Discurso durante a 235ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Relato de visita feita por S.Exa. ao Bispo Dom Luiz Flávio Cappio, em greve de fome, na cidade de Sobradinho, na Bahia, pela paralisação das obras de transposição do rio São Francisco.

Autor
Eduardo Suplicy (PT - Partido dos Trabalhadores/SP)
Nome completo: Eduardo Matarazzo Suplicy
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA DO MEIO AMBIENTE. IGREJA CATOLICA.:
  • Relato de visita feita por S.Exa. ao Bispo Dom Luiz Flávio Cappio, em greve de fome, na cidade de Sobradinho, na Bahia, pela paralisação das obras de transposição do rio São Francisco.
Publicação
Publicação no DSF de 18/12/2007 - Página 45602
Assunto
Outros > POLITICA DO MEIO AMBIENTE. IGREJA CATOLICA.
Indexação
  • REGISTRO, VISITA, ORADOR, BISPO, IGREJA CATOLICA, GREVE, FOME, REIVINDICAÇÃO, PRIORIDADE, RECUPERAÇÃO, RIO SÃO FRANCISCO, AMPLIAÇÃO, DEBATE, TRANSPOSIÇÃO, COMENTARIO, PEDIDO, CONFERENCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB), PRESIDENTE DA REPUBLICA, DESISTENCIA, PROTESTO, MOTIVO, SAUDE.
  • LEITURA, TEXTO, AUTORIA, PROFESSOR, ESPECIALISTA, ASSUNTO, DISCORDANCIA, TRANSPOSIÇÃO, RIO SÃO FRANCISCO, ESCLARECIMENTOS, INEFICACIA, PROJETO, FAVORECIMENTO, POPULAÇÃO CARENTE, REGISTRO, HISTORIA, REGIÃO NORDESTE, DEMONSTRAÇÃO, INSUCESSO, TENTATIVA, SOLUÇÃO, SECA, COMENTARIO, ESTUDO, OBRAS, BENEFICIO, FAZENDEIRO.
  • IMPORTANCIA, ANALISE, PARECER FAVORAVEL, TRANSPOSIÇÃO, RIO SÃO FRANCISCO, REGISTRO, COMPROMISSO, ORADOR, REUNIÃO, DEPUTADO FEDERAL, COORDENAÇÃO, PROJETO.
  • SOLICITAÇÃO, TRANSCRIÇÃO, ANAIS DO SENADO, DOCUMENTO, SOLIDARIEDADE, GREVE, FOME, BISPO, IGREJA CATOLICA.

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Agradeço, Senador Gilvam. Que V. Exª possa ser generoso comigo.

Eu gostaria de relatar a visita que fiz, na última quinta-feira, 13 de dezembro, ao Bispo de Barra, Dom Luiz Flávio Cappio, em Sobradinho, na Bahia. Ele estava em seu 17º dia de jejum e oração, na Capela de São Francisco.

Hoje, ele prossegue no 20º dia e, segundo as informações que recebo, encontra-se em situação mais debilitada. Ele pediu para não mais dar entrevistas ou falar ao telefone, a não ser por última emergência, mas quero dizer que o encontrei em ótimo estado de espírito, até de bom humor, falando de maneira serena e equilibrada sobre o seu firme propósito de só voltar a se alimentar se o Governo parar as obras de transposição do Rio São Francisco. Ele quer que, antes, sejam realizadas as obras de revitalização, segundo as recomendações da Agência Nacional das Águas (ANA) e da Articulação do Semi-Árido (ASA).

Ele faz a avaliação de que o projeto de transposição não tem levado em conta, devidamente, os danos que podem ser causados ao meio ambiente e às populações ribeirinhas, inclusive de índios. Sobretudo, Dom Luiz Flávio Cappio considera que deveria haver um debate muito mais amplo e aprofundado de todos os prós e contras, com possibilidade de decisão prévia pelo Congresso Nacional e, eventualmente, até por referendo popular, antes da retomada das obras.

Eu já o conhecia há pouco mais de um ano, desde a sua primeira greve de fome, em função da amizade que desenvolveu por ele o economista Paulo Nogueira Batista Júnior, que, ao assistir a uma missa que ele celebrou no Convento de São Francisco, no Largo São Francisco, ficou muito impressionado com sua força e sua mensagem a todos os presentes. Então, Paulo Nogueira Batista Júnior sugeriu-me que o ouvisse também.

