Discurso durante a 103ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

A constatação da degradação dos valores morais na sociedade brasileira.

Autor
Roberto Saturnino (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Roberto Saturnino Braga
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • A constatação da degradação dos valores morais na sociedade brasileira.
Aparteantes
Ramez Tebet.
Publicação
Publicação no DSF de 06/07/2006 - Página 22846
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • CRITICA, VINCULAÇÃO, CRISE, CORRUPÇÃO, POLITICA NACIONAL, PESQUISA, DESVALORIZAÇÃO, ETICA, POPULAÇÃO, ANALISE, REPRESENTAÇÃO POLITICA, SOCIEDADE, PERDA, INFLUENCIA, RELIGIÃO, PATRIOTISMO, AUSENCIA, ESTABILIDADE, FAMILIA, EFEITO, DEPRECIAÇÃO, MORAL.
  • ANALISE, CARACTERISTICA, CAPITALISMO, CONCORRENCIA, SUBSTITUIÇÃO, SOLIDARIEDADE, COOPERAÇÃO, DESVALORIZAÇÃO, JUSTIÇA SOCIAL, INFLUENCIA, IMPRENSA, TELECOMUNICAÇÃO, DIVULGAÇÃO, MODELO, ESPECIFICAÇÃO, SITUAÇÃO, BRASIL, CARENCIA, EDUCAÇÃO, APOIO, PROJETO DE LEI, CRIAÇÃO, DISCIPLINA ESCOLAR, DESENVOLVIMENTO, CIDADANIA, DEFESA, ESTUDO, FILOSOFIA.
  • IMPORTANCIA, RETORNO, PARADIGMA, COOPERAÇÃO, PLANEJAMENTO, AMBITO, GOVERNO FEDERAL.

O SR. ROBERTO SATURNINO (Bloco/PT - RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, ontem escutei discursos, do Senador Pedro Simon, do Senador Jefferson Péres, demonstrando a preocupação com uma matéria publicada numa dessas revistas de fim de semana, contendo uma entrevista com alguém responsável por pesquisas que a emissora Globo faz para orientar as suas novelas e dando conta de uma degradação muito clara e muito profunda de valores éticos e de valores morais no seio da sociedade, que respondia àquelas pesquisas.

Os Senadores estavam demonstrando profunda preocupação, pois, evidentemente, é algo que suscita mesmo preocupação muito grande e muito profunda observar que há uma degradação de valores morais na sociedade brasileira.

Há um ou outro comentário segundo o qual tudo poderia ser fruto da atividade dos políticos, mas me parece completamente despropositado. Os políticos refletem a sociedade. Esse fenômeno está se passando na sociedade e é claro que a representação política da sociedade tem que refletir o que se passa nela. Mas esse fenômeno da perda de substância e de força dos valores éticos e morais não acontece só no Brasil. Isso está se verificando no mundo inteiro, especialmente no mundo ocidental, na modernidade do mundo ocidental.

No Brasil, isso tem um caráter, talvez, mais profundo e mais preocupante exatamente pelas carências da educação, como disse, há pouco tempo, o Senador Cristovam Buarque.

É evidente que, em um povo despreparado do ponto de vista da educação, essa degradação dos valores morais ainda sofre um aprofundamento e um agravamento muito maior. Mas o fato é que esse fenômeno é mundial.

Sr. Presidente, não sou sociólogo, mas parece-me que há causas mais ou menos evidentes que estão determinando essa invasão de cinismo nas sociedades modernas, especialmente nas sociedades ocidentais. Observa-se um nítido declínio da importância da influência dos valores religiosos, das religiões, das instituições religiosas, que sempre constituíram um dos bastiões de defesa dos valores morais e éticos ligados à religião. Por uma razão ou por outra, talvez porque a ciência material tenha avançado muito, o fato é que há retração do prestígio das religiões no mundo ocidental moderno, coisa que não acontece, por exemplo, no mundo islâmico. E esse contraste de culturas, que está se transformando em geração de violência, no fundo, reflete muito esse fato em si. As religiões perderam, no mundo ocidental, a preponderância que tinham na formação dos valores morais das respectivas sociedades.

