Discurso durante a 60ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Reflexão sobre a questão da corrupção nas prioridades das políticas públicas.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA NACIONAL.:
  • Reflexão sobre a questão da corrupção nas prioridades das políticas públicas.
Aparteantes
Roberto Cavalcanti.
Publicação
Publicação no DSF de 29/04/2009 - Página 13395
Assunto
Outros > POLITICA NACIONAL.
Indexação
  • DENUNCIA, CORRUPÇÃO, PRIORIDADE, POLITICA, GOVERNO, NEGLIGENCIA, PROBLEMAS BRASILEIROS, ESPECIFICAÇÃO, ANALFABETISMO, ADULTO, DESISTENCIA, FREQUENCIA ESCOLAR, CRIANÇA, PERDA, QUALIDADE, ESCOLA PUBLICA, FALTA, ATENDIMENTO, SAUDE PUBLICA, AUSENCIA, HABITAÇÃO.
  • PROTESTO, CORRUPÇÃO, CONGRESSO NACIONAL, PERDA, PRIORIDADE, EXERCICIO, FUNÇÃO LEGISLATIVA.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srs. Senadores, nesses últimos meses, o que mais ouvimos falar é de corrupção, e vou falar disso também. Mas venho falar de uma corrupção que a gente não vê nos jornais, uma corrupção subterrânea, discreta e que deveria preocupar tanto - não digo mais, mas tanto - quanto essa que sai todos os dias nos jornais.

Venho falar, por exemplo, Senador Gilvam, da corrupção de este País ter mais de catorze milhões de analfabetos adultos. Isso é uma corrupção, isso é uma corrupção nas prioridades deste País ao longo de décadas e séculos, porque a corrupção não é apenas a corrupção do comportamento dos políticos. Há também uma corrupção nas políticas públicas.

Hoje, o Senador Roberto Cavalcanti perguntou ao Ministro quanto custaria e em quanto tempo seria possível erradicar o analfabetismo. Fiz as contas rapidamente, e o Senador Crivella ratificou que, quando eu estava no Ministério, a gente começou a fazer isso. Hoje, Senador, com R$500 milhões por ano, em quatro anos, a gente erradicaria o analfabetismo. Quinhentos milhões em quatro anos! E gerando emprego para sessenta mil alfabetizadores, jovens que estão desempregados e perdidos. E esse custo incluiria não apenas pagar os alfabetizadores, mas pagar também R$100,00 a cada analfabeto no dia em que ele mostrasse que aprendeu a ler. Não falo de teoria. O Governo do Distrito Federal, de 1995 a 1998, fez esse projeto aqui. Não erradicou, porque esquecemos de colocar a meta clara de erradicação. A gente evolui com o tempo. Essa é uma corrupção que a gente precisa assumir, todos os brasileiros, não só os políticos. Nós temos uma corrupção gritante nas prioridades, manifestada nos 14,2 milhões de analfabetos adultos que nós temos.

Nós temos a corrupção também de termos, além desses 14 milhões, mais 30 milhões que aprenderam o bê-á-bá, que são capazes de soletrar, mas, se a gente lhes der um texto, eles não conseguem entender o que está escrito.

Um país que tem R$2 trilhões de renda nacional, que tem mais de R$8 mil de renda per capita, que tem 4,5 milhões de universitários, ter ainda 30 milhões de adultos analfabetos funcionais é, sim, um país em plena corrupção, corrupção nas prioridades, de que a gente esquece de falar, que a gente não vê a mídia denunciar com vigor como um crime que a gente comete.

A Comissão de Direitos Humanos fará uma audiência, na próxima semana, sobre a idéia de que o analfabetismo é uma falta de direitos humanos. O analfabeto é um homem ou uma mulher torturado ou torturada diariamente, e a tortura é uma forma de corrupção.

Nós temos a corrupção, talvez ainda mais grave do que essa, Senador Gilvam, de termos, a cada minuto, sessenta crianças saindo da escola no Brasil. Não 60 minutos em 24 horas, não 60 minutos de 365 dias, mas 60 minutos letivos, 200 dias por ano, quatro horas por dia. Como devo estar aqui a uns três minutos, já são 180 crianças fora da escola.

A diferença entre o número de crianças que entram na primeira série e o número de crianças que saem dividida pelo número de minutos dá sessenta crianças. Essa é uma corrupção.

Poucos sabem, mas todos nos revoltamos com a ideia de que, durante os 350 anos da escravidão, cerca de 400 mil escravos, 10% dos quatro milhões que para cá vieram, foram jogados no mar, mortos. Isso a gente tem no Brasil, hoje, em apenas três meses, quando a gente considera que as crianças são jogadas fora da escola. A escola é o barco que leva para o futuro. O navio negreiro trazia os escravos da África para o Brasil; a escola leva as crianças para o futuro. Jogamos fora 400 mil africanos para o mar, nessas travessias, durante 350 anos, e jogamos esse número de crianças para fora da escola no Brasil em apenas três meses. Essa é uma corrupção.