Eu o convidei para, com seu cunhado Luiz Augusto e com Paulo, almoçar em minha residência. Estava presente meu filho Supla e, na ocasião, pude perceber a força de sua mensagem e conhecer mais de perto a sua vida.

Paulo Nogueira Batista renovou o seu apelo agora e assim também o fizeram João Pedro Stédile, do MST, durante o Encontro dos Amigos do MST, no sábado retrasado, José Celso Martinez Corrêa, o Deputado Adão Preto, do PT, os amigos da Pastoral da Terra e tantos outros.

Inclusive, na madrugada de quarta para quinta-feira, quando estávamos debatendo, aqui, a CPMF, tive a oportunidade de conversar, por telefone, com o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na ocasião, informei-o de que estava considerando fazer uma visita a D. Luiz Flávio Cappio, até para atender a esses apelos e ao meu próprio impulso pessoal de conhecer mais de perto a situação em Sobradinho.

O Presidente então me disse da sua avaliação sobre a sua própria experiência de greve de fome que fez no início dos anos 80 como Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, durante o período em que esteve preso no Dops. Aliás, o responsável era então o hoje Senador Romeu Tuma. No sexto dia de greve de fome, houve um pedido da Igreja, de Dom Cláudio Hummes, no sentido de que ele paralisasse a greve de fome. Naquele caso, que guarda uma relação com este, o Presidente Lula suspendeu a sua greve de fome que era uma protesto. Ele imagina que também poderia acontecer algo de natureza semelhante.

Considerei muito importante ir até Sobradinho; tive a oportunidade de conversar longamente com Dom Luiz Flávio Cappio e fiquei muito impressionado com a sua força interna. Assisti à missa que tem sido rezada diariamente às 19 horas, desde que ele começou a sua greve de fome, em 27 de novembro passado, missa que foi concelebrada por aproximadamente 12 sacerdotes das diversas dioceses que ali vieram para dar-lhe o apoio.

Avalio que havia cerca de 300 pessoas que lotaram a Igreja, expressando um sentimento muito forte de solidariedade.

Após a missa, antes que Dom Luiz Flávio Cappio se deitasse, tivemos mais uma conversa, concluída com a benção que lhe pedi para que eu possa estar bem com os meus próximos e, assim, também poder ajudar melhor a sua causa em defesa da vida e com abundância para todos.

Avalio que Dom Luiz Flávio Cappio é como o bom pastor, que procura dar a vida por suas ovelhas. É muito importante que nós possamos fazer um esforço, atendendo inclusive ao apelo de todos aqueles que aprenderam a respeitá-lo e a amá-lo, sobretudo ali na comunidade de moradores de Sobradinho, de Barra e de toda a região do Rio São Francisco para que possamos todos colaborar para que possa haver o seu direito à vida.

Quero cumprimentar a CNBB que, junto com o Presidente Lula, tem procurado realizar um diálogo de compreensão para com a atitude de Dom Luiz Flávio Cappio.

É bem verdade que houve uma solicitação por parte do Vaticano, transmitida em nome do Vaticano, para Dom Luiz Flávio Cappio interromper, parar com o seu protesto.

Hoje conversei com o Ministro Patrus Ananias e até sugeri que dialogasse com Dom Luiz Flávio Cappio quando eu estava ali ao seu lado. Observo aqui a opinião de Patrus Ananias, que avalia como inaceitável ir ao extremo, ao auto-martírio; que fica muito difícil essa intransigência. Segundo Patrus, é como se dissesse: façam o que quero, senão vou me matar. Entretanto, é preciso colocar as coisas na devida perspectiva. Quando, por exemplo, Mahatma Gandhi, em diversas ocasiões, como Dom Luiz Flávio Cappio, que avalio se inspira muito nos gestos de Mahatma Gandhi, resolveu fazer greve de fome para dobrar à força a vontade do império da Inglaterra, que não queria conceder independência à Índia, muito certamente havia vozes que lhe diziam que aquele gesto se constituía uma insensatez.

