Discurso durante a 104ª Sessão Especial, no Senado Federal

Homenagem à memória do ex-Senador Jefferson Péres.

Autor
Arthur Virgílio (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/AM)
Nome completo: Arthur Virgílio do Carmo Ribeiro Neto
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem à memória do ex-Senador Jefferson Péres.
Publicação
Publicação no DSF de 18/06/2008 - Página 20927
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, JEFFERSON PERES, SENADOR, ESTADO DO AMAZONAS (AM), ELOGIO, VIDA PUBLICA, DEPOIMENTO, PARCERIA, ORIENTAÇÃO, ORADOR, CAMPANHA ELEITORAL, OPOSIÇÃO, DITADURA, REGIME MILITAR, EVOLUÇÃO, PENSAMENTO, FUNÇÃO, ESTADO, IMPORTANCIA, ATUAÇÃO, COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO JUSTIÇA E CIDADANIA, COMISSÃO DE ASSUNTOS ECONOMICOS.

O SR. ARTHUR VIRGÍLIO (PSDB - AM. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Exmo. Sr. Presidente, Senador Alvaro Dias; Presidente Carlos Ayres Britto; Prefeito de Manaus, economista Serafim Fernandes Corrêa; Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas, Desembargador Hosannah Florêncio de Menezes; Senador Cristovam Buarque - e por ele homenageio os Parlamentares das duas Casas presentes neste evento; e por último, saudando as senhoras e os senhores presentes, eu me refiro à companheira de tantos anos do Senador Jefferson Péres: a Juíza, a Magistrada, Marlídice Peres.

Eu vejo figuras de enorme peso na vida do Estado e da região: Desembargador Lupercínio; Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Amazonas, Aristófanes de Castro Filho; Superintendente das Hidrovias na região Ocidental, Dr. Elpídio Gomes Filho; Jornalista Raimundo Moreira; e tantas figuras que se deslocaram de tão longe para homenagear um homem que merecia distâncias maiores a serem percorridas pelo tamanho de sua vida - aqui a Mesa já se referiu ao Deputado Ézio Ferreira, se referiu ao Deputado Marcelo Serafim; se referiu à Deputada Vanessa Grazziotin. Mas eu gostaria, meu querido Roger, de dar um depoimento muito particular. Como, aliás, foi singular o há pouco apresentado pelo Senador Cristovam Buarque.

Eu disputava eleição para deputado federal pela primeira vez em 1978. E, naquele momento de luta muito acirrada, ditadura de um lado e quem propunha a democracia de outro, um dia o Jefferson me chama à casa dele. Ali nos reunimos, eu, Marlídice, ele, o Adel Mamede, um amigo muito querido, já falecido, e o Jefferson me entregou um texto, que eu fiz virar um panfleto.

Depois de ter me dito que aquela luta que eu empreendia contra a ditadura tinha razão de ser - e era a própria razão de ser, era o que motivava, por exemplo, o jovem líder estudantil João Pedro a me emprestar o seu apoio -, ele dizia que era preciso mostrar os malefícios práticos que uma ditadura causa aos cidadãos. E aí, com frases muito curtas, muito precisas, como acontecia nos seus artigos publicados, há quase três décadas, no jornal A Crítica, de Manaus, ele me passou provas muito cabais de como a ditadura fazia mal aos cidadãos comuns: a concentração da renda, a dificuldade de crescer quando se era um pequeno empresário, as incertezas que pairavam e que vinham no rastro dos pacotes econômicos editados ao bel-prazer dos tecnocratas de Brasília, aquele desastre ecológico e de política energética que foi Balbina, soterrando jazidas minerais fantásticas, esmagando culturas e etnias indígenas, a irracionalidade da Transamazônica. Ou seja, era uma série de tópicos que diziam assim: una, em outras palavras, a sua metralhadora verbal contra a ditadura a fatos práticos, a fatos que vão fazer as pessoas perceberem que a ditadura não é má porque é apenas uma palavra antipática, mas que é má porque prejudica as pessoas, empobrece as pessoas, faz mal às pessoas. Eu transformei em panfleto e foi um panfleto de enorme êxito, de enorme utilidade, porque aceito pelo senso comum daqueles que não se sensibilizavam, porque, afinal de contas, não vivíamos um momento ruim. Do ponto de vista econômico, estávamos numa época em que dava para ditador ir ao Maracanã ouvir jogo com radinho de pilha no ouvido. Eu achava aquilo até estranho: tinha que ver e, ainda por cima, ouvir pelo radinho. Aquilo me parecia uma falta de ligação de parafuso. Ou vê o jogo ou ouve pelo radinho, mas as duas coisas juntas me causavam uma irritação maior ainda.

