Discurso durante a 222ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Leitura de trechos do discurso do dramaturgo e escritor inglês Harold Pinter, por ocasião da outorga do Prêmio Nobel de Literatura, na Academia de Ciências da Suécia.

Autor
Eduardo Suplicy (PT - Partido dos Trabalhadores/SP)
Nome completo: Eduardo Matarazzo Suplicy
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. POLITICA INTERNACIONAL.:
  • Leitura de trechos do discurso do dramaturgo e escritor inglês Harold Pinter, por ocasião da outorga do Prêmio Nobel de Literatura, na Academia de Ciências da Suécia.
Publicação
Publicação no DSF de 14/12/2005 - Página 44137
Assunto
Outros > HOMENAGEM. POLITICA INTERNACIONAL.
Indexação
  • SOLIDARIEDADE, ESCRITOR, PAIS ESTRANGEIRO, INGLATERRA, RECEBIMENTO, PREMIO LITERARIO, LEITURA, TRECHO, DISCURSO, ANALISE, POLITICA, CRITICA, GOVERNO ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), PROMOÇÃO, GUERRA, ORIENTE MEDIO.
  • PROTESTO, DECISÃO, GOVERNADOR, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), MANUTENÇÃO, PENA DE MORTE, COMENTARIO, INEFICACIA, PENA, REDUÇÃO, CRIME.
  • SOLICITAÇÃO, TRANSCRIÇÃO, PRONUNCIAMENTO, ESCRITOR, PAIS ESTRANGEIRO, INGLATERRA.

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Senador Mão Santa, Srªs e Srs. Senadores, na última quarta-feira, a Academia de Ciências da Suécia, em Estocolmo, concedeu o Prêmio Nobel de Literatura ao maior dramaturgo inglês vivo, Harold Pinter, que, doente, com câncer, não pôde comparecer pessoalmente à cerimônia, mas enviou um representante.

Na cerimônia em que foi concedido esse prêmio, ele apresentou um discurso notável sobre fatos que devem merecer a atenção da opinião pública mundial, que dizem respeito às tragédias do mundo, que dizem respeito àquilo que ocorre no Iraque, no Oriente Médio, nas Américas e, inclusive, em nosso Brasil.

Há alguns trechos desse brilhante discurso que gostaria de ler, para refletirmos todos a respeito, Sr. Presidente, Senador Mão Santa.

Veja só, Senador Heráclito, o que diz Harold Pinter:

Em 1958, escrevi o seguinte:

“Não existem distinções concretas entre o que é real e o que é irreal, nem entre o que é verdadeiro e o que é falso. Uma coisa não é necessariamente ou verdadeira ou falsa; pode ser verdadeira e falsa a um só tempo.”

Acredito que essa alegação continue a fazer sentido e continue a se aplicar à exploração da realidade por intermédio da arte. Portanto, como escritor eu reafirmo o que disse. Mas não posso fazê-lo como cidadão. Em minha condição de cidadão, me cabe perguntar: O que é verdadeiro? O que é falso?” 

Sobre as coisas que têm ocorrido no Brasil, o que foi, de fato, verdade? O que não foi verdade?

A verdade na dramaturgia é sempre fugaz. Não é possível encontrá-la por inteiro, mas a busca por ela é compulsiva. É a busca que claramente propele a jornada. A busca é a sua tarefa. O mais freqüente é que você tropece na verdade em meio à escuridão, colida com ela ou capte simplesmente um vislumbre de uma imagem ou forma que parecem corresponder à verdade, muitas vezes sem compreender o que tenha feito. Mas a verdade real é que jamais existe algo como uma verdade a ser encontrada na arte dramática. As verdades são muitas. Essas verdades se contestam umas às outras, evadem umas às outras, refletem umas às outras, ignoram umas às outras, provocam umas às outras, não percebem umas às outras. Às vezes, você sente ter em mãos a verdade de um momento, e ela logo escapa por entre os seus dedos e se perde.

Muitas vezes me foi perguntado de que maneira surgem as minhas peças. Não sei dizer. Nem sou capaz de resumi-las, sumarizá-las, exceto dizendo que foi aquilo que aconteceu. É aquilo que elas dizem. Foi aquilo que elas fizeram.