Eu tenho o conhecimento de que há muitos Senadores aqui, inclusive de Estados do Nordeste, que são plenamente favoráveis à transposição das águas do Rio São Francisco. Hoje, o Ministro Geddel Vieira, ontem, o Ministro Ciro Gomes e o próprio vice-Presidente José Alencar, que esteve responsável pelo projeto de transposição, certamente acreditam... Ainda ontem à noite, liguei para o Deputado Ciro Gomes e disse a ele que quero amanhã fazer uma visita para ouvir todos os seus argumentos a favor da transposição.

Participei da Caravana da Cidadania, quando o Presidente Lula, numa de suas campanhas, nos anos 90, veio desde Garanhuns, Caetés até São Paulo, até Vicente de Carvalho. Passamos por Canudos e por toda a região do Rio São Francisco. Naquela ocasião, nós estávamos acompanhados por um dos maiores geógrafos brasileiros, o Professor Aziz Ab’Saber. Gostaria, Sr. Presidente, de aqui transcrever e citar alguns dos aspectos abordados por Aziz Ab’Saber, que é um dos maiores conhecedores de tudo o que se passa no Brasil.

Ele, por exemplo, avalia, no seu artigo A seca e o velho Chico, que a transposição do Rio São Francisco seria boa para os ricos mas não tão boa para os pobres. Passo a ler alguns trechos de seu artigo:

“A procura de soluções para resolver ou atenuar as conseqüências dramáticas dos períodos de seca para o homem e a sociedade dos sertões nordestinos é uma busca que deveria ser permanente entre todos os brasileiros. Entretanto não é fácil encontrar soluções, ainda que parciais, para resolver os problemas dos habitantes do extenso território dominado por uma geografia humana sofrida. Nunca será demais relembrar que o geógrafo Jean Dresh, em 1956, comentou as sutis diferenças existentes entre um verdadeiro deserto quando comparadas com a realidade física e fitogeográfica do domínio das caatingas. Essa pode ser considerada a região semi-árida mais povoada do mundo, mesmo porque aqui tem gente por toda parte, enquanto nos verdadeiros desertos os grupos humanos ficam muito distantes entre si circunscritos a raros pontos de oásis. E completava o grande conhecedor do Saara que, nós brasileiros iríamos ter os maiores problemas para resolver ou minimizar a série de questões que afetam uma população dessa grandeza avantajada. Os sertões do Nordeste seco constituem no seu conjunto o domínio da natureza de grande exceção, mais quente e menos chuvoso de todo o território brasileiro. Encontra-se em posição marcadamente subequatorial projetando-se através de dois braços para regiões tropicais situadas nos dois bordos da Chapada Diamantina, Bahia, respectivamente no médio baixo vale do São Francisco e a região que envolve o recôncavo baiano projetando-se para o Sudeste.

Trata-se da grande área conhecida pelo nome de “polígono das secas’, onde as precipitações anuais nas depressões interplanálticas colinosas recebem de 286 a 750 mm por ano, e uma temperatura de 27 a 29 graus. Há que considerar essa elevada taxa de calor para entender a fortíssima evaporação que afeta grande parte dos domínios das caatingas. A justificável inversão terminológica que os nordestinos têm para os dois semestres opostos traduz-se no uso da expressão “inverno” para os seis meses de verão chuvoso, enquanto o verdadeiro período astronômico de inverno é chamado de “verão”, pela taxa de temperatura, secura do ar e intermitência sazonária da drenagem. E é no semestre de maior secura e evaporação hídrica que a esmagadora maioria dos rios do polígono das secas “cortam”, perdendo seus fluxos de água e expondo seu leito seco e arenoso em todos os sertões.

Ao longo do século que findou, aconteceram muitas propostas e experiências dirigidas para atender as necessidades da população sertaneja do Nordeste Seco. Por meio século predominou o ideário dos açudes, os quais se multiplicaram esparsamente onde foi possível. Foram estabelecidos açudes em diferentes tipos de sítios e setores de rios intermitentes. Iniciou-se o processo de construção de uma barragem espetacular nos extremos de pontões rochosos de Quixadá, uma resposta do Segundo Império aos problemas criados pelo repiquete de secas nos anos entre 1879 e 1882. Infelizmente, a várzea existente a jusante do açude era muito restrita, não podendo oferecer grande espaço para irrigação, fato que se repetia em muitos outros casos, culminando pelo boqueirão de Curemas, no sertão da Paraíba.

