Discurso durante a 113ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Transcurso, hoje, do Dia Internacional de Combate à Tortura e Apoio às Vítimas, instituído pelas Nações Unidas há 31 anos.

Autor
José Nery (PSOL - Partido Socialismo e Liberdade/PA)
Nome completo: José Nery Azevedo
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DIREITOS HUMANOS.:
  • Transcurso, hoje, do Dia Internacional de Combate à Tortura e Apoio às Vítimas, instituído pelas Nações Unidas há 31 anos.
Publicação
Publicação no DSF de 27/06/2008 - Página 23833
Assunto
Outros > DIREITOS HUMANOS.
Indexação
  • REGISTRO, DIA INTERNACIONAL, COMBATE, TORTURA, APOIO, VITIMA, ANTERIORIDADE, CRIAÇÃO, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), DATA, VIGENCIA, CONVENÇÃO INTERNACIONAL, ASSUNTO, RATIFICAÇÃO, BRASIL, LEITURA, ARTIGO, DEFINIÇÃO, CRIME.
  • GRAVIDADE, DESRESPEITO, DIREITOS HUMANOS, BRASIL, OCORRENCIA, TORTURA, DELEGACIA, PRESIDIO, MAIORIA, VITIMA, CIDADÃO, BAIXA RENDA, NEGRO, FALTA, ASSISTENCIA, ESTADO.
  • RECLAMAÇÃO, AUSENCIA, JULGAMENTO, VIOLAÇÃO, DIREITOS HUMANOS, PERIODO, DITADURA, REGIME MILITAR, CRITICA, ALEGAÇÕES, COBERTURA, LEI DE ANISTIA.
  • APOIO, DECISÃO, MINISTERIO PUBLICO FEDERAL, ABERTURA, INQUERITO, ACUSAÇÃO, AUTORIDADE, REGIME MILITAR, HOMICIDIO, SEQUESTRO, ESTRANGEIRO, COBRANÇA, ORADOR, PUNIÇÃO, CRIME INAFIANÇAVEL, IMPRESCRITIBILIDADE, TORTURA, COMENTARIO, ARTIGO DE IMPRENSA, PERIODICO, CARTA CAPITAL, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), CONTRIBUIÇÃO, DENUNCIA, IMPUNIDADE.
  • ANUNCIO, ESCLARECIMENTOS, ARTIGO DE IMPRENSA, PERIODICO, EPOCA, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), ENTREVISTA, CORONEL, REU, ACUSAÇÃO, TORTURA, ALEGAÇÕES, CONCLAMAÇÃO, ROMEU TUMA, SENADOR, TESTEMUNHA DA DEFESA.

O SR. JOSÉ NERY (PSOL - PA. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Senador Paulo Paim, Srªs Senadoras, Srs. Senadores, hoje, 26 de junho, é o Dia Internacional de Combate à Tortura e Apoio às Vítimas, instituído pelas Nações Unidas há exatos 31 anos. Nesta data, em 1987, entrou em vigor a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Poucos anos depois, em 28 de setembro de 1989, em um importante passo da sociedade e do povo brasileiro, o Brasil ratificou essa convenção, inserindo em nosso ordenamento jurídico os postulados constantes naquele protocolo internacional.

Em seu art. 1º, essa convenção conceitua tortura como:

[...] qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido, ou seja, suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência.

Salta aos olhos como nosso País ainda está distante de fazer valer, na prática, esses princípios elementares dos direitos humanos, tão vilipendiados de norte a sul do nosso imenso território continental.

A tortura, sob suas múltiplas formas, é uma realidade cotidiana nas delegacias e presídios, fazendo parte do modus operandi das forças policiais e está consagrada como método para se arrancar confissões ou, simplesmente, para se executarem castigos físicos como punição aos supostos delitos praticados, na maior parte dos casos por cidadãos pobres, negros e despossuídos de qualquer assistência do Estado. É o ritual de crueldade e vilania que, todas as semanas, enchem o noticiário da imprensa e que causam, paradoxalmente, muito menos escândalo do que efetivamente deveriam numa sociedade anestesiada pelo clima geral de insegurança, violência urbana e esgarçamento do tecido social.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a sociedade humana não nasceu para se render à barbárie. Por isso, nunca é demais reiterar a necessidade de se banir, de uma vez por todas, a tortura e qualquer tratamento desumano e degradante. Essa causa deve interessar a todos, independente de credo e de opção político-partidária. Deve ser uma bandeira a ser desfraldada por aqueles que jamais cogitam compactuar com a violência, a brutalidade, o crime e a impunidade, que sempre estão na base de todas as injustiças.

Quero aproveitar o ensejo para declarar que o Brasil possui um enorme passivo no tocante à questão da tortura e não somente em relação ao nosso passado, entranhado nos horríveis tempos do extermínio das nações indígenas e nos séculos da escravidão negra. Mas, também nas décadas recentes, durante a vigência da ditadura militar de 1964, uma enorme quantidade de crimes permanecem impunes, e, em praticamente todos, lá está a nódoa indelével da tortura cometida de forma sistemática e brutal contra centenas de presos políticos.

