Discurso durante a 66ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Reflexão sobre a falta de investimento na educação de base e o baixo desempenho das universidades brasileiras.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
EDUCAÇÃO. ENSINO SUPERIOR.:
  • Reflexão sobre a falta de investimento na educação de base e o baixo desempenho das universidades brasileiras.
Publicação
Publicação no DSF de 01/05/2008 - Página 11248
Assunto
Outros > EDUCAÇÃO. ENSINO SUPERIOR.
Indexação
  • CRITICA, DECLARAÇÃO, COORDENADOR, CURSO SUPERIOR, MEDICINA, UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (UFBA), ALEGAÇÕES, INSUFICIENCIA, RESULTADO, ESTUDANTE, AVALIAÇÃO, MINISTERIO DA EDUCAÇÃO (MEC), INFLUENCIA, INFERIORIDADE, CAPACIDADE, APRENDIZAGEM, POPULAÇÃO, ESTADO DA BAHIA (BA).
  • ANALISE, NECESSIDADE, URGENCIA, BRASIL, AUMENTO, INVESTIMENTO, EDUCAÇÃO, ESPECIFICAÇÃO, EDUCAÇÃO BASICA, ENSINO FUNDAMENTAL, MELHORIA, QUALIDADE, ESTUDANTE, ENSINO SUPERIOR.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Como a senhora também, Srª Presidente.

            Eu vim aqui falar da cegueira, mas não da cegueira que aflige milhares de brasileiros fisicamente, até porque muitos dos brasileiros que são portadores de deficiência visual, que são cegos, enxergam. Eles enxergam graças ao pensamento, à lucidez, à reflexão; eles conseguem ver lá na frente. Aqui mesmo, em Brasília, temos um líder importante, o professor Antônio Leitão, que, como ele mesmo se define, é um cego de visão.

            Eu vim falar da outra cegueira, a cegueira de quem não quer ver a realidade dos problemas do nosso País. A cegueira que, no passado, fez este País endividar-se ao ponto de sacrificar o seu progresso. A cegueira que faz com que nós consideremos como prova de grande progresso o aumento de veículos nas ruas das cidades, que estão inviabilizando o funcionamento da vida nas cidades.

            Eu vim falar, sobretudo, da cegueira daqueles que não querem perceber que o problema das nossas universidades, hoje, está principalmente no ensino infantil, no ensino fundamental, no ensino médio.

            Hoje, diversos falaram aqui do diretor de uma faculdade de Medicina da Bahia que, ao ver os resultados ruins da sua faculdade, disse que o problema está no QI dos baianos, sugerindo, indiretamente, que tiremos daqui o busto de Rui Barbosa, que é um dos símbolos da inteligência brasileira. O que me aflige é esse tipo de cegueira, que faz com que uma pessoa diga que o problema está no QI dos baianos ou que diga que o problema está no QI, quando, na verdade, o problema das baixas notas das nossas universidades está no ensino fundamental, está lá atrás, na educação infantil que a senhora defende tanto.

            Eu não vou nem dizer o que penso desse diretor, que age de forma a nos levar a caracterizá-lo como racista. Não. Esse diretor é um caso a parte. Não vamos perder tempo com isso. Eu falo é da maioria da comunidade universitária, que põe a culpa da má universidade às vezes no salário dos professores - é verdade que não são bons -, na falta de equipamentos - é verdade que não existem -, em todos os problemas internos à universidade. É desta cegueira que quero falar: da cegueira que não vê além dos limites do campus universitário, da cegueira que acha que o problema da universidade é só da universidade, que estão apenas dentro da universidade e que podem ser resolvidos apenas dentro da universidade, da cegueira daqueles que não vêem que o problema da universidade brasileira é que apenas um terço dos nossos jovens terminam o ensino médio.

            Jogamos fora dois terços do potencial intelectual deste País. Quantos gênios não perdemos porque não aprenderam a ler na hora?

            Esse senhor que disse que o problema está no QI não lembrou que um problema da universidade baiana e de qualquer outra universidade de qualquer Estado é o número de analfabetos. Ele não disse, por exemplo, que a Bahia tem o maior contingente de adultos analfabetos do Brasil, seguida por São Paulo - para mostrar que não é uma questão de renda, é uma questão de vontade.

            Dentre os analfabetos adultos da Bahia, quantos grandes médicos não perdemos, se tivessem aprendido a ler na hora? Quantos grandes cientistas não perdemos, se tivessem aprendido as quatro operações no momento certo e entrado na escola alfabetizados ou se alfabetizando no primeiro ano da escola para aprender a ler mesmo, como muitos não conseguem?

            O nosso problema tem due ser analisado olhando-se para eles, e não mantendo os olhos fechados, como hoje faz a maior parte da comunidade universitária. É como esse senhor, que olhou para dentro e disse: “O problema nosso é que os alunos que aqui entram têm o QI baixo.” Além do racismo de dizer que isso é coisa de baiano, o que não tem nada a ver - o escritor brasileiro mais conhecido no mundo depois de Paulo Coelho é um baiano: Jorge Amado -, ele só olhou dentro, ele não olhou o que está fora, o que está antes.

            O problema é que esses baianos, esses pernambucanos, esses cariocas, esses rio-grandenses do sul não puderam estudar como deveriam para chegar ao final do segundo grau e fazer o vestibular.

            Além disso, mesmo os que fazem o vestibular e entram na universidade entram com uma educação de base deficiente e aí não tem como ter universidade boa. Não tem como ter universidade boa se os alunos entram na universidade e puxam a universidade para baixo porque não vieram preparados.

            Não há bom professor se os alunos o puxam para baixo, se não deixam que ele ensine algo mais na frente. Não há bom professor nem boa universidade se, durante os primeiros meses e até anos, a universidade tem de fazer uma reciclagem do que os alunos não aprenderam na educação de base.

