Discurso durante a Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Reforma do Judiciário.

Autor
Demóstenes Torres (PFL - Partido da Frente Liberal/GO)
Nome completo: Demóstenes Lazaro Xavier Torres
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
REFORMA JUDICIARIA. GOVERNO FEDERAL, ATUAÇÃO.:
  • Reforma do Judiciário.
Publicação
Publicação no DSF de 21/01/2004 - Página 787
Assunto
Outros > REFORMA JUDICIARIA. GOVERNO FEDERAL, ATUAÇÃO.
Indexação
  • INCLUSÃO, DEBATE, REFORMA JUDICIARIA, PAUTA, CONVOCAÇÃO EXTRAORDINARIA, CONGRESSO NACIONAL, COMENTARIO, CRISE, JUDICIARIO, TUTELA, EXECUTIVO, FALTA, APROXIMAÇÃO, SOCIEDADE, SUPERIORIDADE, CUSTO, FAVORECIMENTO, CLASSE SOCIAL, RIQUEZAS, DEMORA, JUSTIÇA, POPULAÇÃO CARENTE, CORRUPÇÃO, MEMBROS.
  • COMENTARIO, PESQUISA, OPINIÃO PUBLICA, NECESSIDADE, REFORMULAÇÃO, JUDICIARIO, OPINIÃO, MAGISTRADO, PROBLEMA, LEGISLAÇÃO PROCESSUAL, EXCESSO, AÇÃO JUDICIAL, ESTADO, EFEITO, DEMORA, JUSTIÇA.
  • DEFESA, CONTROLE EXTERNO, JUDICIARIO, COMBATE, FRAUDE, CORRUPÇÃO, CRIME ORGANIZADO, CONSELHO, MAIORIA, MEMBROS, SOCIEDADE CIVIL, JUSTIFICAÇÃO, PROJETO DE LEI, AUTORIA, ORADOR, PROIBIÇÃO, NEPOTISMO, CONTRATAÇÃO, PODERES CONSTITUCIONAIS.
  • CRITICA, JOSE DIRCEU, MINISTRO DE ESTADO, CHEFE, CASA CIVIL, AUTORITARISMO, COBRANÇA, PROVIDENCIA, CONGRESSO NACIONAL, REPRESSÃO, LIBERDADE DE EXPRESSÃO, IMPRENSA, MINISTERIO PUBLICO.
  • DEFESA, VINCULAÇÃO, SUMULA, TRIBUNAIS SUPERIORES.
  • DEBATE, SITUAÇÃO, SEGURANÇA PUBLICA, UNIFICAÇÃO, POLICIA, FUNÇÃO, CORREGEDORIA, MINISTERIO PUBLICO.
  • CRITICA, MINISTRO DE ESTADO, MINISTERIO DA JUSTIÇA (MJ), AUSENCIA, PROPOSTA, REFORMA JUDICIARIA.

O SR. DEMÓSTENES TORRES (PFL - GO. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, começo meu discurso lendo uma frase de Evandro Lins e Silva: “Aqui, na sua base, que estão todos os problemas da Justiça, contra a qual todos clamam e berram”.