Ali se construiu um importante açude a montante de um boqueirão de tipo apalachiano (water gap), em uma garganta cortada por um rio no meio de uma crista quartzítica. Entretanto, o sítio não possuía várzea para irrigação a jusante, e, por essa razão, as águas barradas ficavam apenas salinizando postadas em espaços outrora dominados por correntes de águas doces. Felizmente, muitos outros casos de açudes de porte pequeno ou médio tiveram maior importância social, sobretudo quando construídos próximos de pequenas cidades ou lugarejos. Embutidos em áreas colinosas próximas de estrangulamentos de drenagem de rios e de riozinhos intermitentes, três barramentos sertanejos, no cotovelo perene do Rio São Francisco, fornecem águas para alguns espaços de irrigação regionais, ainda que o volume principal das correntes fluviais esteja centrado na produção de energia elétrica (Paulo Afonso/ Itaparica/ Xingo).

A partir da implantação de estradas e caminhos interligando os mais diversos quadrantes dos sertões, aconteceu um modelo impensado de miniaçúdes, de um certo interesse para algumas propriedades rurais. Em áreas de aterros, cruzamento de pequenos vales, formou-se uma série de barramentos criadores de pequenos açudes. Antes disso, na tradição popular sertaneja, em alguns setores da região formaram-se miniaçúdes, em áreas de cruzamento dos “caminhos” de água identificados durante a escorrência de águas das chuvas. Não é sempre que se encontram sítios para o estabelecimento de “barreiros”. Em alguns deles foi necessário construir cercas para evitar que o gado interferisse nas bordas lamosas da preciosa água ali empoçada.

Aqui chegado, podemos reconhecer formas de convivência tradicionais para sobrevivência nos amplos espaços do Sertão na listagem das estratégias de sobrevivência engendrada pelos próprios homens do Nordeste Seco.

“Barreiros” espaçados, fileiras de altos vasos de barro para receber águas que no período chuvoso escorrem dos telhados das casas.

(O Sr. Presidente faz soar a campainha.)

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP) - Continuando, Sr. Presidente:

Pequenos e escuros compartimentos, dotados de uma bacia de tijolos e cimento para resguardar água coletada durante a época chuvosa. Minúscula quantidade de água empossada em buracos de rocha em lajedos expostos.

Uma das mais notáveis formas de convivência dos sertanejos, em relação à dinâmica das chuvas e rios regionais, é, sem dúvida, o uso do leito seco dos cursos de água que perdem correnteza por cinco a sete meses. Denotando criatividade, os agricultores que procuram obter produtividade durante o processo de rebaixamento das águas dos rios intermitentes sazonários regionais constroem leirões - hortas estreitas e longas, transversais ao eixo principal do rio -, plantando touceiras de mandioca, feijão e milho nessas verdadeiras hortas inventadas por eles próprios.

Sr. Presidente, Senador Gilvam Borges, peço a generosidade de V. Exª. Trata-se trata de uma colaboração...

(Interrupção do som.)

O SR. PRESIDENTE (Gilvam Borges. PMDB - AP) - V. Exª necessita de quanto tempo para concluir?

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP) - Se V. Exª pudesse me dar quinze minutos, eu adoraria.

O SR. PRESIDENTE (Gilvam Borges. PMDB - AP) - Vou conceder mais quinze minutos. O Senador Mão Santa vai falar também. É importante. É sobre a greve.

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP) - É sobre Dom Flávio Cappio e o Rio São Francisco. Obrigado, Sr. Presidente.

O SR. PRESIDENTE (Gilvam Borges. PMDB - AP) - Senador Mão Santa, peço-lhe um pouco de paciência.

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP) - Continuando, Sr. Presidente:

Eles sabem que os rios secam, dizem que “cortam”, mas uma lâmina de água permanece abaixo das areias dos leitos expostos, entre travessões de rocha resistente. E, para evitar que as raízes de suas plantas apodreçam, eles adotaram a técnica dos leirões, um novo modelo produtivo e útil de horticultura adaptada às condições clima-hidrográficas da região. Desde há milênios foi inventada a técnica de culturas em estreitos terraços, obedecendo as curvas de nível das vertentes de morros, o que foi criado no Nordeste com as culturas de vazante de rio.