            Então, vejam que há dois problemas. Primeiro, há o problema dos que não conseguem terminar a educação de base e aí não podem fazer vestibular - e o Brasil jogou fora todo esse potencial. Segundo: mesmo aqueles que fazem o vestibular, entram na universidade com uma formação deficiente e puxam a qualidade para baixo.

            Esta é a cegueira da qual queria falar hoje: a cegueira daqueles que olham o seu problema como se fosse apenas seu e não de um conjunto, de um processo que faz com que as instituições brasileiras sejam puxadas para baixo em vez de serem puxadas para cima.

            Não é possível ter professor ruim quando os alunos são bons, porque, se os alunos forem bons e o professor for ruim, os alunos expulsam o professor, os professores são desnudados quando o aluno é bom.

            Então, são dois os problemas no Brasil: primeiro, jogamos fora grande parte do potencial intelectual; e, segundo, mesmo os que entram na universidade não estão bem preparados. Assim, não há como haver boa universidade.

            Esse diretor deveria olhar mais longe, deveria deixar a cegueira dele e olhar mais adiante para perceber que o problema não está no QI dos baianos, o problema está na falta de investimento na educação de base na Bahia, em Pernambuco, em todo este Brasil.

            Mas volto a insistir: não é só ele. Ele se manifestou como um racista ao especificar a idéia maluca de que o QI dos baianos não é alto, mas os outros, que acham que o QI é alto, não percebem que jogamos fora uma massa imensa de QIs ao não educar todos os brasileiros.

            Por isso, eu vim falar da cegueira e dizer que, se queremos enxergar e melhorar a qualidade da universidade, façamos com que a criança, ao nascer, seja bem alimentada; que, nas semanas e nos meses seguintes, com boa alimentação, ela comece a ter um desenvolvimento intelectual graças aos procedimentos que hoje existem para dinamizar, para fazer com que uma criança descubra a realidade do mundo, aprenda a raciocinar. É aí que melhora a universidade.

            Quer melhorar a universidade de um país? Dê alimentação às crianças logo que ela nasçam e dê incentivos ao desenvolvimento intelectual delas logo nos primeiros cinco anos. É aí que melhora a universidade. E não há outra maneira de melhorar a universidade se não alimentarmos bem as crianças ao nascerem e, depois disso, fazer com que, aos quatro anos, entrem na escola e, aos quatro anos entrando na escola, consigam se alfabetizar aos cinco anos.

            Porque uma criança alfabetizada aos cinco anos tem muito mais chances de, aos poucos, ir se transformando numa criança educada.

            Além disso, vamos fazer com que o ensino médio seja de qualidade para todos. Casa pessoa que não tem ensino médio é uma pessoa a menos na universidade. E é por isso que a universidade é ruim, porque, neste País, só disputa para entrar na universidade um terço; dois terços ficam de fora. Já pensou se no futebol a gente fizesse o mesmo? Já pensou se no futebol a gente dissesse que só joga futebol um terço dos meninos deste País e agora das meninas? Como iríamos ter uma boa seleção? Nunca.

            O Brasil tem uma boa seleção de futebol porque todos jogam bola desde os quatro anos e não tem uma boa universidade porque não se joga educação, não se brinca, não se estuda, não se educa a partir dos quatro anos como se joga futebol.

            O Brasil tem uma boa seleção de futebol porque a bola é redonda para todos, não há diferença entre ricos e pobres. Jogar bola é com bola redonda, mas, na escola, não! A escola tem as redondas e as quadradas: as redondas dos ricos e as quadradas dos pobres. E o pior é que, como os ricos sabem que os pobres não vão conseguir estudar, eles também não estudam muito, porque não têm concorrência com eles.

            Basta estudar um pouquinho que já conseguem entrar na universidade. Já pensou, se todos estudassem bem, a disputa para entrar na universidade? Aí, sim, todos teriam de estudar muito, todos teriam de se preparar, todos teriam de chegar lá na universidade já com uma preparação razoável. A gente não vê isso! É triste.

            Mas o mais triste na declaração desse senhor não foi o racismo. Isso é uma debilidade mental dele. O que lamento é a outra parte, a parte em que ele não é diferente do resto, a parte da cegueira. Não é a parte do racismo. E essa cegueira é muito generalizada. Grande parte da comunidade universitária acha que o problema da universidade é interno, salário e equipamentos. Não é interno nem está nos alunos da universidade, está lá na ponta, nas crianças que, ao nascerem, não recebem alimentação correta, que chegam aos quatro anos e não entram na escola, que entram na escola, mas não fazem o curso até o final do 2º grau, ou que fazem o curso até o final do 2º grau sem a competência correta.

            Vamos acabar com essa cegueira, porque racistas eles próprios se acabam e ninguém fala mais neles. Agora, a cegueira, não, essa continua. Não a cegueira visual dos deficientes, não a cegueira daqueles que não vêem fisicamente, mas são capazes de imaginar, de pensar, de analisar, e são cegos de visão.

            Falo daqueles que pensam que vêem, porque os olhos funcionam, mas a cabeça, não, porque os preconceitos não deixam, porque o egoísmo não permite, porque olham só para dentro deles, olham só para o seu ambiente e não vêem que o problema no Brasil é muito maior.

            Essa cegueira é que me preocupa, muito mais do que o racismo de um maluco qualquer, que diz besteira como esse senhor disse ontem ao falar que os baianos têm baixo QI.

            Lamentavelmente, a Bahia tem, sim, um elevado índice de analfabetismo de adultos e isso, se os baianos quiserem, podem mudar.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 01/05/2008 - Página 11248