Mas o fato é que esse era o Jefferson. Era um homem com uma formação à Esquerda, para o que se convencionava chamar de Esquerda à época. E um dia, o tempo passa - o Jefferson não era ainda vereador à cidade de Manaus, pois se elegeu vereador à cidade de Manaus em chapa composta comigo, com o João Pedro, com a Vanessa, em 1988 -, O Jefferson ainda não era vereador - ou seja, ele teve uma premonição -, e eu leio um texto seu e penso comigo: “Que coisa intrigante! Que incoerência! Como eu disse tanta coisa estapafúrdia!” Eu tinha aquela cabeça chapada, a favor de manter monopólio, a favor de imaginar que o Estado resolvia todos os problemas e que a oportunidade para a iniciativa privada era nenhuma. Eu desconfiava da iniciativa privada, como se ela fosse capaz de trazer todos os males para o País. O Jefferson, àquela altura, já não tinha esse pensamento. Ele dizia que o Brasil precisava abrir sua economia. Eu dizia “meu Deus, o Jefferson virou entreguista!” Ele dizia que o Brasil precisava partir para diminuir o tamanho do Estado sem transformá-lo num Estado mínimo e sem medo de ser alcunhado do que quer que fosse. Eu não acreditava naquilo.

Então, eu o procurei e falei: “Jefferson, que contradição, que diferença entre o que eu penso e o que você pensa e que diferença entre o que a gente pensava quando você me ajudou na campanha de 78”. Aí ele me explicou com muita paciência, em termos que não me convenceram, mas que me convenceram da sua sinceridade. Tempos depois, eu passei a raciocinar no econômico, meu prezado Serafim Corrêa, exatamente como ele raciocinava no econômico, àquela altura, há tantos anos atrás.

Era, portanto, um homem culto, extremamente sagaz, porque, quando aqui reverenciamos a ética do Jefferson... E quero abrir um parêntese para dizer que nós somos um País até agora de indigitada história recente, porque nós precisamos saudar, com a ênfase com que o fazemos, a ética. A ética ficou alguma coisa meio rara no Brasil. Então, quando alguém é ético, esse alguém merece, a partir daí, todos os encômios, todos os elogios, quando o normal seria serem éticos, na sua maior parte, os que militam na vida pública do País, os que militam na vida empresarial do País, os que militam na vida profissional do País, e serem exceção, portanto, relegados ao opróbrio, aqueles que não procedem dessa forma.

Mas o Jefferson, culto, com uma orientação econômica que julgo adequada, moderna, contemporânea, do seu tempo, do tempo em que viveu até sua vida se extinguir daquele jeito tão lamentável, tão abrupto, o Jefferson era profundo conhecedor do Direito Constitucional. Pontificava na Comissão de Constituição e Justiça a ponto de muitos de nós, a começar por mim, nos orientarmos pelas suas posições, salvo quando o político entrava, quando dava para discordar. Mas quando se falava da questão técnica, envolvendo Direito, não dava para discordar, porque estava ali alguém que estudava cada relatório, que estudava cada palavra, que, esmiuçadamente, pensava sobre o que escrevia e pensava quase que escrevendo, com muito cuidado.