A maior parte das peças é engendrada por uma linha, uma palavra ou uma imagem. A palavra em questão é muitas vezes seguida, pouco depois, pela imagem.

E aí segue Harold Pinter, dando diversos exemplos do que escreveu em muitas das suas peças.

Mais adiante, diz:

É um momento estranho, o momento de criar personagens que até aquele momento não existiam. O que vem a seguir é um procedimento espasmódico, incerto, até mesmo alucinatório, embora ocasionalmente ocorra como uma avalanche incontrolável. A posição do autor é incômoda. Em certo sentido, os personagens não o acolhem com agrado. Os personagens resistem a ele, a convivência nunca é fácil, defini-los é impossível. Mas você enfim descobre que tem em suas mãos pessoas de carne e osso, pessoas dotadas de vontade e de uma sensibilidade pessoal própria, feitas de componentes que é impossível alterar, manipular ou distorcer.

Assim, a linguagem, na arte, continua a ser uma transação altamente ambiciosa, uma areia movediça, um trampolim, uma piscina congelada que pode ceder sob seus pés, os pés do autor, a qualquer instante.

Mas, como eu disse, a busca pela verdade não pode parar. Não se pode postergá-la. Ela precisa ser encarada, naquele exato lugar, naquele exato momento.

O teatro político acarreta um conjunto completamente diferente de problemas. É preciso evitar a qualquer custo um tom de pregação. Objetividade é essencial. É preciso permitir que os personagens respirem um ar que lhe seja próprio. O autor não pode confiná-los e restringi-los a fim de satisfazer seu gosto, disposição ou preconceito. Deve estar preparado para abordá-los de diferentes ângulos, com o conjunto amplo e desinibido de perspectivas, tomá-los de surpresa, talvez, ocasionalmente, mas ainda assim dar-lhes a liberdade de seguir o caminho que preferirem. Isso nem sempre funciona. E a sátira política, evidentemente, não adere a qualquer desses preceitos, e na verdade age de maneira completamente oposta, o que está implícito em sua função.

E aí ele dá exemplo daquilo que ocorre em suas peças:

“Ashes to ashes” [do pó ao pó], por outro lado, me parece transcorrer sob a água. Uma mulher que está se afogando, a mão que se ergue por sobre as ondas e volta a desaparecer, tentando encontrar outras pessoas mas sem achar ninguém ali, quer acima, quer abaixo da água. Existem apenas sombras, reflexos, flutuando. A mulher é uma figura perdida em uma paisagem afogada, uma mulher incapaz de escapar ao destino trágico que parecia caber apenas a outros.

Mas, da mesma forma que eles morreram, ela deve morrer.

A linguagem política, tal qual usada pelos políticos, não se aventura por qualquer parte desse território, já que a maioria dos políticos, pelos indícios de que dispomos, não estão interessados na verdade, e sim no poder, e na manutenção desse poder. Para manter o poder é essencial que as pessoas sejam mantidas na ignorância, que vivam ignorando a verdade, até mesmo a verdade de suas vidas. O que nos cerca, portanto, é uma vasta tapeçaria de mentiras, das quais nos alimentamos.

Como sabem todas as pessoas aqui presentes [ele se referia à Academia de Estocolmo, que lhe concedia o Prêmio Nobel], a justificativa para invasão do Iraque era o fato de que Saddam Russein possuía um perigoso arsenal de armas de destruição em massa, algumas das quais podiam ser disparadas em prazo de apenas 45 minutos, e seriam capazes de causar chocante devastação. Garantiram-nos que isso era verdade. Não era verdade. Fomos informados de que o Iraque tinha um relacionamento com a rede Al Qaeda e era co-responsável pela atrocidade de 11 de setembro de 2001 em Nova York. Garantiram-nos que isso era verdade. Não era verdade. Fomos informados de que o Iraque representava uma ameaça para a segurança do mundo. Garantiram-nos que isso era verdade. Não era verdade.

A verdade é algo de inteiramente diferente. A verdade se relaciona à maneira pela qual os Estados Unidos compreendem seu papel no mundo, e escolhem personificá-lo.

E prossegue Harold Pinter, em sua manifestação e indignação. Em certo momento, ele diz:

O que aconteceu à nossa sensibilidade moral? Será que um dia ela existiu? O que quer dizer essa expressão? Refere-se a um termo raramente empregado nos nossos dias, a consciência? Uma consciência que se relaciona não apenas aos nossos atos mas à responsabilidade de que compartilhamos pelos atos alheios? Será que isso tudo morreu?

