Discurso durante a 22ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Reflexão, a partir de visita feita por S.Exa. a um centro de recuperação de jovens infratores, sobre as vítimas que o Brasil tem hoje, propondo que o Senado tente encontrar como transformar o País em uma nação efetivamente de todos.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • Reflexão, a partir de visita feita por S.Exa. a um centro de recuperação de jovens infratores, sobre as vítimas que o Brasil tem hoje, propondo que o Senado tente encontrar como transformar o País em uma nação efetivamente de todos.
Publicação
Publicação no DSF de 11/03/2009 - Página 4310
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • VISITA, ORADOR, INSTITUIÇÃO PUBLICA, RECUPERAÇÃO, DELINQUENCIA JUVENIL, DISTRITO FEDERAL (DF), ELOGIO, QUALIDADE, TRABALHO, GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL (GDF), ENSINO PROFISSIONAL, GRAVIDADE, INFORMAÇÃO, ESTATISTICA, SUPERIORIDADE, EGRESSO, MORTE, RETORNO, CRIME, DECLARAÇÃO, JUVENTUDE, HOMENAGEM, CRIMINOSO, COMANDO, CRIME ORGANIZADO, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), AVALIAÇÃO, DIRETOR, SITUAÇÃO, DESEMPREGO, FAMILIA, ALCOOLISMO.
  • AVALIAÇÃO, ORDEM SOCIAL, BRASIL, PRODUÇÃO, VITIMA, SITUAÇÃO, FALTA, ALTERNATIVA, VIDA, CONCLAMAÇÃO, RESPONSABILIDADE, TOTAL, POPULAÇÃO.
  • CRITICA, OMISSÃO, BRASILEIROS, DESIGUALDADE SOCIAL, ESPECIFICAÇÃO, VITIMA, CRIANÇA, CONCLAMAÇÃO, SENADO, DEBATE, PROBLEMA.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Srª Presidente, Srªs e Srs. Senadores, neste último sábado, Srª Presidente, fiz uma visita ao Ciago, Centro de Internação de Adolescentes Granja das Oliveiras, aqui no Distrito Federal. É um centro de recuperação de jovens adolescentes, Senadores Paulo Paim, Jarbas Vasconcellos e Collor de Mello, que cuida de jovens infratores, 144 jovens, e vem sendo um trabalho do Governo do Distrito Federal de extrema qualidade, de um cuidado excepcional, de um acompanhamento cuidadoso.

Mas eu tive duas surpresas além da surpresa positiva que foi a qualidade que a gente viu. As outras duas surpresas vieram quando eu perguntei ao diretor: “Quem são os heróis desses jovens?”. Ele me disse: “Fernandinho Beira-Mar”. Eu disse: “Não, estou falando sério”. Ele disse: “E eu também”.

A segunda foi quando perguntei o que acontecia com esses jovens quando saiam da instituição, Senador Augusto. Eles disseram: “Em dois anos, estão mortos ou outra vez na bandidagem, salvo raras exceções”. Eu disse: “Mas eles não saem bem daqui?” Ele disse: “Saem muito bem daqui, inclusive com ofício”. “E o que acontece?” “Chegam em casa, encontram os pais desempregados, provavelmente alcoólatras, não conseguem emprego apesar do ofício, as amizades todas são ligadas à falta de perspectiva ou mesmo ao crime, não têm futuro”. Ele disse que não passam de 4% os que, de fato, são recuperados permanentemente, ou seja, a culpa nem está na instituição, a culpa está no mundo, em nosso País.

Aí eu me lembrei das vítimas que o Brasil tem hoje. Lembrei-me dessa menina de nove anos do meu Estado, Pernambuco, que sofreu as violências que sofreu por parte do pai adotivo. Essa menina é uma vítima gritante - digamos com a palavra certa - de uma realidade degenerada que caracteriza a sociedade brasileira.

Mas não só ela foi vítima: a irmã também foi vítima das mesmas violências, apenas não ficou grávida, não precisou fazer um aborto, mas vai conviver com traumas psicológicos que, se não são iguais, são quase iguais aos dessa menina.

Mas vamos continuar analisando quem são as vítimas.

A mãe é uma vítima, todos os parentes, amigos e vizinhos são vítimas dessa realidade.

Mas não paremos aí. O bispo, que a meu ver cometeu um equívoco do ponto de vista da visão humanista, é uma vítima também, é uma vítima de uma legislação canônica que se choca com o sentimento humanista que nós temos.

E vamos falar com franqueza: o bandido, o canalha que fez isso, não deixa de ser também uma vítima dessa sociedade. Longe de mim desculpá-lo - comecei chamando-o de bandido -, mas ele não deixa de ser uma vítima de uma realidade que o condena: provavelmente sem qualquer perspectiva de vida, rodeado de um processo de degeneração que a gente vive, terminou cometendo aquele absurdo crime com a sua filha adotiva.

A gente não para aí: os médicos terminaram sendo vítimas. Fizeram o certo a meu ver, digo com toda convicção, mas, como católicos, foram vítimas por sofrerem aquilo que, alguns anos atrás ou algumas décadas atrás, era o pior que podia acontecer a uma pessoa: a excomunhão.

Nós somos um país de vítimas. Todos os dias há assaltos nas ruas, nas esquinas deste País, todos os dias há sequestros neste País.