Outro fator também inegável é a desestabilização das famílias. No mundo ocidental, esse é um fator de nitidez inequívoca. Como se sabe, a família sempre foi uma das instituições capazes de preservar esses valores éticos, morais e religiosos. A família era a orientação que dava a formação moral básica das crianças dentro do caminho da moralidade e da ética. Esses preceitos estão defasados em função do desfazimento das famílias no Brasil e no mundo ocidental como um todo.

            Outro sentimento faltante é o de patriotismo. É claro que, em uma Copa do Mundo, como disse o Senador Cristovam Buarque, esse sentimento se exalta. O sentimento de patriotismo está muito desgastado pela mundialização, pela globalização, pelas multinacionais, pelo entrelaçamento mundial de interesses financeiros e econômicos. O mercado financeiro hoje é o dono do mundo e vai enfraquecendo o patriotismo, que é o fundamento de várias virtudes, como lealdade, fidelidade, como, enfim, esse sentimento de comunidade nacional.

Sr. Presidente, o crescimento extraordinário do individualismo também é outra causa dessa desagregação de valores morais que quase sempre estão situados nas regras de convivência entre os seres humanos, isto é, no sentimento da coletividade, onde se instauram e se instalam esses valores éticos e morais. Esse individualismo exacerbado, claro, leva também a um egoísmo exacerbado, que tem sua base na hegemonia desse paradigma da competição no mercado.

Desapareceram os vestígios do paradigma da cooperação, que, junto com o planejamento, é o paradigma socialista, e triunfou, de maneira absoluta, o paradigma da competição no mercado, da luta entre os seres humanos para que vença o mais capaz, o mais competente, o que tem mais competitividade. Este é exaltado como vencedor e ganha muito dinheiro. Nunca a figura do vencedor esteve tão associada à riqueza de que ele dispõe, a quanto ele ganha.

Por outro lado, paralelamente, há uma banalização da injustiça econômica e social, das desigualdades que passam a ser encaradas como naturais. É o natural resultado do processo de competição no mercado: os menos competitivos, os menos capazes são jogados na vala comum dos excluídos. Isso é encarado como algo natural, resultado da competição.

Nesse mesmo processo, Sr. Presidente, perderam força aqueles idealismos que conhecemos tão bem na juventude, os idealismos socialistas, os idealismos cooperativistas, os idealismos comunitários, que davam um alento especial à participação da juventude na política, na vida pública de um modo geral e uma certa exaltação dos valores correspondentes a essa visão coletivista, essa visão de cooperação, visão de comunidade entre os cidadãos de um mesmo país, de uma mesma cidade ou até de um mesmo bairro, formando essas virtudes éticas fundamentais da convivência entre seres humanos.

Sr. Presidente, ainda há outro fator: a mídia. Essa mídia do espetáculo, do protagonismo, certamente contribui muito para enaltecer a figura do vencedor e para substituir os valores éticos pelos valores estéticos. É a figura do corpo belo, da face bela predominando e fazendo com que ela esteja sempre associada à imagem do vencedor, é o cultivo da beleza como valor supremo, como valor dominante, na convivência entre as pessoas.

Como eu disse, não sou sociólogo e não sei se essas são as razões, mas tenho a sensação, o sentimento, a convicção de que essas, pelo menos, são algumas das razões que estão produzindo essa deterioração dos valores, do cultivo dos valores éticos e morais nas sociedades ocidentais modernas, especialmente no Brasil, em vista, também, das carências de educação que apresentamos.

Não sei onde vai dar isso, porque sei que os valores éticos constituem o fundamento de qualquer sociedade. À medida que esses fundamentos são destruídos não sei que tipo de desmoronamento isso pode acarretar, o que me preocupa, assim como aos Senadores Pedro Simon e Jefferson Péres.