Era, portanto, uma figura muito relevante na Comissão de Assuntos Econômicos, extremamente importante, imprescindível ao funcionamento da Comissão de Justiça desta Casa.

O Cristovam disse bem que o Jefferson usava sempre esta tribuna, esta que todos nós usamos. Talvez por uma questão de geografia, nós que sentamos para cá usamos esta tribuna. Graças a Deus, o Brasil é uma democracia, pois, no tempo em que não o era, a tribuna que eu usava era a de lá e o pessoal que sustentava o Regime usava a de cá. 

Hoje não, hoje é geográfico mesmo, quem senta para cá usa esta e quem senta do lado de lá usa a tribuna de lá. Mas o fato é que daqui o Jefferson proferiu palavra muito sábias e muito corajosas, com sua coragem serena, com sua coragem sem arroubos, com a coragem do seu estilo, fleumático, britânico, jamais perdendo a calma, jamais perdendo a paciência, jamais transgredindo as regras do bom convívio, da boa educação parlamentar. O Jefferson era alguém que fazia parte como consciência crítica desta Casa e como ator fundamental nas decisões que aqui tomávamos, presença marcada pela cadeira onde está seu filho Ronald. A minha cadeira normalmente seria esta, eu pouco a usava por causa da mobilidade que dão as cadeiras do lado de fora, enfim.

Mas todas as vezes que o Jefferson falava, as pessoas o ouviam, porque dificilmente saía um non sense dali, não saía non sense dali nunca. Dificilmente, ao contrário, não saía algo sábio, algo a ser meditado, a ser ponderado, algo a ser escutado, a ser ouvido. Dali saíam soluções que ajudava a por fim a impasses que a refrega natural do plenário sugeria; a impasses que dúvidas sobre a constituição de direito sugeria.

E, se falamos da ética, eu diria que o Jefferson foi um homem que cumpriu estritamente com o seu dever, aceitando missões espinhosas - tenho certeza de que sofrendo com elas -, mas cumprindo à risca com aquilo que via nos autos dos processos que lhe chegavam às mãos.

O Senador Jefferson Péres, que todos nós conhecíamos e que o Brasil conhecia e reverenciava - e sabíamos disso -, me surpreendeu muitas vezes. Surpreendeu-me sendo muitos. Surpreendeu-me sendo mais do que uma pessoa só.

Quem o via sisudo daquele jeito não sabia o que ele era na conversa mais íntima. E quem o via sisudo daquele jeito não o sabia. Certa vez, Marlídice, fomos você, minha mulher, eu e ele - não sei o que fazíamos, num domingo, aqui, logo que chegamos a Brasília; eu, de volta, e vocês, chegando a Brasília -, nós fomos a um clube. Passamos uma manhã de sol em algum lugar e, depois, fomos comer no Bar dos Pescadores ou Clube dos Pescadores, algo assim. Estava lá uma barulheira danada. Tinha uma comida sofrível. Uma barulheira danada. E tocou uma música. E a música era Manhattan, de que ele gostava muito. Ele pega a Marlídice e sai rodopiando pelo salão. E eu não supunha que o Jefferson dançasse, porque não me sugeria que dançasse. Eu já o conhecia há tanto tempo, mas foi surpresa. E dançar bem foi uma surpresa maior ainda. E gostar dessa coisa alegre que era o convívio tão fraterno que eu via com a Marlídice. Achei bom não ter vindo no mesmo avião, porque era uma dupla. Era um time, era uma dupla. Estavam sempre juntos.

O Jefferson, que era muitos, era uma conversa agradabilíssima quando se falava de música, quando se falada de literatura, quando se falava de política internacional, quando se falava de vida. Sempre tinha uma palavra boa para dizer, uma palavra sensata para dizer, muitas vezes até em relação a mim próprio, moderando certos ímpetos que já percebi que irão comigo ao túmulo. E não adianta, a esta altura, tentar torcer os fatos. Mas sempre moderando, sempre dizendo algumas coisas que eram aproveitadas imediatamente pelo bom senso que lá se encerrava.