Enquanto a grande maioria dos países da América Latina, notadamente o Chile e a Argentina, que tanto sofreram sob as garras de regimes sanguinários, deram passos firmes em busca de se fazer justiça, reabrindo dezenas de processos por violação aos direitos humanos, o Brasil permanece na incômoda posição de atribuir a esses delitos a falsa cobertura jurídica de uma Lei de Anistia, editada em 1979, e que não deve, sob nenhum pretexto, servir ao propósito de cobrir com o manto da impunidade as atrocidades cometidas por agentes do Estado.

Nesse contexto, faço questão de registrar e expressar meu mais firme aplauso à recente decisão do Ministério Público Federal, que ajuizou na última segunda-feira, 23 de junho, representações em São Paulo, no Rio e em Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, pedindo a abertura de inquérito contra ex-autoridades do regime militar acusadas de assassinato e seqüestro de diversos cidadãos estrangeiros. Duas dessas ações estão relacionadas a delitos ocorridos durante a famigerada Operação Condor - o esquema de repressão política entre ditaduras da América do Sul na década de 70. O procedimento corajoso dos Procuradores da República, se aceito pela Justiça, representará um precedente fundamental para que, finalmente, possam responder por seus crimes vários militares e civis, até agora protegidos por um silêncio cúmplice que envergonha a Nação brasileira.

É inadmissível que os torturadores e assassinos de ontem, cujas mãos ainda permanecem manchadas com o sangue de tantos patriotas covardemente aniquilados nos porões do DOI-Codi e outros centros clandestinos de tortura e extermínio continuem a circular livremente, ocupando cargos públicos inclusive, em um vergonhoso escárnio à memória de suas vítimas. A reportagem de capa da revista Carta Capital, número 501, que está nas bancas, traz uma inestimável contribuição a este debate. Lá, por exemplo, pode-se ler, não sem espanto, as declarações do delegado Dirceu Gravina, lotado na delegacia de Presidente Prudente, São Paulo, que na época da ditadura era conhecido pelo codinome JC e é apontado como responsável direto pela execução de inúmeros presos políticos, sempre sob tortura e com requintes de crueldade. Contra ele pesa, entre outras, a acusação de ser autor da morte de Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, em 21 de maio de 1971, além do fuzilamento, no ano seguinte, dos estudantes Alexander José Ibsen Voerões e Lauriberto José Reyes, ambos militantes do Movimento de Libertação Popular (Molipo).

Diz o ex-torturador:

Se fiz alguma coisa errada no passado, peço desculpas. Eu apenas cumpria ordens. Fui mandado. Querem pegar 30 ou 40 pessoas agora. Mas e os grandões? Os donos da vida, os donos do poder, os que detêm a informação?

É revoltante ver que hoje, passados tantos anos, o máximo que esses criminosos conseguem alegar é que agiam sob ordens de seus superiores. Uma espécie de “obediência devida” que prosperou na Argentina durante muitos anos, mas que foi, em bom momento, desconstruída pelo Judiciário daquele país. Que não prospere entre nós tamanha aberração jurídica!

Os crimes praticados pelos torturadores, de todos os tempos e latitudes, devem sempre ser considerados como de lesa-humanidade, imprescritíveis e inafiançáveis. Só assim poderemos abrir as grandes alamedas, como dizia o saudoso presidente chileno Salvador Allende, por onde possa transitar o homem livre de todas as formas de exploração e opressão.

Sr. Presidente, Srs. Senadores, ao elaborar este pronunciamento, não poderia imaginar que este coincidiria com uma denúncia constante do site da revista Época, publicada hoje, envolvendo o ex-comandante do DOI-Codi paulista, o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que é acusado de vários crimes de tortura e de violação dos direitos humanos. Conforme a reportagem, o Coronel Ustra diz que, no processo movido pelo Ministério Público, pretende arrolar como testemunhas vários dos atuais comandantes militares e que, inclusive, invocará em sua defesa o testemunho do nosso colega Senador Romeu Tuma.

Não quero atribuir à matéria qualquer sentido conclusivo. O Sr. Presidente Paulo Paim e eu, ao final da reunião de que participamos há pouco na Comissão de Direitos Humanos, fomos procurados e informados pela imprensa da publicação dessa matéria. Diante de sua gravidade, tomamos a decisão de só nos pronunciarmos sobre seu mérito, sobre o mérito desse texto publicado no site da revista Época, após ouvirmos o Senador Romeu Tuma.

Nesse sentido, tomei a iniciativa de telefonar ao Senador Romeu Tuma, que se encontra no exterior participando de uma reunião do Parlamento do Mercosul. Ao tratar com ele, falei dessa reportagem, e combinamos que faremos os esclarecimentos necessários. Ele me disse de sua absoluta tranqüilidade em relação a esses fatos e que teremos os esclarecimentos quando de seu retorno ao Brasil, na próxima segunda-feira.

