Discurso durante a 154ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

A questão da igualdade no federalismo brasileiro.

Autor
Marco Maciel (PFL - Partido da Frente Liberal/PE)
Nome completo: Marco Antônio de Oliveira Maciel
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
ESTADO DEMOCRATICO.:
  • A questão da igualdade no federalismo brasileiro.
Aparteantes
Sergio Guerra.
Publicação
Publicação no DSF de 04/11/2003 - Página 34787
Assunto
Outros > ESTADO DEMOCRATICO.
Indexação
  • ANALISE, MODELO, ORGANIZAÇÃO, ESTADO, DESEQUILIBRIO, FEDERAÇÃO, MANUTENÇÃO, DESIGUALDADE REGIONAL, DESIGUALDADE SOCIAL.
  • IMPORTANCIA, IMPLEMENTAÇÃO, POLITICA, LONGO PRAZO, CARATER PERMANENTE, BUSCA, IGUALDADE, DISTRIBUIÇÃO, RECURSOS, BENEFICIO, GARANTIA, JUSTIÇA SOCIAL, PAIS.

O SR. MARCO MACIEL (PFL - PE. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, ocupo-me hoje daquele que considero um dos maiores, se não o maior, de todos os desafios da democracia que mais diretamente tem a ver com a organização federativa - o problema da igualdade. Trata-se, como se sabe, de um princípio que, a partir do Iluminismo, do Liberalismo e da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, se incorporou aos desígnios da moderna concepção de organização dos Estados democráticos, tornando-se quase um dogma, se assim posso dizer, da filosofia e teorias políticas contemporâneas.

Esse é um dos preceitos sob os quais se fundaram não só a nação norte-americana, mas a federação que dela resultou, inscrito na Declaração de Independência, de que todos são criados iguais e, portanto, devem ter os mesmos direitos e deveres. Cito os Estados Unidos da América por saber que suas instituições ajudaram a moldar a nossa organização estatal, como se pode constatar compulsando a Constituição brasileira de 1891, a primeira após a Proclamação da República, que institucionalizou não só a República, a Federação, o Presidencialismo, etc.

Sr. Presidente, não vou deter-me - esse não é meu propósito - na igualdade que temos em contraposição com aquela que aspiramos. Entre outras razões, porque, ainda hoje, existe uma enorme distância entre as liberdades que desejamos e aquelas de que desfrutamos. Quero referir-me à essencial entre a igualdade perante a lei e à igualdade na distribuição de recursos e benefícios.

A primeira diz respeito a um limitado conjunto de procedimentos governamentais, como, por exemplo, o direito do voto. A segunda abarca todos os interesses que não se cingem ao âmbito político, dizendo respeito à esfera econômica e social para se obter a igualdade de oportunidades entre todos os grupos sociais. É esse conjunto de políticas sociais, dependente sobretudo do progresso econômico, que mais de perto interessa à organização federativa.

A desigualdade de meios e recursos no que respeita à busca de igualdade numa democracia não se cinge à desigualdade entre pessoas, em razão das oportunidades de acesso a benefícios como a educação, a saúde, a moradia e os transportes. Envolve, também, outra variável de igual relevância. É aquela resultante da indagação cada vez mais importante: - terão todos os cidadãos das diferentes regiões possibilidades de acesso a iguais recursos e benefícios? Estou aludindo, por conseguinte, às diferenças pessoais e às diferenças regionais ou geográficas. Em outras palavras: numa democracia, ou mais apropriadamente numa poliarquia, para citar Dahl, é justo que uns tenham acesso a benefícios que, em razão da diferença de renda ou condições sociais, sejam negadas aos de outros estados ou regiões incapazes de concedê-los?

Isso, na minha opinião, tem a ver com o problema da igualdade de tratamento para desiguais condições sociais e econômicas, entre as distintas regiões de um mesmo país. No modelo de Federação que adotamos com a Constituição de 1891, a União não só não interferia, como estava impedida de fazê-lo, em relação à distribuição de recursos, a não ser no caso excepcional de calamidade pública, ainda assim mediante pedido dos Estados afetados. Entendia-se o princípio, em razão de rígida e completa separação de competências tributárias entre a União e os Estados. Tanto que o primeiro sinal de interferência da União em matéria de políticas públicas regionais se restringiu à criação da antiga Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, posteriormente transformada em Departamento Nacional de Obras Contra as Secas - Dnocs.

O problema, como se viu na República Velha (1891-1930), é que iguais tributos, arrecadados em diferentes graus da atividade e desenvolvimento econômico, terminam gerando mais discriminação que igualdade, mostrando em nosso caso o agravamento das desigualdades regionais que, por sua vez, se refletiram nas desigualdades pessoais. Outra das conseqüências foi o problema das migrações. Elas não se observam apenas no sentido tradicional, do meio rural para o urbano, em razão da oferta de serviços, mais atuantes e presentes nas cidades, onde o adensamento populacional torna imperativa essa distribuição desigual internamente, mas também entre as regiões de menor para os de maior desenvolvimento.