Em O Bicho que Virou Homem, o escritor mineiro naturalizado carioca, Paulo Mendes Campos, faz das vicissitudes da vida real a crônica de um inseto que, “ao acordar num oco de pau uma bela manhã”, viu-se transformado em ser humano. A princípio, sem o devido entendimento do que ocorrera, tentou voar sem sucesso. O bater estabanado das mãos no ar o fez desconfiar de que agora era um homem, estava nu e precisava estabelecer protocolos. Tratou então de cobrir as suas vergonhas. Em seguida, ainda que a posição ereta o incomodasse e especialmente fatigante fosse o peso da cabeça, formulou o primeiro pensamento: “Sou o rei dos animais”. Perturbado pela profusão de idéias, foi premido a buscar “a teoria geral do universo” e a “entender o mundo”. Sentiu saudades dos tempos de inseto, “quando ser devorado pelo sapo fazia parte da lei natural”, mas caminhou conhecendo todas as coisas em “choques alternados de excitação e abatimento”. Ao mal-estar da sua insegurança deu o nome de alma, e sem saber precisá-la abrigou-se na mão de Deus. Também sem saber explicá-lo deu o nome de Deus às coisas, mas ao não conseguir compreender o sentido da coisa-Deus terminou o primeiro dia em completo desamparo. “Uma coisa dentro dele mesmo o separava das outras coisas: era um pobre homem. Um homem só, sob as estrelas”.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, esta Casa foi convocada extraordinariamente para discutir e deliberar sobre temas do maior fundamento para a sociedade brasileira, como a Lei de Falências, as alterações no Código Tributário Nacional, a utilização e proteção do bioma Mata Atlântica, a modificação do novo Código Civil no que se refere ao regime estatutário das associações, a adição ao art. 129 do Código Penal da violência doméstica, a concessão do direito a acompanhante às parturientes atendidas no Sistema Único de Saúde e, por fim, a reforma do Poder Judiciário, tema sobre o qual dedicarei o presente pronunciamento.

A exemplo do pobre homem de Paulo Mendes Campos, o Judiciário no Brasil experimenta uma profunda crise de identidade. Expressa porção de soberania do Estado dentro do princípio da tripartição dos Poderes, mas sofre a tutela do Executivo. Nutre-se da formalidade positivista como forma de preservação da espécie, mas tem consciência de que só a aproximação com a sociedade poderá restituir-lhe a credibilidade. Padece de problemas estruturais, ao mesmo tempo conserva custos de serviços proibitivos. Ao executar sua finalidade, reage em movimentos pasmosos e apressa-se quando se trata de conservar puro o DNA privilegiado. Manteve-se até a década de 90 protegido de vazamentos imorais até que os integrantes do Poder passaram a ser os grandes patrocinadores dos novos escândalos políticos patrimoniais do Brasil.

São problemas que evidenciam a necessidade de reformar a Justiça brasileira, colimando os objetivos de estabelecer mecanismos de controle da atividade administrativa do Poder Judiciário e do Ministério Público, com vista a se criar um marco regulatório dos procedimentos éticos dos integrantes da instituição e do Poder; a adoção da súmula vinculante para as decisões do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores; a valorização do primeiro grau de jurisdição com a eliminação do excesso processualista que corrobora, em muito, com a morosidade e a ineficiência inata do Poder.

Sr. Presidente, a reforma do Judiciário é imprescindível para que o Brasil tenha uma administração eficiente da Justiça e que os jurisdicionados tenham acesso a um serviço de qualidade, célere, capaz de compor os conflitos de interesses do cidadão e assegurar o poder punitivo do Estado. Esta Casa tem a missão de confirmar uma das últimas esperanças da sociedade brasileira que, em sua esmagadora maioria, conforme revelam os mais destacados institutos de pesquisa de opinião, não confia na Justiça brasileira, mas exige o amparo do Poder Judiciário como forma de se completar o que se convencionou chamar de Estado democrático de direito. Tanto que, conforme dados do Instituto Sensus, 70% dos brasileiros declararam-se favoráveis à realização da reforma do Poder Judiciário. Desde o fim do regime militar e, sobretudo, após a promulgação da Constituição de 1988 houve um crescimento extraordinário da demanda por justiça. São 12 milhões de processos por ano, sinal de que a sociedade brasileira começa a exercitar os seus direitos, mas infelizmente, apesar de vultosos gastos com a administração do Judiciário, o Poder permanece incapaz de sair da lentidão e promover o mister de distribuir um serviço pontual e de qualidade.

