Discurso durante a 217ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Comentário sobre entendimento do Supremo Tribunal Federal ao apreciar o processo relativo a Cesare Battisti. Manifestação em defesa das instituições democráticas do País, salientando a importância da participação popular para o aprimoramento dessas instituições.

Autor
Pedro Simon (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RS)
Nome completo: Pedro Jorge Simon
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DIREITOS HUMANOS. POLITICA NACIONAL.:
  • Comentário sobre entendimento do Supremo Tribunal Federal ao apreciar o processo relativo a Cesare Battisti. Manifestação em defesa das instituições democráticas do País, salientando a importância da participação popular para o aprimoramento dessas instituições.
Publicação
Publicação no DSF de 21/11/2009 - Página 60605
Assunto
Outros > DIREITOS HUMANOS. POLITICA NACIONAL.
Indexação
  • QUESTIONAMENTO, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF), DECISÃO, PROCESSO, EXTRADIÇÃO, REFUGIADO, NACIONALIDADE ESTRANGEIRA.
  • ANALISE, URGENCIA, ALTERAÇÃO, COMPORTAMENTO, POLITICA, BRASIL, NECESSIDADE, PARTICIPAÇÃO, REPRESENTANTE, SOCIEDADE CIVIL, ESPECIFICAÇÃO, COOPERATIVA, ASSOCIAÇÃO DE CLASSE, SINDICATO, MOBILIZAÇÃO, POPULAÇÃO, APERFEIÇOAMENTO, INSTITUIÇÃO DEMOCRATICA, DEFESA, INTERESSE PUBLICO.
  • COMENTARIO, TRABALHO, PROFESSOR, UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE (UFF), DEMONSTRAÇÃO, DESVIO, CONDUTA, BRASILEIROS, CRIAÇÃO, COSTUMES, JUSTIFICAÇÃO, AUSENCIA, IRREGULARIDADE, PROCEDIMENTO, OBTENÇÃO, VANTAGENS, BENEFICIO PESSOAL.
  • IMPORTANCIA, ANTERIORIDADE, MOBILIZAÇÃO, PARTICIPAÇÃO, POPULAÇÃO, ALTERAÇÃO, DESTINO, PAIS, ESPECIFICAÇÃO, ASSEMBLEIA CONSTITUINTE, MOVIMENTAÇÃO, JUVENTUDE, REPRESENTANTE, SOCIEDADE CIVIL, DEFESA, ETICA, POLITICA, IMPEACHMENT, PRESIDENTE DA REPUBLICA, ATUAÇÃO, MEIOS DE COMUNICAÇÃO, DENUNCIA, CORRUPÇÃO, IMPUNIDADE.
  • QUESTIONAMENTO, SUJEIÇÃO, ORGANIZAÇÃO NÃO-GOVERNAMENTAL (ONG), UNIÃO NACIONAL DOS ESTUDANTES (UNE), SINDICATO, ESTADO, OBTENÇÃO, FINANCIAMENTO, FUNDOS PUBLICOS, POSSIBILIDADE, POSSE, CARGO PUBLICO, LIMITAÇÃO, ATUAÇÃO, DEFESA, INTERESSE PUBLICO.

                          SENADO FEDERAL SF -

            SECRETARIA-GERAL DA MESA

            SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. PEDRO SIMON (PMDB - RS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Parlamentares, eu tenho aproveitado e tenho tentado ler, medindo as minhas palavras, sobre alguns assuntos que eu acho importantes na hora em que nós estamos vivendo. Eu estou sentindo que há um ambiente de fim de festa e, na verdade, ninguém sabe quem é quem.

            Essa última decisão do Supremo, que eu não sei se é jurídica, se não é jurídica, mas o Supremo decidir que quem decide é o Supremo e, depois, o Supremo decidir que ele decide e o Presidente faz o que quer... Eu não entendo mais nada. Realmente, eu não entendo mais nada.

            Srs. Parlamentares, eu tenho dito reiteradas vezes que não haverá mudança significativa de valores e de comportamentos políticos no Brasil de dentro para fora. Isto é, as alterações profundas, necessárias, urgentes na política brasileira não nascerão no útero institucional - nem Executivo, nem Legislativo, nem Judiciário. Aliás, quando isso aconteceu, via de regra resultou de longos períodos de obscurantismo e na contramão do que se deseja: os arranhões profundos da democracia brasileira. Quero dizer, alterações de dentro para fora para tolher exatamente qualquer mudança de fora para dentro.