Restrinjo-me a citar o caso do Nordeste, que perdeu peso e densidade demográfica em favor de outras regiões do País. Em meados dos anos 50, passou a contar com pouco mais de um quarto de todo o contingente populacional. Tornamo-nos não só um país de duas velocidades de crescimento, mas também de duas esferas distintas de oportunidades econômicas e sociais.

Esse problema se atenuou quando passamos do paradigma do federalismo dualístico de República Velha, para o federalismo compartilhado em matéria de discriminação de rendas. A primeira iniciativa de significação se deu com a Constituição de 1946, ao repartir receitas de tributos federais com os Estados e Municípios, e os Estaduais também com os Municípios. E a segunda foi a prescrição, nas Disposições Constitucionais Transitórias do art. 30, determinando a obrigação do Governo Federal de traçar e executar, durante 20 anos, a contar da promulgação do novo Texto Constitucional, um plano de aproveitamento total das possibilidades econômicas do Rio São Francisco e seus afluentes, na qual deveria aplicar, anualmente, quantia não inferior a um por cento de suas rendas tributárias.

Paulatina e progressivamente, essa interferência de União foi se ampliando, na medida em que as alarmantes distâncias do desempenho social e econômico foram, não só se tornando evidentes, mas também se agravando. E não me furto de aludir ao papel crucial e definitivo que na conscientização do País teve, a esse respeito, a literatura regional de tão forte impacto em toda a Nação. Só não invoco algumas das grandes expressões intelectuais por esse extraordinário panorama de realidades que revelaram esse Brasil conhecido de poucos, para não incidir no pecado da omissão. Mas não posso deixar de aludir ao fato de que a preocupação em corrigir as desigualdades regionais que foi se ampliando do Nordeste para o Norte, com a criação da Sudene, da Spevea, mais tarde SUDAM, e mais adiante com a instituição da Sudeco e da Sudesul. Nesse rol de providências, devem ser listados os bancos de atuação regional, como o Banco do Nordeste e pouco depois, a transformação do antigo Banco de Crédito da Borracha em Banco da Amazônia.

Nossas desigualdades regionais influenciaram diretamente as desigualdades pessoais de renda, emprego, oportunidades de trabalho, educação, saúde, habitação, saneamento e transportes, podendo ser comprovadas pela concentração de baixos índices de desenvolvimento humano e social das regiões Norte e Nordeste, já que os referentes à região Centro-Oeste foram sensivelmente abrandadas pela construção e inauguração de Brasília, e a concentração de investimentos no Brasil Central.

A questão da igualdade, porém, não diz respeito apenas às diferenças regionais e pessoais de renda e acesso aos benefícios sociais. Relaciona-se, também, com as diferentes formas de fragilidade de inúmeros grupos sociais, em uma Nação de enorme diversidade cultural, étnica, social e econômica, como o Brasil. Estou me referindo aos grupos étnicos como os negros e os índios, responsáveis por aportes essenciais ao nosso processo civilizatório, postos à margem dos benefícios políticos, em razão de discriminação cultural que durante mais de 100 anos os privou do direito de voto. Uma situação agravada no caso dos analfabetos, pela circunstância de terem acesso a essa prerrogativa essencial no processo político durante todo o Império, negado a partir da República e só restaurado em 1986 (EC nº 25/1985).

A esse respeito, não podemos esquecer toda as demais formas de tratamento discriminatório, ou de negação de benefício e normas de proteção do Estado, relativos a distinções que ainda persistem com as diferenças de salário entre homens e mulheres exercendo trabalhos iguais. A questão da inserção no mercado do trabalho de minorias como os deficientes, cujas políticas de tutela e promoção só agora começaram a ser timidamente executadas. Tudo isso se reflete no grande fosso que nos torna um dos países mais injustos e mais desiguais nessa matéria em todo o mundo.

É claro que a consciência dessas fragilidades não se deve só à questão do federalismo. Mas tem tudo a ver com as políticas públicas de tratamento simétrico, entre regiões tão assimétricas como são os nossos Estados. Desse tema, já tive a ocasião de aludir nesta tribuna, por ser exatamente, na minha opinião, o de mais difícil superação.

Num estado unitário, em que a totalidade das competências do Estado e do governo se concentra em princípio no Poder Central, ao qual cabe delegar algumas delas às regiões, em razão do equilíbrio entre necessidade e possibilidade de cumpri-las, as políticas sociais se executam forçosamente a partir de decisões desse poder politicamente unificado e administrativamente delegado. Numa federação, essas decisões cabem, tanto no âmbito político, como na esfera administrativa às suas diferentes unidades, autônomas em ambos os sentidos. Esse paradigma é possível nos Estados de pequena expressão territorial, de pouca densidade étnica e cultural, equilibrados economicamente, ou seja federações simétricas. Nas federações assimétricas, como o Brasil, os Estados Unidos, a Índia e a Rússia, são necessárias políticas compensatórias, como forma mais democrática de reduzir as desigualdades, as assimetrias.