Ele faz uma condenação severa a respeito da invasão do Iraque:

A invasão do Iraque foi um ato de banditismo, um ato de gritante terrorismo de Estado, e demonstrou completo desprezo pelo conceito de lei internacional. A invasão foi uma ação militar arbitrária inspirada por uma série de mentiras e mais mentiras, por absurda manipulação da mídia, e portanto do público; um ato cujo objetivo é consolidar o controle econômico e militar norte-americano sobre o Oriente Médio, disfarçado de ação de último recurso, já que todas as demais justificativas não conseguiram defender a idéia de que se trataria de um ato de libertação. Uma formidável afirmação de poderio militar, responsável pela morte e mutilação de milhares e mais milhares de pessoas inocentes.

Nós levamos tortura, munição fragmentável, projéteis de urânio, inumeráveis atos de homicídio aleatório [aqui Harold Pinter, o maior dramaturno inglês, está falando como cidadão do Reino Unido], miséria, degradação e morte ao povo iraquiano, e a isso chamamos “levar liberdade e democracia ao Oriente Médio”.

Harold Pinter, a certa altura do seu pronunciamento, resolve falar de Pablo Neruda, numa notável poesia a respeito daquilo que ocorrera durante a guerra civil espanhola. E, no final, menciona o seu poema chamado “Morte”.

Onde o corpo foi encontrado?

Quem encontrou o corpo?

O corpo estava morto quando encontrado?

Como o corpo foi encontrado?

Quem era o corpo?

Quem era o pai ou filha ou irmão

Ou tio ou irmã ou mãe ou filho

Do corpo morto e abandonado?

O corpo estava morto quando abandonado?

O corpo foi abandonado?

Por quem ele foi abandonado?

O corpo estava nu ou vestido para uma viagem?

O que faz com que o corpo seja declarado morto?

O corpo morto foi declarado morto?

Como você sabia que o corpo estava morto?

Você lavou o corpo

Fechou-lhe ambos os olhos

Enterrou o corpo

Deixou-o ao abandono

Você beijou o corpo

Quando nos olhamos no espelho acreditamos que a imagem que vemos seja acurada. Mas basta um movimento de um milímetro e a imagem muda. Na verdade, estamos olhando uma gama infinita de reflexos. Mas às vezes o escritor precisa quebrar o espelho porque é do outro lado do espelho que a verdade nos encara.

Acredito que a despeito das enormes dificuldades que existem, cabe-nos, como cidadãos, com ferrenha, inamovível e feroz determinação intelectual, definir a verdade real de nossas vidas e nossas sociedades. Trata-se de uma obrigação crucial para todos nós. É de fato compulsória.

Se essa determinação não for incorporada por nossa visão política, não teremos esperança de restaurar aquilo que está quase perdido para nós: a dignidade do homem.

Sr. Presidente, junto, aqui, a minha voz à de todos aqueles que protestaram, nesses últimos dias, contra a aplicação da pena de morte lá na Califórnia. Infelizmente, o governador, tão famoso por seus filmes, resolveu não conceder a clemência. Infelizmente, a Suprema Corte dos Estados Unidos também não a concedeu.

Lamento, Sr. Presidente, que, lá nos Estados Unidos da América, ainda se aplique a pena de morte, em que pese a todas as lições e os levantamentos estatísticos, segundo os quais a pena de morte não constitui um meio eficaz para se diminuir a criminalidade, os roubos, os assassinatos, enfim, aquilo que a Anistia Internacional tem mostrado.

Minha solidariedade maior ao escritor Harold Pinter.

Solicito, Sr. Presidente, seja transcrito, na íntegra, o teor desse belo pronunciamento.

Obrigado.

 

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DOCUMENTO A QUE SE REFERE O SR. SENADOR EDUARDO SUPLICY EM SEU PRONUNCIAMENTO.

(Inserido nos termos do art. 210, inciso I e § 2º,do Regimento Interno.)

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Matéria referida:

“Prêmio Nobel Harold Pinter faz críticas a Bush e Blair em vídeo. (Folha Online)”.

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 14/12/2005 - Página 44137