            Foi assim, por exemplo, nos chamados anos de chumbo. Todas as mazelas daqueles anos de mordaça, de escuridão democrática se deram pela força. Quase todas as vozes individuais ou coletivas eram caladas muitas vezes para todo o sempre até com a morte.

            O País vive hoje um tempo de democracia. Espera-se que um tempo infinito de democracia. Mas isso não significa uma prática que se coadune com a consequência teórica de que a população possa contar com sua representação democrática para as mudanças de que tanto se necessita.

            O Brasil é democrático? É. As instituições são democráticas? São. Mas esperar delas as mudanças profundas, eu não acredito. Ainda que nas posições mais essenciais essa representação seja escolhida, ela não tem correspondido à legitimidade que se requer para que seja verdadeiramente representativa.

            Todos os artifícios, todas as artimanhas são arquitetadas no sentido de que, como na obra de Lampedusa, famoso escritor italiano, tudo deve mudar para que tudo permaneça como está.

            Esse longo debate que se tem no Congresso hoje dessas modificações, e com estudos da Fundação Getulio Vargas, e não sei mais o quê, e não sei mais o quê... O que a gente vê é isso.

            Tudo deve mudar, para que tudo permaneça como está!

            Eu não tenho dúvida de que há nesses momentos e nesses nossos tempos uma dose exagerada de inércia, de inércia na população, para participar ativamente da vida política do País.

            Há evidências de que estamos vivendo uma espécie de anomalia social. A população já não confia nas suas instituições, tamanhos os desmandos, tamanhos os desvios de conduta veiculados pela mídia nos últimos tempos. A desconfiança é quase que total. Daí a aparente complacência da população com determinados tipos de delitos políticos, elegendo também como exemplo representantes sabidamente praticantes de crime de desvio de recursos públicos e até mesmo cometendo diretamente irregularidades, como a sonegação fiscal e a pirataria, entre outras coisas.

            Também o chamado jeitinho brasileiro tem sido utilizado para burlar regras sociais já instituídas. Nesses casos, repito o que já disse várias vezes desta tribuna: parece vingar a chamada lei de Gerson, ou seja, levar vantagem em tudo, mesmo que isso signifique prejuízo para alguém. Exemplos típicos são os desrespeitos a filas, a lugares demarcados para pessoas com necessidades especiais, as ligações clandestinas a serviços públicos também, entre outros.

            A propósito desse chamado “jeitinho brasileiro”, o Professor Alberto Carlos Almeida, da Universidade Federal Fluminense, escreveu: “A Cabeça do Brasileiro”, é um retrato fiel de como as pessoas recorrem a artifícios, muitas vezes de sobrevivência, para criar desvios do caminho da boa conduta. Muitas vezes instituídos como costumes que não mais consideram irregularidades. Costumes até ontem irregulares, hoje, são considerados normais; muitas vezes instituídos como costumes que não mais consideram, repito, como irregulares.

            Acham, por exemplo, normal o pagamento de propina, de gorjeta, não importa o tamanho, para que o seu pleito seja atendido com prioridade, passando à frente da sequência instituída.

            O trabalho do Professor Alberto também mostra, embora com pequenas variações, que se trata de procedimento corriqueiro em todas as camadas sociais da população e com aceitação, no mínimo, tolerável.

            Dois terços da população, segundo a pesquisa, já recorreram reiteradamente a procedimentos ditos como fora da ordem, para obter algum tipo de vantagem pessoal. Quebrar a regra tem sido cada vez mais uma regra. Há, portanto, uma linha muito tênue entre o que seja um favor e o que se pode definir como corrupção. O jeitinho brasileiro, para muitos uma forma criativa de sobrevivência, pode ser, ao contrário, um dos piores instrumentos de desvio de conduta social e, consequentemente, de alimento à impunidade, o que revigora, como numa causação circular, a própria corrupção.

            Não há dúvida também de que o mercado cria e fortalece um cenário de competição, em detrimento de posturas coletivas. O ser humano não vê mais o seu próximo como semelhante, mas como concorrente, seja para a vaga no emprego, seja para a vaga na universidade, seja para a vaga no estacionamento, seja, pior ainda, pela prioridade na fila do hospital, muitas vezes numa linha divisória macabra entre a vida e a morte.

            Obviamente, atitudes individuais são inimigas de qualquer processo de mudança que se imagine possa acontecer. Apenas, repito, de fora para dentro. Então, nessas condições, um dos primeiros passos, se o desejo é o de mudar, é incentivar processos de criação e de atuação coletiva, na contramão do que acontece nos dias atuais.