Por isso, o paradigma federativo mudou no Brasil, a partir da decisão constitucional de 1946. E mudou também nos Estados Unidos, não em função de alterações constitucionais, mas por um imperativo econômico, a crise de 1929, e através da adoção de políticas públicas incrementadas pelo Governo da União com providências como a instituição de políticas sociais de emergência e os maciços investimentos públicos previstos no “New Deal” do Presidente Franklin Delano Roosevelt. A própria lei de 1972 sobre Imposto de Renda, é outra dessas mudanças exemplares. Nessa direção, os programas federais decorrentes do movimento de integração racial, merecem ser citados como resultado desse abrandamento do federalismo original dos Estados Unidos da América do Norte.

Enquanto não implementarmos políticas de longo prazo e de caráter permanente para atenuar as grandes distâncias sociais e econômicas,vamos continuar sendo uma Federação desequilibrada, em que a disputa por recursos escassos e sempre insuficientes para mudar essas condições na velocidade desejada, será fatalmente predatória. Impor vinculações de aplicações mínimas de receitas públicas a Estados e Municípios, pode ser uma tentativa, mas, acho que dificilmente será uma solução. Hoje, podemos dizer que atendemos a constatação biológica de que todos os homens nascem iguais mas, lamentavelmente, nem todos têm as mesmas oportunidades. E dar a todos a igualdade de oportunidades é o princípio básico, vital, sem o qual não existe democracia.

Não quero deter-me na crítica e no diagnóstico, ou alimentar esperanças com prognósticos que improvavelmente se cumprem. Desejo voltar a desenvolver o tema nesta Casa da Federação, abordando inclusive outros modelos de organização do Estado, de que podemos tirar úteis lições. Pretendo referir-me às tendências do semi-federalismo, com fórmulas que, além de viabilizar a busca de igualdade, atenuando as diferenças regionais que, de um lado, podem acelerar e potencializar a integração continental e, de outro, podem contribuir para o aperfeiçoamento das vocações naturais de cada região do País.

Ouço o aparte do Senador Sérgio Guerra.

O Sr. Sérgio Guerra (PSDB - PE) - Senador Marco Maciel, mais uma vez, V. Exª trata, com a seriedade e a competência que são peculiares ao seu trabalho de político, de um tema que é o foco de sua preocupação. Para colaborar com seu pronunciamento, falarei, rapidamente, sobre a questão regional. Ao longo dos últimos 30 anos, o Brasil tem experimentado algumas políticas de desenvolvimento regional, todas inconclusas. E é bastante evidente que, de algum tempo para cá, essas políticas foram perdendo consistência crescente, até a situação atual de falta de uma política para o desenvolvimento regional. Saudamos as intenções do Presidente da República de, por exemplo, reconstruir a Sudene, imaginando que essa seja uma primeira providência para trabalhar, de forma consistente, a defesa de políticas para o Nordeste, colaborando com o processo de recomposição social do Brasil. Mas as evidências apontam no sentido contrário. A intenção é boa; o fato é nulo. Parabenizo V. Exª pelo seu pronunciamento, em nome, tenho certeza, de todos os pernambucanos que o admiram!

O SR. MARCO MACIEL (PFL - PE) - Senador Sérgio Guerra, antes de mais nada, agradeço as generosas referências a meu respeito e, de modo especial, ao pronunciamento que estou concluindo. Em rapidíssima resposta ao aparte de V. Exª, já que o meu tempo se esgotou, quero dizer que concordo integralmente com V. Exª.

Somos um Estado Federal e, mais do que isso, somos um País caracterizado por uma enorme desigualdade que ainda desafia a nossa organização federativa. A meu ver, essa questão não será resolvida somente com medidas de natureza social e econômica, mas também com medidas no campo institucional. Daí por que reputo importante que essa questão esteja presente no momento em que estivermos discutindo a reforma tributária. Quando se fala, neste Senado, em pacto federativo, ponho-me a pensar se é verdade que isso ocorreu. Creio que não. A República surgiu quase que de uma manifestação de opinião a que o povo assistiu, como disse um famoso escritor, bestificado, sem saber do que se tratava. Portanto, a Federação foi criada por uma emanação legal, não como conseqüência de um pacto, diferentemente, por exemplo, do que aconteceu nos Estados Unidos da América do Norte.

Por fim, precisamos discutir essa questão no momento das chamadas reformas do Estado e ela deve estar inserida no bojo das grandes reformas institucionais que o País precisa realizar, para melhorar o nível de governabilidade e fazer com que sejamos uma Nação menos desigual e, portanto, mais democrática.

Não podemos continuar a praticar um federalismo que, nas condições atuais, pode ser caracterizado como predatório e incapaz de resolver nossas graves e grandes disparidades internas que todos queremos ver superadas.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 04/11/2003 - Página 34787