Os problemas do Judiciário vêm de longa data e remontam uma série de equívocos de conformação do Poder desde o início da história republicana e a oportunidade de realizar a reforma é praticamente consensual entre os operadores do direito. O Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo (Idesp) realizou, no ano passado, uma interessante pesquisa com 741 magistrados de 12 Unidades da Federação, com cobertura na Justiça Estadual, na Justiça Federal e na Justiça do Trabalho, abrangendo desde juízes iniciantes a membros dos tribunais superiores, com a finalidade de captar a visão da magistratura “sobre a intensidade e as causas dos problemas apresentados pelo Judiciário brasileiro, e sobre as possíveis soluções para eles; e saber como os juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores vêem as relações entre o Judiciário e a economia”. Os resultados apontaram um elevado grau de consciência das mazelas do Poder, o que comprova a necessidade de o Senado estar munido desse dever de reformar o Judiciário. De acordo com a pesquisa do Idesp, os magistrados consideram que a morosidade é o principal problema da Justiça brasileira, seguido do alto custo de acesso e da falta de previsibilidade das decisões. Quanto à falta de agilidade, os magistrados entendem que ela decorre de variadas causas, que vão desde a falta de estrutura da Justiça aos defeitos da legislação processual, que permite que lides sejam abertas, na esfera cível, não para perseguir direitos, mas para fugir de obrigações. Ao mesmo tempo, os integrantes da magistratura condenam o próprio Estado como um “mau usuário contumaz do Judiciário”, que, a partir de prazos especiais, manipula o processo judicial em proveito próprio. De acordo com reportagem publicada na revista Veja da semana passada, com o título “À espera de Justiça”, os poderes públicos são responsáveis por 80% das ações que tramitam no País - repito, 80% das ações que tramitam no País - e naturalmente se beneficiam da profusão de recursos, que, segundo dados do Ministério da Justiça, podem chegar a 120 dentro de um mesmo processo, conforme a natureza do processo. Vejam bem: 120 recursos dentro do mesmo processo. Na matéria, Veja destaca inúmeros casos de ações que tramitam há décadas, algumas remontando mais de 60 anos. Na pesquisa do Idesp, os magistrados, com muita razão, fazem crítica severa à mercantilização dos processos judiciais, por intermédio do qual o processo move-se a partir de decisões interlocutórias, com a formalidade substituindo o mérito.

Sr. Presidente, o primeiro tema da reforma é naturalmente o controle externo do Poder Judiciário e do Ministério Público. Não é mais possível que a atividade administrativa e financeira das instituições e o procedimento ético de seus integrantes permaneçam protegidos pela obscuridade. O pedestal que ergue os magistrados à intangibilidade é o mesmo que sustentou vícios que deflagraram fatos ignominiosos de corrupção. Para não recorrer aos casos de falcatrua no Tribunal Regional do Trabalho em São Paulo, à venda de sentença judicial para traficantes em tribunais superiores e à recente rede de rapinagem descoberta pela Operação Anaconda, eu gostaria de lembrar que no Poder Judiciário de Goiás, meu Estado, prosperam, de forma escancarada, manobras espúrias, como a que impediu o Dr. José Lenar de Melo Bandeira de tomar posse na Presidência do Tribunal Regional Eleitoral, porque anunciou que cumpriria decisão do Tribunal de Contas da União, demitindo parentes de juízes de cargos comissionados, a recusa em cumprir a lei e realizar concurso para a administração dos cartórios, além de desmesurada prática de nepotismo.

No ano passado, ingressei com projeto de lei que proíbe a contratação de parentes por consangüinidade, adoção ou afinidade, até o terceiro grau, em todos os âmbitos dos Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo. Tenho muita esperança de que esta Casa aprecie o projeto e dê uma resposta à sociedade, que, definitivamente, não suporta o desenvolvimento desse carcinoma no tecido do Poder encarregado de dizer o Direito.

O controle externo do Judiciário e do Ministério Público será operado pelos respectivos Conselhos Nacionais, cuja margem de atribuições está bem desenhada na PEC 29. Mas, com toda certeza, o enumerado de tarefas será mais um decorativo conjunto de princípios se não houver uma composição com supremacia numérica de membros da sociedade civil e minoritária de representantes do Poder Judiciário e do Ministério Público. Para mim, o ideal é dois membros de cada um, com mandato de dois anos.

Srªs e Srs. Senadores, ao contrário do que imagina o Ministro-Chefe da Casa Civil, José Dirceu, a finalidade do controle externo não é promover a “judicialização” das atividades políticas, com a interferência do órgão controlador na função jurisdicional a mando do Executivo ou de qualquer outro figurão.