Há uma corrupção das filas de pobres doentes - Senador Mão Santa, o senhor entende disso - esperando atendimento nos hospitais. É uma corrupção! Corrupção não é só roubar dinheiro público; corrupção é roubar os minutos de vida de uma pessoa porque não dá lhe é dado o atendimento médico devido em um país rico como o Brasil. O Brasil rouba tempo de vida das pessoas. O Brasil rouba tempo de vida das pessoas que poderiam ser salvas com o mínimo de atendimento médico. Isso é uma corrupção! E a gente esquece, concentrados todos nós nessa absurda vergonhosa corrupção no comportamento, a vergonhosa corrupção nas prioridades.

É uma corrupção, sim, um país como o Brasil ter 50 milhões de pessoas sem moradia digna. É uma corrupção! Esse dinheiro que seria para a construção de moradias foi para algum lugar, porque o Brasil tem esse dinheiro. Para onde foi esse dinheiro? Para muitos dos palácios. Só consideramos que os palácios públicos são objeto de corrupção quando alguém pega o dinheiro e põe no bolso. Mas mesmo que não se ponha o dinheiro da construção do palácio no bolso, se ele vai para o palácio público em vez de ir para água, esgoto e casa, é corrupção nas prioridades, não no comportamento. É corrupção, neste País, nós termos, como ouvi, na cidade de Saúde, do Prefeito, a notícia de que crianças com dois anos de idade recebem dos pais aguardente para esquecerem a fome. Isto seis anos depois de o Fome Zero entrar em funcionamento. Repito: seis anos depois de o Fome Zero estar em andamento, há crianças que recebem aguardente, cachaça, para esquecerem a fome. Isso é corrupção! É corrupção porque isso é o roubo do cérebro dessas crianças, e roubar um cérebro é uma forma de corrupção.

É corrupção, sim, neste País, termos apenas um terço das crianças jovens terminando o segundo grau. Deixar dois terços dos nossos jovens fora da escola antes da conclusão do segundo grau é uma corrupção, corrupção nas prioridades, porque isso ocorre pela falta de colocar os recursos necessários para que a escola seja boa, atraente, criativa, capaz de segurar esses jovens. O que expulsa as crianças e os jovens da escola, em parte, é a pobreza da família, que exige o trabalho, mas é sobretudo a pobreza da escola, que não segura essa criança, não segura esse jovem.

Nós temos uma corrupção grave denunciada hoje no jornal O Globo, mas sem dizer que é corrupção. O Globo denuncia que hoje, no Brasil, as crianças ficam três horas por dia, em média, na escola, mas esquece de dizer que essas três horas não são de aula, mas são, muitas vezes, de bagunça, de brincadeira, de desordem, e, mais do que isso, que essas três horas são a média, mas que uma parte imensa, mais da metade da população de crianças brasileiras não fica na escola mais que duas horas, porque, depois de duas horas, após a merenda, as crianças vão para casa. É uma corrupção termos transformado as escolas do Brasil em simples restaurantes-mirins, para onde as crianças vão pela fome, para comer, e não para estudar e ganhar o futuro.

Dessa corrupção, a gente não ouve falar todos os dias, mas essa corrupção é, no mínimo, tão grave quanto a outra corrupção, que aparece todos os dias. Essa não aparece, e, quando aparece, não recebe o nome de corrupção. Recebe um nome sem marca, sem força: prioridades, uma denúncia simples, uma simples notícia, não a denúncia, não a manifestação clara de que isso é corrupção, corrupção nas prioridades. E não é corrupção de cada um daqui, mas a corrupção do conjunto da sociedade brasileira.

E não é a corrupção de hoje, mas a corrupção de uma história inteira de uma população governada por uma elite que define de forma errada as prioridades, que mantém uma...

(Interrupção do som.)

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - ...que mantém uma permanente corrupção nas prioridades. Nós temos falado muito da corrupção no comportamento dos políticos; está na hora de falarmos também da corrupção nas prioridades das políticas.

O Sr. Roberto Cavalcanti (Bloco/PRB - PB) - Senador...

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Eu quero, antes, passar a palavra ao Senador Roberto Cavalcanti, que muito me estimula pela nossa velha amizade ao dar o aparte.

O Sr. Roberto Cavalcanti (Bloco/PRB - PB) - Senador Cristovam, V.Exª sabe do carinho e da amizade que nós dois temos, fruto de uma convivência de 40 anos. Isso é comprometedor, mas é verdadeiro. V. Exª, para minha honra, para meu privilégio, foi meu professor, e não só meu, mas também do Senador Sérgio Guerra, pois, coincidentemente, estudávamos na...

(Interrupção do som.)