Perguntando a um roceiro que cuidava de seus leirões na manhã quente dos sertões de Jaguaribe se era econômico aquele tipo de produção, ele respondeu: “Nos grandes espaços dos sertões, onde predominam propriedades dedicadas à pecuária extensiva, o nosso caso é único. O único espaço que nos sobrou para uma atividade produtiva, comprovadamente bem-sucedida, foi o uso do leito dos rios que perde a correnteza; espaços estes que não pertencem a ninguém, e que são utilizados por nós, os vazenteiros”. A maior prova da importância do seu trabalho nos foi argumentada pelo fato de que os produtos de seus leirões são colocados a preços baixos em todas as feiras dos sertões regionais. Entretanto, o roceiro que cuidava de seus leirões nos contava que os grandes proprietários regionais não residentes conseguiam que instituições públicas localizadas em grandes cidades costeiras do Nordeste providenciassem a liberação de água dos açudes para que eles pudessem usar ao seu serviço e economia. De forma que as águas liberadas dos açudes em épocas críticas das semiaridez redundassem em um estrago total da horticultura dos leirões. Sem comentários. Além disso tudo, houve uma proposta bastante singela de gotejamento, feita pelos técnicos da Sudene e do Dnocs: proposta de muito pequeno alcance no espaço total das caatingas.

Por fim, emergiu de novo a velha idéia da transposição das águas do São Francisco para o setor setentrional do Nordeste Seco. Todas as propostas feitas ao longo de oitenta anos foram insuficientes para atender ao conjunto da região semi-árida mais povoada do mundo. Açudagem: multiplicação de açudes em diversos setores dos sertões regionais, a maioria dotados de pequenas várzeas irrigáveis a jusante das barragens, com efeitos locais bastante favoráveis, porém incapazes de atender os habitantes do espaço total sertanejo. Depois veio a ênfase nas plantações de agave, acarretando mais problemas do que soluções. Logo, um mostruário difuso de plantações de algodão em solos razoáveis, no entremeio de vastos latifúndios dedicados à pecuária extensiva. E uma invasão de plantações de banana nas faixas de transição das terras úmidas. Nos períodos de retardo de chuvas, um grande esforço para estabelecer sofridas “frentes de trabalho” para a construção de estradas, fato logo aproveitado por grandes e espertos proprietários de latifúndio.

Permeando todas essas experiências, uma solução por processos emigratórios, iniciada durante o catastrófico período de secas de 1879-1882. Primeiramente na direção da Amazônia, durante o ciclo da borracha, e bem depois para São Paulo, a partir da segunda metade do século 20. Uma dramática emigração dos sertões para a terra paulista por meio do rio São Francisco, até Pirapora, com transbordo pela Central do Brasil até Belo Horizonte, e daí para São Paulo. Aberta a rodovia Rio-Bahia, emigrações desesperadas por meio de incômodos caminhões de carga. A emergência de São Paulo como solução aparente aconteceu logo após o término da Revolução de 1932, quando o governo central aliciou legiões de homens habitantes dos sertões para abortar a revolução constitucionalista. Nessa ocasião houve uma espécie de descoberta de São Paulo por parte dos “invasores”. Irmãos de outras terras, invadindo os rincões e cidades de um Estado em plena diversificação desenvolvimentista. Uma descoberta compensadora para os jovens e adultos que foram transformados em soldados para eliminar os arroubos democráticos de elites culturais despreparadas para operações bélicas. E, assim, pais e filhos tomaram São Paulo como solução, deixando mães e meninos à mercê da rusticidade social dos sertões. Muitos vieram, poucos voltaram. Sendo que, até hoje (2005) [este artigo é de 2005, mas extremamente atual] ninguém quer pensar e atentar para a alucinante tragédia das famílias sertanejas que perderam o rastro de seus filhos: mulheres heroínas que se tornaram chefes de família.

Em um estudo de previsão sobre “A quem vai interessar a transposição das águas do São Francisco” já se pode que documentar que as vantagens maiores estarão relacionadas com os latifundiários e propriedades agropastoris existentes nas colinas sertanejas que margeiam o rio Jaguaribe, enquanto que os maiores prejudicados, de imediato, quando as águas chegarem aos rios até então secos, serão os pobres vazenteiros tradicionais do médio e baixo Jaguaribe. Os fazendeiros absenteístas, logo de início, não mais precisarão comprar água de caminhão-pipa para o seu gado. E, em oposição, os leirões transversais aos rios “cortados” não terão mais possibilidades de implantação e produtividade, ainda que se saiba que eles abastecem parcialmente as feiras do sertão. Assim, os pobres trabalhadores continuarão excluídos, mesmo porque ninguém escolhe o ventre, o lugar e a condição socioeconômica e cultural para nascer.