            É interessante observar, nesse sentido, o discurso do atual Presidente da França. Ele vem muito ao encontro do que eu tenho dito. Também estão numa espécie de nova religião, que eu chamei de consumismo, cuja bíblia é a globalização. Para Sarkozy, Presidente da França, cuja bíblia é a globalização: “É preciso mudar a religião das cifras, por trás da qual está a religião do mercado, por uma política de civilização”.

            Quem sabe esteja aí, nesta discussão de que seja efetivamente uma política de civilização, a chave para uma alteração de posturas, tanto individuais como coletivas, para que se fortaleçam os instrumentos a serem utilizados para as mudanças políticas e institucionais que tanto se desejam.

            O homem está cada vez mais plugado no mundo, mas ele também está, igualmente e cada vez mais, solitário, entre quatro paredes. Entre ele e o mundo, um único botão, uma tecla, um toque, mas ele perdeu a energia gerada pelo poder do calor coletivo, do coro, da orquestra.

            Ele é solo, sem acompanhamento. Acabaram-se os espaços coletivos, as “ágoras”, substituídas pelos corredores dos shoppings, a instigar a religião do consumismo ou das cifras, como bem disse o Presidente da França. Com uma tecnologia cada vez mais sofisticada, o céu continua sendo do avião, mas a praça já não é mais do povo.

            São muitos os exemplos da força do povo - nos chamados planejamento e orçamento participativo, ou no acompanhamento das ações dos poderes, principalmente em nível local. Também merecem destaque os movimentos pela reforma agrária, as organizações dos sem-teto e dos sem-moradia, bem como dos atingidos por barragens, entre tantos outros.

            Ainda não se deu o devido valor a tantas iniciativas de organização popular existentes em todo o País. Nos Conselhos Municipais de Saúde, de Educação, de Saneamento, por exemplo. Eles se constituem em espaços de discussão da maior importância e de caráter consultivo, deliberativo, fiscalizador, mobilizador e sobretudo moralizador. São conselhos que representam a pluralidade de votos nas respectivas comunidades municipais.

            Também não têm merecido a devida atenção as instituições representativas da sociedade civil, como as cooperativas, as associações de classes, os sindicatos patronais e de trabalhadores. São milhares em todo o País. Iniciativas que, se mobilizadas, poderiam constituir a melhor alavanca para os movimentos que desencadeiam as tais mudanças político-institucionais.

            Os movimentos populares que chamaram mais atenção nos últimos tempos foram, sem dúvida, a campanha pelas Diretas-Já! e a dos Caras-Pintadas. A primeira, “Diretas-Já!”, levou à rua um grito coletivo pelo fim das eleições indiretas para a Presidência da República, instituídas pelo regime militar, instalado 20 anos antes. Esse movimento coroou diversos outros, sempre pela restauração da democracia, como o que teve como objetivo a anistia ampla, geral e irrestrita, a luta estudantil comandada pela UNE - Ó, a UNE! Como tenho saudade dela hoje! - e o dos trabalhadores de diferentes categorias, fábricas, entre outros.

            O chamado Diretas-Já foi, sem dúvida, uma das mais belas páginas da história do Brasil, e mostrou o poder da mobilização popular. Muito depois de derrotada a Emenda Dante de Oliveira, que procurava dar corpo legal às diretas, o povo, decepcionado no princípio, não se desmobilizou: depositou em Tancredo a confiança de que ele tomaria posse e, ato contínuo, restauraria o voto direto em todos os níveis.

            Morto Tancredo, antes de assumir efetivamente, e guindado Sarney, dúvidas ainda pairavam no sentido do avanço democrático. Afinal, o novo Presidente havia dirigido exatamente o partido que deu suporte, até ali, ao regime que se desejava extinguir.

            O próprio enterro de Tancredo foi um misto de emoção e comoção, e à tristeza estampada no rosto da multidão que acompanhava o serviço fúnebre que culminou com a ocupação das ruas, durante o cortejo, se somava uma dose de frustração, de grande expectativa pelo que poderia advir.

            Foi essa mesma mobilização popular que ainda fazia ecoar o grito das ruas que fez com que o Presidente Sarney mantivesse as linhas do governo proposto por Tancredo Neves. Não poderia ser diferente, sob pena de explicitar, naquele momento de profunda sensibilidade, que a mudança pela qual tanto se lutou e que tivera passado pela eleição do ex-governador mineiro, ainda que indireta, teria sido abortada pelo imponderável.