Na semana passada, em mais um delírio autoritário, o Dr. Dirceu ordenou que o Congresso Nacional tome providências “sobre a situação extremamente grave” da liberação de informações por parte da imprensa e do Ministério Público. Como muito bem escreveu Dora Kramer anteontem no jornal O Estado de S.Paulo, o conluio de repórter inescrupuloso com promotor em busca do vedetismo produziu leviandades e manchou reputações, mas o pretexto do desvio não justifica as aspirações discricionárias do Dr. Dirceu de estabelecer linhas demarcatórias para a liberdade de expressão. Tenho plena convicção de que esta Casa não aceita ordens de um inquilino mal-educado do Poder, nem vai se prestar a instituir expediente regressivo sob o pretexto de amordaçar o Ministério Público e a imprensa. Quem tem que ser punido é o promotor e o juiz faltosos, não a instituição e o Poder.

Sr. Presidente, o outro ponto fundamental da reforma do Judiciário é a instituição da súmula vinculante para as decisões de todos os tribunais superiores. Ou ainda, se atentar para outras duas possibilidades de operar o mecanismo judicial: por intermédio da súmula impeditiva de recurso ou conferindo efeito erga omnis à decisão das cortes superiores da Justiça. Para se ter noção da balbúrdia do sistema judiciário brasileiro, de acordo com estudos técnicos do Supremo Tribunal Federal, os 160 mil processos que ingressaram na maior corte da Justiça brasileira poderiam ser agrupados em 200 assuntos. O Senado precisa observar a oportunidade e inserir no rol das alterações constitucionais do Poder Judiciário a desconstitucionalização da segurança pública, a unificação das Polícias, com o Ministério Público encarregado de exercer a função corregedora sobre a instituição única a ser criada.

Na esfera infraconstitucional, a reforma do Judiciário deve promover alterações que visam fortalecer o primeiro grau de jurisdição. São medidas como tornar a decisão do processo civil auto-executável, extinguindo-se o processo de execução, e instituir como regra a impossibilidade de recurso das decisões de mérito dos juizados especiais, exceto quando a matéria versar sobre processo ou inconstitucionalidade, o que poderá gerar até recurso extraordinário. É preciso eliminar os recursos sobre divergências dos tribunais e preservar o Supremo Tribunal Federal como uma corte verdadeiramente constitucional, que positivamente não pode continuar arbitrando lides de rusgas entre madames.

A reforma do Poder Judiciário tramita há 12 anos no Congresso Nacional. A proposta aprovada na Câmara dos Deputados precisa ser aperfeiçoada e não vai ser como pretende o Secretário de Reforma do Judiciário, Sérgio Renault, que espera do Senado atitude contemplativa diante da matéria. Desta vez não vamos fazer cara de paisagem.

Sras e Srs. Senadores, o Ministério da Justiça criou a Secretaria de Reforma do Judiciário apenas para arrostar a magistratura. Em um ano de atividade, não tiveram competência para elaborar uma proposta de reforma. Eu, sinceramente, não sei a que veio tal Secretaria. Do mesmo modo, é absolutamente enigmático e nebuloso o juízo do Ministro da Justiça sobre o que reformar. Há algo de plastificado no pensamento institucional do Ministro Márcio Thomaz Bastos. Em artigo publicado no ano passado na Revista do Conselho da Justiça Federal, o Ministro qualificou a PEC 29 como “uma tentativa de desfiguração da Lei Magna” e concluiu, com seu invulgar acacianismo, que “a modernização da administração da Justiça não é assunto nosso, mas do conjunto da sociedade”. Que o Dr. Márcio Thomaz Bastos não entendia nada de segurança pública era sabido e em várias oportunidades pude confirmar que a omissão do Ministério era motivada por incompetência orgânica. Agora, o Ministro da Justiça é considerado um grande jurista e como tal deveria ter disponibilizado os seus conhecimentos à reforma do Poder Judiciário. Pelo que se observou até o momento, o silêncio do Doutor Bastos parece dizer tudo. O Garrincha da advocacia é mesmo um ministro Cafuringa.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 21/01/2004 - Página 787