Sr. Presidente, faço questão de fazer este registro, porque a matéria está no site da revista, o que é do conhecimento de todos, e porque falo no dia de hoje sobre o Dia Internacional do Combate à Tortura e Apoio às Vítimas. Como a matéria se relaciona ao tema por mim abordado, faço o registro para que, no momento oportuno, possamos ter todos os esclarecimentos necessários, esclarecimentos que caminham sempre na direção da luta que travamos para que os crimes cometidos durante a ditadura militar sejam apurados.

Esses crimes não podem ser perdoados. Se assim fizermos, estaremos corroborando com o manto de impunidade que reina em nosso País. Por isso, esperamos e trabalhamos para que todos os crimes cometidos naquele período sejam apurados. E mais: precisamos avançar na luta para coibir e punir os atuais torturadores, que estão nas cadeias e nos presídios públicos a intimidar, de forma desumana e degradante, em busca de depoimentos e confissões, atuando, muitas vezes, de forma ilegal e desumana.

Este é o nosso pronunciamento, Sr. Presidente, no dia em que precisamos reavivar, reafirmar a nossa luta em defesa dos direitos humanos e o combate sem tréguas a todo tipo de tortura e a todo tipo de atitude que vá nessa direção, especialmente daqueles que são agentes do Estado e que devem, por obrigação, render-se aos princípios constitucionais e às normas e convenções de que o Brasil é signatário.

Muito obrigado, Sr. Presidente.

O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco/PT - RS) - Senador José Nery, permita que eu me some ao seu pronunciamento. V. Exª teria ainda direito a sete minutos nesta oportunidade em que faz pronunciamento firme e convicto no Dia de Combate à Tortura e Apoio às Vítimas.

Eu avalizo o seu pronunciamento e, ao mesmo tempo, digo que nós estávamos, os três - o Senador Geraldo Mesquita Júnior, V. Exª e eu -, na Comissão de Direitos Humanos hoje pela manhã, discutindo o PL nº 91, projeto de minha autoria - V. Exª será o relator - que vai regulamentar a situação dos motoristas de caminhão, de táxi, de ônibus, enfim de todos aqueles que são profissionais do volante. Terminada a audiência, que foi excelente, nós fomos procurados por uma jornalista, que comentou uma matéria que vai sair no final de semana na revista Época, trazendo a denúncia de um torturador envolvendo um Senador - e não é força de expressão, não.

Eu adotei o mesmo procedimento de V. Exª, mas V. Exª foi mais feliz: conseguiu falar com o Senador Romeu Tuma no exterior. Eu tentei, mas como ele está fora, ficaram de dar o retorno. Acho que, em uma questão como essa, pela gravidade da matéria, não faria nenhum prejulgamento, inclusive não seria adequado quando se refere à história, à vida de um Senador desta Casa.

De imediato, prontifiquei-me a conversar com o Senador Romeu Tuma antes de tomar qualquer posição pública diante do fato. Entendo que essa é a mesma posição que tomou V. Exª, pois todo o cuidado é pouco, já que hoje em dia, infelizmente, neste País, é fácil jogar lama sobre uma ou outra pessoa sem ter as devidas provas do que realmente aconteceu.

Por isso, meus cumprimentos pela postura e pela clareza como V. Exª faz esse debate, exigindo punição severa e dura sobre todos aqueles que se envolveram na tortura, e, conseqüentemente, a nossa posição de apóio neste Dia Internacional de Combate à Tortura e Apoio às Vítimas.

O SR. JOSÉ NERY (PSOL - PA) - Sr. Presidente, permita ainda só reafirmar que, em episódios como esses, principalmente no caso específico, em que se tenta envolver o Senador Romeu Tuma, não poderíamos agir de outra forma. Não se poderia dar por conclusiva a opinião expressada por alguém que não tem nenhum compromisso com a lei, com a legalidade, porque envolvido em crimes de tortura, denunciado, inclusive, no livro Tortura Nunca Mais, do Projeto Tortura Nunca Mais. O brilhante coronel Ustra, que lá tinha o codinome de Ubirajara, parece-me, é acusado de muito crimes.

Portanto, na eventualidade de querer se livrar dessas acusações, pode envolver outras pessoas. Não vamos cair nessa armadilha. Vamos obter todas as informações, todos os esclarecimentos para, a partir daí, se providências tiverem que ser tomadas, com certeza, nenhum de nós nesta Casa vai corroborar com qualquer tipo de ilegalidade, especialmente em se tratando de uma situação degradante, que envolve o direito e o respeito aos direitos humanos e os crimes de tortura, que devem ser inafiançáveis e que, portanto, merecem toda a nossa repulsa.

Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 27/06/2008 - Página 23833