, COMUNIDADE INDIGENA, INTEGRAÇÃO, SOCIEDADE, PRESERVAÇÃO, DIVERSIDADE, CULTURA, CUMPRIMENTO, CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
  • COMENTARIO, ENTENDIMENTO, JURISTA, SOCIOLOGO, TUTELA, INDIO, POSSIBILIDADE, CARATER PESSOAL, DECISÃO, BUSCA, CAPACIDADE, MATERIA CIVIL.
  • DENUNCIA, MORTE, INDIO, IDOSO, ACIDENTES, HOSPEDAGEM, BRASILIA (DF), DISTRITO FEDERAL (DF), AUSENCIA, RESPONSABILIDADE, SOLICITAÇÃO, ANEXAÇÃO, ARTIGO DE IMPRENSA.

O SR. MOZARILDO CAVALCANTI (PPS - RR. Como Líder. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, um dos temas que, como amazônida, tenho reiteradamente abordado desta tribuna é o problema indígena no País. Ou melhor, da política indigenista do País, se é que existe uma. Mas bem a propósito da posse recente do novo Presidente da Funai, desejo hoje abordar um tema que, dentro da questão indígena, é inédito. Trata-se da emancipação de um indígena por iniciativa própria, saindo, portanto, da tutela da Funai. É um fato muito emblemático, que deveria levar os que se preocupam seriamente com a política indigenista a refletir a respeito. Por que um índio resolve pedir sua emancipação?

Esse índio, até por coincidência e por admiração, é de Roraima, bem como o Juiz Federal que concedeu a emancipação. Na verdade, estamos escrevendo um novo momento nesta questão indigenista, que adotou uma face “talibânica”, fundamentalista, em que meia dúzia de ONGs monopolizaram a questão e passaram a ditar o que é bom ou não para os índios.

Essa recente sentença da Justiça Federal, em meu Estado, determinou a exclusão do líder indígena Alfredo Bernardo Pereira da Silva do regime de tutela da Fundação Nacional do Índio (Funai).

A decisão, considerada inédita, proferida pelo Juiz Federal Helder Girão Barreto, põe termo a uma pendência de seis anos e estabelece singular interpretação das normas constitucionais pertinentes à questão.

De fato, a Lei das Leis reconhece “aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Dispõe sobre o aproveitamento dos recursos hídricos e das riquezas minerais em suas terras inalienáveis e indisponíveis, com autorização do Congresso Nacional, a quem cumpre também referendar a remoção de grupos indígenas, se sofrerem risco ou no interesse da soberania do País.

Consagra, por fim, que “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”.

Ao feito, juntou-se depoimento da Procuradoria-Geral da República no Estado de Roraima, representada pelo Dr. Rômulo Moreira Conrado, segundo o qual “a tutela deve ser estendida somente ao índio e às comunidades indígenas não integradas”.

Segundo o julgador, o índio Alfredo Silva, estudante universitário, é pessoa inteiramente capacitada para o próprio exercício dos atos da vida civil, devendo, em conseqüência, ser excluído do regime de tutela da Funai.

A luta do índio Alfredo, que demorou seis anos, conforme depoimento para o jornal Folha de Boa Vista, do Estado de Roraima, foi “uma forma de protesto contra a política indigenista patrocinada pelo Órgão” - no caso, a Funai -, que, segundo entende, “deveria oferecer condições para que os índios vivessem de forma autônoma, com a completa gestão do seu destino, coisa que não acontece na prática”. No seu entendimento, a quebra desse “paradigma foi de fundamental importância, pois se tratava de uma questão ideológica”.

Quer servir de exemplo para o seu povo, ao qual dirige fundamentalmente a opinião de que “a tutela deve ser uma opção dos indígenas, sendo permitido, para aqueles que não a aceitam, buscar livrar-se dela”.

O seu pedido de quebra da tutela foi incentivado por pesquisa científica que desenvolveu no meio indígena, concluída com a “constatação de que essa tutelação não serve para nada”.

Opina, conseqüentemente, que “essa tutelação na prática não funciona”, pois “os índios são tratados como seres incapazes e a tutela, ao ser instituída, teve o objetivo de integrá-los à comunidade nacional.”

A Constituição Federal, ao estabelecer a interação dos índios à comunidade, quebrou esse paradigma, “reconhecendo a capacidade desses povos” e o direito de serem índios, respeitadas as suas “diferenças e diversidades culturais”.

O tema nos faz regressar às indiscutíveis lições do Professor Dalmo de Abreu Dallari, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), que, reportando-se à Convenção 107, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), lembra que “os silvícolas eram incapazes relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer”, conforme o Código Civil Brasileiro de 1917.

Dessa forma, enquanto a maioria dos brasileiros passava a ter capacidade plena ao completar 21 anos de idade, os índios continuavam “sempre relativamente incapazes”, submetidos, portanto, a regime tutelar estabelecido em leis e regulamentos, que cessaria quando estivessem adaptados à civilização do País.

Com o Estatuto do Índio, aprovado pela Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, fixaram-se regras mais precisas sobre a condição do indígena, os seus direitos e responsabilidades, assim como sobre as obrigações dos órgãos públicos na proteção da pessoa, da cultura e do patrimônio material e espiritual dos índios e de suas comunidades.