Gostaria, Marlídice, de pedir ao Senador Alvaro Dias, meu prezado Ministro Ayres Britto, que nós aqui quebrássemos o protocolo, que é rígido. Falam Senadores que homenageiam o Senador Jefferson Péres. Mas queria pedir ao Senador Alvaro Dias que quebrasse o protocolo, porque eu falava do tamanho do Jefferson.

Eu gostaria de dizer que eu próprio me surpreendi quando acordado... Minha mulher me acorda me sacudindo, que o Jefferson havia falecido. Eu, que estava longe de acordar - tinha dormido tarde; não tinha dormido cedo -, imaginei que era um sonho, que era um pesadelo, enfim. E custei alguns minutos a racionar com aquela verdade.

Imediatamente, começaram a telefonar rádios do Amazonas, do Brasil; e, num clima de muita consternação, jornais e a mídia da Internet, televisões. Eu fui vendo que não só era uma absoluta e irrecorrível verdade o que havia acontecido como eu percebera e percebia o peso daquela ausência, o peso da falta que fará ao País e que faz ao Senado uma figura tão marcante que, ao mesmo tempo, sugeria tanta discrição.

Em Manaus, tomou-se, na cidade, sua população de uma comoção muito própria, daqueles que percebem a diferença entre a morte e uma certa morte na vida pública.

Houve uma homenagem ao Senador Jefferson Péres que, por mim, teria sido menos oficializada do que foi, Deputado Marcelo Serafim, por mim teria sido menos oficializada do que foi, menos organizada do que foi.

Nós vimos cenas das quais eu próprio desgostei, mas eu percebi muito o povo, percebi o povo nas ruas, o que foi ao cemitério, em número expressivo. E percebi o povo nas ruas, nas janelas, aplaudindo - foi esse o clima -, aplaudindo a vida, ao mesmo tempo em que lamentava a morte. Percebi o tamanho do Jefferson, definitivo, ali. E mais: o tamanho que vai ficar, porque entra para a história.

Aqui ouço sugestões: vamos dar o nome do Jefferson para aquilo, vamos fazer para aquilo. Sou a favor de tudo isso. Mas sou a favor mais de que nós pensemos menos em dar nome para cá ou para acolá: em fazer o que ele fazia, em sermos implacáveis com esse delito monstruoso para a vida das pessoas do País, que é a corrupção; sermos implacáveis com o desvio de recurso público onde quer que se dê o desvio de recurso público. Essa é a forma. Senão, fica fácil dar nome de rua, dar nome de escola, dar nome de sala, dar nome de não sei mais o quê, e parece que as consciências se limpam. E as consciências só se limpam se elas forem limpas, se as vidas que sustentam aquelas consciências forem vidas limpas. E é o que a política brasileira precisa para se impor outra vez ao respeito da Nação.

É por isso que, procurando fazer um discurso muito contido, até porque não gosto da figura do necrológio, não gosto. Ele, para mim, tem duas hipóteses: ou é alguém que não me toca, e eu faço um discurso qualquer. Aí, eu pergunto: para que fazer um discurso qualquer? Ou é alguém que me toca, e a emoção não faz bem.

Mas eu queria quebrar o protocolo e pedir que, na parte que possa me restar para a conclusão desta fala, desta homenagem ao Jefferson Péres, ao nosso Senador Jefferson Péres, àquela figura tão querida, para quem eu mandava meus bilhetes - nos meus bilhetes, eu me tratava de AV e o chamava de JP -, eu queria pedir ao seu filho Roger que relesse o texto da missa de sétimo dia, que me tocou profundamente.

Muito obrigado. (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/06/2008 - Página 20927