Em qualquer hipótese, se um dia forem iniciadas as obras de transposição, será necessário fazer um registro dos sertanejos que se dedicam à cultura de vazantes, dando a estes prioridade no uso agrícola e econômico das áreas de irrigação que venham a ser produzidas mais próximas de sua residência. Os gastos com instalação das águas captadas em diferentes pontos deverão ficar por conta do projeto, por três anos seguidos. A assistência técnica para feitura e o funcionamento dos diversos setores das terras firmes colinosas que terão processo de irrigação (modelo Petrolina) deverá ser de responsabilidade principalmente de órgãos governamentais.

Em períodos subseqüentes, os fazendeiros pecuaristas do sertão certamente irão pressionar governantes e administradores para vender glebas ou se sujeitar a desapropriações com garantido e rápido retorno de custos. Não está fora de propósito que todos os espaços da beira alta do rio Jaguaribe venham a ser “transformados em mercadoria”. Atenção, especuladores cristãos, financeiramente insaciáveis! Suas terras serão valorizadas. Por outro lado, em períodos de seca ou repiquete de seca - como já foi documentado por geógrafos competentes - será muito fácil comprar sítios, pequenos sítios e pequenas glebas, a preços aviltantes, dos pobres desesperados. Que tristeza, Deus meu!

A afoiteza com que se está pressionando o governo para conceder grandes verbas para o início das obras de transposição de águas do São Francisco [alertava Aziz Ab’Saber] terá conseqüências imediatas para especuladores de todos os naipes. Existindo recursos disponíveis, todo mundo julga que pode se candidatar à obtenção de serviços os mais variados, se possível bem rendosos. Será assim, repetindo fatos do passado, que acontecerá a disputa pelos dois bilhões de reais previamente anunciados para o começo das obras. Todos os planejadores conscientes sabem que, na conjuntura [da miséria] da “indústria das secas” muita coisa não deveria ser previamente anunciada a favor de empreiteiras e pseudoplanejadores.

O único impacto positivo isolado da transposição será aquele que movimentará as águas enclausuradas nos açudes, evitando o continuado processo de salinização. Note-se, porém, que a poluição hídrica existente no alongado rio São Francisco constituirá um fator de impacto negativo de difícil solução em termos da produção de água potável. Por sua vez, as cidades beiradeiras tenderão a obter água para diferentes fins, podendo registrar até mesmo o ilusório crescimento demográfico.

Nunca deverá ser esquecido que, para fazer os elevatórios das águas do São Francisco para os dois açudes complementares previstos, localizados ao sul da Chapada do Araripe, será sempre um processo dependente das hidrelétricas do sistema Paulo Afonso/Xingó. Sendo que o máximo de necessidade energética recairá sobre os tubulões de elevação de águas a serem implantados necessariamente na borda sul do Araripe.

O balanço entre o quanto a água passível de ser retirada do São Francisco para ser transposta além-Araripe é bem mais complexo do que até agora vem sendo apresentado. Os rios Jaguaripe e Piranhas/Açu deverão receber águas exatamente no momento em que o médio-baixo do vale rio São Francisco estará sujeito a fortes estiagens. Não será necessário transpor águas nos períodos em que os rios do Grande Nordeste Seco estejam com sua correnteza naturalmente recuperada - devido à estação chuvosa. Razão pela qual será necessário um estudo muito detalhado do que se pode retirar do rio São Francisco sem que haja prejuízo para a funcionalidade do sistema hidrelétrico Paulo Afonso/Itaparica/Xingó. Não se pode deixar de considerar que na época de penúria geral (na perenidade do médio-baixo vale do São Francisco; e corte generalizado de fluxos dos rios de além Araripe) é que será necessária também mais energia para garantir a funcionalidade do sistema sazonário de transposição de águas para além Araripe, assim como para sucessivas e diferentes atividades vinculadas ao projeto. Disso tudo resulta um ponto de partida para o sucesso da transposição - é o fato de que o sistema deverá ser forçosamente intermitente estacional.