No Estatuto, incluíram-se normas específicas sobre os direitos civis e políticos; a tutela e sua eventual abolição, em casos definidos com clareza, por meio de formalidades minuciosas, sobre as condições de trabalho; os direitos sobre as terras e o patrimônio indígena; o direito à educação e à saúde, e sobre a responsabilidade penal dos índios e os crimes contra eles praticados.

Com a Constituição de 1988, reafirmou-se e ampliou-se a competência do Ministério Público da União para a defesa dos direitos dos índios, até então dependentes exclusivamente da Fundação Nacional do Índio, incumbida do exercício da tutela indígena.

Dessa forma, as comunidades indígenas puderam assumir a própria defesa, inclusive na Justiça Federal, a que se deu competência para julgar os casos que envolvam os direitos dos índios.

Em resumo de nossa exposição, respeitáveis intérpretes do Direito e sociólogos entendem que o indígena não tem total condição de abdicar da tutela, sobretudo como meio de defesa pessoal, coletiva, biológica, social e cultural.

Indefeso ante as conseqüências devastadoras da tecnologia - segundo esses entendidos - e das moléstias da civilização, falta-lhe também condições para defender-se dos invasores de suas terras, que praticamente o escraviza.

Portanto, como no caso que ora comentamos, somente a pessoa do índio, sujeito a futuros direitos e deveres, como o homem das cidades, pode partir a decisão de liberar-se da tutela e de assumir a condição de integrado ao que chamam mundo civilizado.

Sr. Presidente, faço esse registro justamente para chamar a atenção do Brasil e desta Casa para a questão do índio. Sempre digo que a política indigenista preocupa-se com a demarcação de terras e não com o cidadão índio, com o ser humano índio.

Quero pedir que faça parte integrante do meu pronunciamento uma reportagem sobre a morte, em julho do ano passado, de um índio em uma dessas pensões que abrigam índios, pagas pela Funai. Essas pensões muitas vezes abrigam índios que vêm para Brasília para tratamento de saúde, mas que muitas vezes também estão manipulados por essas organizações não-governamentais, para fazer falsos protestos ou aparecer diante de determinadas manifestações.

O índio a que me refiro, Sr. Presidente, é o Sr. Francisco Xavante, de 92 anos, que morreu queimado numa pousada na SHIGS 703. Até agora não vi em nenhum lugar qualquer tipo de responsabilidade assumida nesse caso.

Devemos também relembrar que, há algum tempo, um índio, também naquelas imediações, dormindo num banco de uma praça próxima a essas pensões, foi queimado vivo. Por que ele estava dormindo naquele banco? Porque veio a Brasília trazido por vários motivos, talvez para defender os interesses das suas comunidades, e não pôde entrar na pensão depois de certa hora, portanto, precisou dormir naquele banco e acabou vítima de uma insensatez.

Precisamos olhar para o índio como ser humano. O exemplo do índio Alfredo, de Roraima, que se liberta da tutela da Funai, é realmente um grito de alerta, um gesto emblemático, para que olhemos com seriedade a política indígena, o homem índio.

Ouço, para finalizar, o Senador Augusto Botelho.

O Sr. Augusto Botelho (PDT - RR) - Senador Mozarildo Cavalcanti, quero apenas me solidarizar com V. Exª. Concordo que o Alfredo merece todo nosso louvor e apoio. Foi uma luta de seis anos, com muitos vai-e-vem, mas finalmente ele conseguiu e vai provar que é independente, pois está trabalhando com suas comunidades. Ele continua vivendo em sua aldeia, estudando, desenvolvendo trabalhos para que os indígenas sejam auto-suficientes, donos da sua comida e do seu nariz, em termos comuns da minha região, porque eles não querem mais viver sob a tutela da Funai. Como V. Exª frisou bem, as ONGs apropriam-se da vontade, do ser e do espírito do índio e querem decidir tudo por eles. Antes, eles não tinham voz; agora, neste Governo, todas as aldeias do meu Estado, principalmente da região Raposa Serra do Sol, foram ouvidas pelo Ministro Márcio Thomaz Bastos. Tenho certeza de que, como foram ouvidas, também poderão caminhar para sua independência para se integrar no mercado produtivo do meu País, produzindo grãos e alimentos, o que eles sabem fazer muito bem. Todos nossos índios da região de Raposa Serra do Sol são tradicionais criadores de gado e conhecem o ofício, só não têm recursos para ampliar seu rebanho. Nosso trabalho, o meu e o do Senador Mozarildo Cavalcanti, com certeza, será no sentido de ajudá-los na sua independência. Muito obrigado.

O SR. MOZARILDO CAVALCANTI (PPS - RR) - Agradeço o aparte de V. Exª.

Encerro, até mandando um recado ao novo Presidente da Funai, que disse que pretende dar autonomia econômica às comunidades indígenas: que S. Exª faça isso e que faça também aquilo que o Ministro da Justiça recomendou - renovar e reconstruir a Funai, fazendo uma nova política indigenista voltada exatamente para o ser humano índio.

 

************************************************************************************************

DOCUMENTO A QUE SE REFERE O SR. SENADOR MOZARILDO CAVALCANTI EM SEU PRONUNCIAMENTO.

(Inserido nos termos do art. 210 do Regimento Interno.)

************************************************************************************************


Este texto não substitui o publicado no DSF de 12/09/2003 - Página 26994