A primeira vítima, obviamente, é o sequestrado, é o assaltado, é o assassinado. São as vítimas mais importantes, com as quais a gente deve ter a maior de todas as solidariedades. Mas falemos com franqueza, mesmo correndo o risco da má interpretação: uma grande parte dos que sequestram neste País, dos que matam neste País, dos jovens deste País que cometem esses crimes, não deixa de ser vítima também de um processo, de um sistema, de uma degeneração que a gente vive numa sociedade que perdeu os laços de solidariedade, que perdeu a capacidade de incluir a todos, uma sociedade que tem vítimas de um lado e de outro.

Quando qualquer um de nós é assaltado numa esquina, a primeira idéia que vem é a de que nós somos vítimas - e somos -, mas vá olhar a história de cada um dos assaltantes: você vai ver que, lá atrás, são vítimas também. São vítimas de quatro séculos de escravidão; são vítimas de um país que se industrializou sem fazer a reforma agrária e, por causa disso, expulsou a população rural para as cidades, onde não haveria emprego para todos. São vítimas.

Este é um país de vítimas, Senadora Serys. Nós somos vítimas de uma realidade, e todos nós somos culpados por essa realidade existir. Somos vítimas e algozes, sequestradores e vítimas, sequestrados e culpados.

Vivemos uma realidade que não nos permite mais diferenciar com nitidez - falemos com toda franqueza - quem é e quem não é verdadeiramente culpado. Esta é uma sociedade em que ninguém pode dizer: “Eu não sou culpado do que acontece ao meu redor”.

Aquelas crianças que recebem um bom serviço do Governo do Distrito Federal, mas que vão sair dali e voltar ao crime ou morrer em poucos meses, são algozes - alguns cometeram crimes de assassinato -, mas são vítimas também porque foram levados a isso, e serão vítimas de novo porque serão outra vez obrigados a fazer esses gestos ou serem mortos antes.

Nós somos um país de vítimas. Nós somos um país vítima; um país vítima de uma corrupção, como o Senador Jarbas denunciou aqui, espalhada, generalizada, que faz parte da paisagem como ele disse.

Nós somos vítimas de um Produto Interno Bruto que, segundo os dados de hoje, caiu 3,5% em relação ao ano passado. Mas nós somos vítimas e somos culpados também por não tomarmos as medidas corretas no momento certo. Nós somos vítimas e somos algozes.

E a realidade por trás disso qual é? É que nós não fomos capazes de transformar um país em uma nação, um país que recebemos dos índios que aqui estavam, dos africanos que para cá vieram, dos portugueses que o colonizaram, não fomos capazes de transformar esse país em uma nação de todos. Continuamos divididos quase como antes. Não são mais portugueses, negros e índios, mas são, ainda assim, brancos, negros e índios; pobres e ricos; moradores de cidades e moradores do campo; moradores de condomínios ou de favelas.

Estamos separados, como se fôssemos um país dividido por cortinas, onde quem está de um lado não se sente solidário a quem está do outro; quem está de um lado ruim é vítima dos que estão do lado bom, e esses do lado bom são vítimas daquele que está do lado ruim quando essa pessoa atravessa essa fronteira imaginária e o ameaça. É disso que somos vítimas.

Agora decidiram fazer de vítimas o MST, os sem-terra, esquecendo que não ter terra é uma situação de vítima - com se não fosse uma violência, em um país de 8,5 milhões de km², uma pessoa não ter direito a um pedacinho de terra onde trabalhar. Ao mesmo tempo, não há dúvida, há, sim, pessoas neste País vítimas de ações de sem-terra. São vítimas os que têm suas terras invadidas, mas esquecemos que são vítimas também aqueles que invadiram essa terra.

Precisamos chegar e dizer: “Vamos parar de ser um país vítima”. Nem disse um país de vítimas, disse que deveríamos parar de ser um país vítima quebrando as causas que nos tornam, de um lado ou de outro, agentes dessa situação de vítima, dessa situação de calamidade que atravessamos.

Srª Presidenta, eu fui fazer uma visita aos meninos chamados de menores. No Brasil existem meninos e existem menores; este é um país onde, para você dizer criança - eu já listei -, há pelos menos 27 diferentes palavras. Em qualquer lugar do mundo, criança é criança, mas aqui não. Aqui, dependendo da situação onde ela está, pode ser menino de rua, menino na rua, prostituta infantil, moleque, uma quantidade grande de expressões, cada uma com uma sutileza, cada uma com uma diferença, com uma especificidade. Criança no Brasil não é criança, é uma das diferentes formas que permite você definir quem é criança. Essas talvez sejam as maiores vítimas. Mas ao mesmo tempo em que as crianças são as vítimas, termino dizendo que a maior de todas as vítimas, por causa de fazermos vítimas as crianças, é o futuro do nosso País. O futuro do nosso País é vítima por fazermos com que as vítimas sejam as crianças; como essa menina de Pernambuco, como os meninos que eu vi na granja e como tantos outros que foram meninos e hoje cometem os crimes.

Este Senado deveria se debruçar um pouco, talvez criar o dia das vítimas, o dia do Brasil vítima, e tentarmos transformar um País em uma Nação de todos não no slogan político, não no slogan publicitário de um governo, mas na realidade social. Fazer do Brasil, de fato, um País de todos.


Modelo1 4/20/2410:12



Este texto não substitui o publicado no DSF de 11/03/2009 - Página 4310