Acho que a introdução do estudo da Filosofia e das Ciências Sociais no currículo do segundo grau - isso também foi abordado no discurso de S. Exªs - pode, sim, produzir um efeito positivo, especialmente a Filosofia, pois ajuda a desenvolver não só o espírito crítico, como as razões que presidem o comportamento ético, independentemente até dos seus fundamentos religiosos. Trata-se da ética pela meditação, pela filosofia, como a conheceram os gregos. Antes do cristianismo, a Grécia clássica precisamente foi a comunidade, a nação que primeiro desenvolveu a filosofia e o pensamento ético sem uma ligação mais profunda com valores religiosos, pela filosofia.

Agora sei, sim, que os fatores continuam presentes nessa sociedade competitiva. Quanto à religião, há manifestações também inegáveis de um certo crescimento de sentimento religioso, de participação religiosa no mundo ocidental e mesmo no Brasil. Entretanto, por tudo que sei - não sei muito, porque não sou um cientista social -, parece-me que essa religiosidade que está crescendo mais no País é diferente daquela religiosidade do cristianismo mais primordial, dos valores do amor, da fraternidade, da bondade, da caridade. Parece-me mais uma religião utilitária, utilitarista, uma religião que oferece à pessoa melhoria de vida, saída do sofrimento e, quem sabe, até um lote no céu, como algumas dessas seitas pentecostais afirmam.

Não se trata daquele sentimento religioso que fundamentava os valores éticos do cristianismo, mas de alguma coisa utilitarista, “moderna”, que está de acordo com esse sistema competitivo que se instaurou na humanidade, especialmente ocidental, o que, a meu ver, é uma das causas principais desse processo de destruição.

Quanto à recomposição da família, nem se pode pensar nisso, pois a família cada vez mais é chefiada por uma mulher, uma mulher que trabalha - e muito - e que não tem condições de recuperar aquela antiga convivência que fornecia os fundamentos do comportamento moral.

Há, sim, uma certa resistência aos valores da competitividade e uma divinização do mercado; há um certo retorno dos paradigmas de cooperação, de planejamento. Quanto ao Brasil, tenho ressaltado muito essa dimensão, essa vertente do Governo Lula que acho importante, que poderia ter sido ainda bem mais desenvolvida, mas apenas começou um encaminhamento.

Na América Latina como um todo, observa-se isso.

Na França, observa-se isso. A França, quando rejeitou o projeto de Constituição que estabelecia o sistema de mercado, houve uma manifestação clara de rejeição à divinização do mercado e das regras da competitividade. A França rejeitou também o projeto de “flexibilização” do trabalho exatamente para não perder aquilo que havia conquistado durante o tempo de socialdemocracia, que foram grandes avanços de natureza social. A França também tentou a redução da jornada de trabalho; foi o único país do mundo que fez uma pequena tentativa, porque nenhum país pode fazer isso isoladamente. Deve haver um grande movimento internacional. Mas é claro que, se a ciência e a tecnologia produziram esse aumento de produtividade, o fizeram para liberar o ser humano das sobrecargas de trabalho e possibilitar o cultivo das suas virtudes e dos seus bens humanísticos, artísticos, éticos, lúdicos e religiosos, inclusive.

Sr. Presidente, há essas manifestações, há esses indícios de uma reversão, mas é coisa ainda muito incipiente: o Fórum Social Mundial, algumas ONGs que trabalham nesse sentido. É um pensamento que vai se fundando, que vai aos pouco crescendo, mas ainda muito sem resultados palpáveis. Não sei aonde esse processo de degradação vai terminar, mas é claro que a gente sente, lidando com o povo no dia-a-dia. Lendo os jornais, lendo o noticiário, olhando a televisão, percebe-se que há uma nítida mudança de comportamento em que as antigas virtudes, que foram virtudes durante milênios, hoje já não o são mais tanto; hoje ainda são, mas de uma forma até um pouco marginal. A virtude principal é aquela que leva ao vencedor, àquele que venceu na vida, isto é, que mostrou sua capacidade de competir e de vencer os seus semelhantes na luta pela vida e se afirmar, então, como uma pessoa de posse, de grande riqueza, correspondente a essa atitude de vitória que ele teve na luta pela vida.

Portanto, quero só compartilhar essas preocupações, depois dos discursos que escutei ontem, e, ao mesmo tempo, apoiar esse esforço de introdução da Filosofia e do pensamento crítico no segundo grau, momento em que o jovem, o adolescente está despertando exatamente para as tarefas do trabalho.