Dizer que a transposição de águas do São Francisco vai resolver o problema do semi-árido nordestino é uma consideração totalmente inconseqüente e absolutamente distorcida. Pelo fato de indicar um total desconhecimento dos espaços físicos, ecológicos e sociais totais do Nordeste Seco, o grau de generalidade dessa e de outras afirmações similares indica um caráter eleitoreiro e uma fala destinada a ludibriar os sensíveis brasileiros residentes em regiões menos problemáticas. Enfim, uma demonstração de que um velho projeto dotado de viabilidade técnica não foi revitalizado por estudos básicos metodologicamente corretos, que consideramos essencialmente necessários (viabilidade social, ambiental e econômica polivalente). Mas recentemente foram acrescentados argumentos numéricos típicos de uma nova classe de políticos dominantes no país, em que se afirma que a transposição do São Francisco irá favorecer a vida de 10 a 12 milhões de sertanejos. A indicação sobre a quem vai favorecer a transposição nunca recebeu um tratamento honesto e integrado. Já era tempo que os planejadores vinculados ao governo soubessem a diferença entre planos e projetos pontuais, lineares e areolares.

Sr. Presidente, é importante que também ouçamos os argumentos daqueles que avaliam que o projeto de transposição do rio São Francisco faz sentido. Eu, inclusive, comprometi-me a ouvir, amanhã, o Deputado Ciro Gomes, que foi um dos principais responsáveis pela coordenação e implementação do projeto, que agora está em andamento.

É verdade que o Presidente Lula foi eleito e tinha em sua plataforma a transposição do rio São Francisco. Mas, conforme tem assinalado Dom Luiz Flávio Cappio, também é verdade que, naquela oportunidade, na campanha de 2006, esse nem sempre foi o tema principal de decisão, que levou o Presidente Lula a ter excepcional votação, sobretudo no Nordeste brasileiro.

Então, avalio que é importante que possa haver esse debate.

O Presidente Lula manteve diálogo com a CNBB. Diante da liminar expedida pelo Tribunal Regional Federal do Distrito Federal, no dia 10, determinando a paralisação das obras, tendo a efetiva suspensão do plano de transposição ocorrida na sexta-feira, dia 14, e tendo sido anunciado que não se retomarão as obras, senão depois de 7 de janeiro, eu gostaria de informar que o Bispo de Barra. Dom Luiz Flávio Cappio, agora passando para o 21º dia em jejum e oração, descartou hoje paralisar a sua greve de fome em função dessa proposta. Dom Luiz Flávio Cappio está aguardando a decisão do Supremo Tribunal Federal que, muito provavelmente, ocorrerá ainda nesta semana. Ele acredita que os Ministros do Supremo Tribunal Federal, inclusive Carlos Alberto Direito, que está analisando todos os documentos...

O SR. PRESIDENTE (Gilvam Borges. PMDB - AP. Fazendo soar a campainha.) - Senador Eduardo Suplicy, por gentileza, V. Exª tem mais um minuto para concluir.

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP) - O Ministro Carlos Alberto Direito ficou com a incumbência de dar prosseguimento à análise que o Ministro Sepúlveda Pertence estava realizando relativamente às diversas iniciativas, inclusive do Ministério Público para que seja reexaminada e melhor discutida a obra de transposição.

Eu gostaria, Sr. Presidente, de solicitar sejam também transcritos como documentos a manifestação de José Celso Martinez Corrêa, a mensagem que ele enviou a Dom Luiz Flávio Cappio, bem como a mensagem-manifesto que Leonardo Boff encaminhou a Dom Luiz Flávio Cappio, manifesto que está assinado por inúmeras outras pessoas. Que possam Sr. Presidente ser transcritos.

 

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DOCUMENTOS A QUE SE REFERE O SR. SENADOR EDUARDO SUPLICY EM SEU PRONUNCIAMENTO.

(Inseridos nos termos do art. 210, inciso I e § 2º do Regimento Interno do Senado Federal)

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Matérias referidas:

“MANIFESTO;”

“Ió! Presidente Lula;”

“D. Cappio diz que não vai parar greve de fome (O Estado de S. Paulo)”.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/12/2007 - Página 45602