O Sr. Roberto Cavalcanti (Bloco/PRB - PB) - ... mesma turma na Universidade de Economia, em Pernambuco, Recife. Hoje, pela manhã, tive a oportunidade de estar sentado próximo a V. Exª para discutirmos exatamente esse tema, que é uma marca registrada de V. Exª, mas não só de V. Exª Tudo que se lê no mundo sobre desenvolvimento de país, sobre desenvolvimento de sociedade, sobre desenvolvimento empresarial, há um consenso, há uma unanimidade de que tudo, tudo, tudo, qualquer país, qualquer entidade, qualquer projeto tem que ser fundamentado na educação. Há uma unanimidade. Eu sou uma pessoa nascida exatamente no pós-guerra. Eu era garoto e assistia à Guerra da Coreia, e, na minha família, dizia-se que não se podia deixar nada no prato porque as crianças da Coreia estavam passando fome, em função da pobreza e da guerra.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Muito boa lembrança.

O Sr. Roberto Cavalcanti (Bloco/PRB - PB) - E eu tenho esse hábito. Hoje ainda sou uma pessoa que raspo o prato pelo hábito exatamente da formação infantil. E, hoje, temos o exemplo da Coreia na educação, temos um país que sobrepujou toda uma guerra. Nós, no Brasil, não passamos por uma guerra; a Coreia passou por uma guerra, e hoje a educação na Coreia é exemplar. O Brasil, constatávamos hoje, exatamente nas contas que V. Exª fez rapidamente, multiplicações e divisões, verificou-se que é um horizonte bem próximo, vamos dizer, se houver uma decisão de governo para a erradicação ou, pelo menos, para a transformação dos índices de pobreza e de analfabetismo no Brasil, poderá ser um número rapidamente atingido. Então, parabenizo V. Exª. Continue com esse grito, continue com esse clamor, continue com essa sua bandeira, que eu acho que é uma bandeira nacionalmente reconhecida. Parabéns a V. Exª.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Obrigado, Senador.

Peço mais alguns minutos, Senador Mão Santa.

O SR. PRESIDENTE (Mão Santa. PMDB - PI) - Quantos minutos?

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Hein?

O SR. PRESIDENTE (Mão Santa. PMDB - PI) - Quantos minutos?

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - O senhor diz. Três minutos mais para concluir; senão, em vez de Mão Santa, o senhor vai ser “dedo apressado”, cortando o tempo da gente.

O SR. PRESIDENTE (Mão Santa. PMDB - PI) - Está na Bíblia: pedi e dar-se-vos-á. Estão aí os três minutos.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Senador Mão Santa.

O SR. PRESIDENTE (Mão Santa. PMDB - PI) - Espera aí, deixe-me organizar aqui. Pronto. Pedi e dar-se-vos-á. Três minutos.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Senador, eu tenho uma lista grande, que não vou ler, dessas corrupções, Senador Arthur Virgílio, nas prioridades, que é tão trágica - não quero dizer mais, porque as pessoas não vão entender como tal -, que é tão grave quanto a corrupção que há no comportamento. Não vou ler todas elas. Eu quero lembrar apenas duas.

Uma é a corrupção em marcha neste País de substituir a possibilidade de uma escada social, Senador Flávio Arns, por uma rede de proteção: a rede de proteção que é capaz de evitar a fome, substituindo uma escada que é capaz de fazer a ascensão social. Não sou contra as redes de proteção, para garantir que as pessoas comam, mas não me contento ao ver um País rico como o Brasil não substituir a rede pela escada e não fazer com que este País, em vez de apenas ter uma rede como o Bolsa Família, que impede a miséria - isso é alguma coisa positiva quanto generosa -, não use a escola como escada social.

Mas a maior das corrupções, Senador Mão Santa, é a corrupção, Senador Roberto, de um Congresso que fica omisso no poder que tem de mudar o país. E essa corrupção estamos tendo. Fala-se de passagens, fala-se de horas extras, fala-se de dezenas de formas no corrupção no comportamento - felizmente, isso está sendo denunciado -, mas ninguém está falando na corrupção maior de todas de, numa democracia, o Congresso abrir mão do seu poder, abrir mão da sua força, abrir mão do seu compromisso de mudar o país onde ele exerce a força que a democracia lhe dá.

E, hoje, lamentavelmente, nosso Congresso, nós - e não podemos colocar a culpa em nenhum exatamente, nem nos outros -, nós que aqui sentamos, nós abrimos mão do nosso poder. Nós nos deixamos imprensar pelas medidas provisórias e pelas medidas judiciais. Ficamos passivos, ficamos omissos, ficamos irrelevantes, e essa é uma corrupção. Essa é uma grave corrupção na falta de prioridades do Congresso para tomar as decisões necessárias para mudar o País, inclusive acabando com a corrupção no comportamento dos políticos, inclusive fazendo com que haja punição daqueles individualmente que são corruptos; mas, sobretudo, acabando essa tragédia da corrupção nas prioridades que, há séculos, destrói, deforma a cara da Nação brasileira.

Eu vim falar de corrupção, Senador Mão Santa, mas desta corrupção subterrânea, invisível que ninguém quer falar: a corrupção nas prioridades que deforma o nosso País.

O SR. PRESIDENTE (Mão Santa. PMDB - PI) - Jesus multiplicou o pão, peixe, e eu estou multiplicando o tempo para V. Exª.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Muito obrigado, Senador.


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 29/04/2009 - Página 13395