Que ele possa desenvolver o espírito crítico, possa ter a noção de que há uma ligação também dos valores éticos com a própria felicidade do ser humano. Há uma ligação. Os gregos já defendiam isso e demonstravam de forma convincente que a felicidade do ser humano está muito ligada à capacidade de ele conviver em sociedade na polis, na cidade, e conviver bem com os seus semelhantes. Como? Praticando as virtudes éticas, as virtudes que consagram o ser humano visto como tal.

O herói daquele tempo era um herói virtuoso; não era o herói competitivo. À medida que ele se afirmava como tal, obtinha não só a sua satisfação pessoal, mas também o reconhecimento dos seus compatriotas, o que lhe dava o sentimento de bem-estar e de segurança, enfim. As necessidades fundamentais do ser humano estão muito ligadas não ao possuir riqueza, mas ao reconhecimento, à luta pelo reconhecimento, pois o reconhecimento pelos semelhantes é um dos principais pontos de empenho do ser humano durante os milênios da história da humanidade.

Concedo o aparte ao Senador Ramez Tebet.

O Sr. Ramez Tebet (PMDB - MS) - Senador Roberto Saturnino, quanto ao que está acontecendo hoje, V. Exª faz - como fizeram os nossos colegas ontem - uma análise, mas, com toda certeza, tem esperança.

O SR. ROBERTO SATURNINO (Bloco/PT - RJ) - Eu tenho.

O Sr. Ramez Tebet (PMDB - MS) - Eu tenho. A própria presença de V. Exª na tribuna me dá esperança. Acho que isso tudo é passageiro. Estamos vivendo momentos difíceis da vida nacional, momentos que atingem a classe política; os efeitos da globalização, em suma, todos esses fatores a que V. Exª se referiu. Mas confio no povo brasileiro e confio no espírito cívico, no espírito público do povo brasileiro. V. Exª, en passant, falou sobre o valor das mulheres. Esse valor, hoje, cada vez mais se acentua. Ela está trabalhando fora, mas não descuida de seus filhos. Está preocupada com os filhos e com o lar. É um desejo inerente do ser humano o de viver com qualidades morais, com os valores cívicos e morais com que nossos pais nos educaram e, acredito, as famílias brasileiras ainda estão sendo educadas. Vivemos um momento de espanto geral, de indignação contra as coisas que estão acontecendo. Mas isso é passageiro. E volto afirmar que a presença de V. Exª mais robustece a minha convicção de que isso é passageiro e que os analistas que indicam os efeitos degradantes da vida social brasileira terão um desapontamento, porque não vislumbram um futuro promissor como o que nós queremos para as nossas famílias e, portanto, para o nosso querido Brasil. Muito obrigado, e parabéns a V. Exª.

O SR. ROBERTO SATURNINO (Bloco/PT - RJ) - Obrigado, Senador Ramez Tebet. V. Exª levantou um ponto extremamente importante que não constava do meu pronunciamento. Quer dizer, a afirmação na crença de que isso vai se resolver. O meu otimismo é o de quem acredita na humanidade, não apenas no Brasil, mas na humanidade de modo geral. A humanidade passou por tantos períodos de projeção, de regressão, de elevação e de decaimento. Enfim, isso é próprio da humanidade.

Agora, ela segue uma linha de ascensão, em termos de desenvolvimento humanístico, que é inegável. Nosso período de vida às vezes é curto para observar. Eu não tenho condições de ser otimista, de afirmar, na minha faixa de idade, que verei essa transformação, mas acredito nela com uma convicção firmíssima de que haverá esse reencontro da humanidade com seus valores humanísticos éticos fundamentais, e que o Brasil terá um papel nisso. Eu acredito nisso também...

(Interrupção do som.)

O SR. ROBERTO SATURNINO (Bloco/PT - RJ) - ...na relevância do papel do Brasil como nação, indicando caminhos para o desenvolvimento da humanidade.

Era o que eu tinha a dizer, Sr. Presidente, agradecendo a benevolência de V. Exª.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 06/07/2006 - Página 22846