            O fato mais importante para que essa mudança se efetivasse não foi obviamente a manutenção da equipe de governo escolhida anteriormente por Tancredo, na qual eu me incluía, como Ministro da Agricultura, nem mesmo a linha de ação política ou de definições programáticas. Foi a convocação da Assembléia Nacional Constituinte, determinada pela luta democrática, e que Sarney cumpriu.

            Não participei diretamente desse momento da nossa história recente, porque o povo gaúcho me elegeu, em 1986, para missão não menos honrosa de governar o Rio Grande. Mas não tenho dúvida de que a Assembléia Nacional Constituinte foi um dos mais ricos exemplos da importância da participação popular nos destinos de um país.

            A Constituição de 1988 não foi chamada de cidadã por acaso, pelo grande timoneiro Ulysses Guimarães. Ela encarnava em cada um e no conjunto de seus artigos uma luta de mais de vinte anos. Ela foi escrita com as mesmas palavras e movida pelos mesmos sentimentos, pelos mesmos gritos pela liberdade proferidos por milhões de brasileiros em todos os cantos e recantos deste País, durante mais de duas décadas.

            A Constituição brasileira, “cidadã”, é o retrato mais que fiel da importância da participação popular nos destinos de um país e nos destinos do seu povo. Ela também contém dispositivos que permitem a participação direta da população nos seus destinos, como os projetos de iniciativa popular, o plebiscito e o referendo.

            Os caras-pintadas construíram o outro momento que, reitero, demonstrou o poder de mobilização da população. Não tenho dúvida, qualquer dúvida, que, não fossem as ruas ocupadas pela caminhada em direção à ética na política, teria sido outra aquela história. Nada teria acontecido nos altares do Poder, principalmente no Legislativo.

            No inicio dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito criada para investigar denúncias de esquemas de desvio de recursos do Poder Executivo, ninguém, nem mesmo os mais experientes na atividade legislativa, esperava que afinal um Presidente seria afastado por via constitucional.

            Era a primeira eleição direta para a Presidência, e o cheiro de chumbo ainda não havia sido dissipado inteiramente do ar. Havia vozes inclusive no sentido de que a governabilidade e a continuidade democrática exigiam que se atenuassem os fatos, que àquele momento já colocavam feixes de luz nas investigações.

         O povo nas ruas, caras-pintadas à frente, não permitiu que se revelassem tais fatos. Mas que se revelassem. Foi notória a mudança de postura e de atitude de partidos e de parlamentares, assim que o grito do povo ecoou nos corredores do Congresso.

         A voz rouca das ruas provocou mudanças nos ouvidos moucos do Congresso.

         O povo, que havia sido convidado a se vestir de verde e amarelo, cobriu-se de preto. Utilizou-se da cor do luto para o protesto. Um luto na luta pela ética.

         Essa é uma história para ser repetida, para que, repetido seja aquele ato do povo, porque infelizmente repetidos também são hoje os fatos que levaram esse mesmo povo a exigir mudanças, a se enlutar, a lutar.

         Eu também não tenho qualquer dúvida a respeito da mídia nas mobilizações populares. Os exemplos até aqui destacados também podem ser citados para demonstrar que, se não fossem as manchetes de primeira página e de abertura do nosso noticiário, teria sido difícil mobilizar tanta gente nas ruas e tantas mentes no Congresso.

            A mídia é, e tem que ser assim, os olhos da população em todos os Poderes, em todos os níveis. Ela tem também um poder mobilizador sem igual.

            Vale lembrar que não são poucas as teses que dão conta no sentido de que foi a mídia o principal instrumento de mobilização para que fosse eleito o presidente para cujo impeachment ela mesma contribuiu, menos de dois anos depois da posse.

            Temo, por um lado, a glamorização da barbárie. Ela pode gerar efeitos multiplicadores da própria barbárie. Mas eu não posso negar a importância da mídia, se o objetivo é o ataque direto à impunidade.

            Portanto, há que se glamorizar também os bons exemplos, principalmente os movidos pelo desejo coletivo da população.

            Isso significa multiplicar a participação e, conseqüentemente, como já se viu nos exemplos citados, os bons resultados no ataque à violência, à barbárie e à corrupção.

            Muito se fala, quando o assunto é o crime e o desvio de recursos públicos, da tal “certeza da impunidade”, da absoluta certeza da impunidade, que se multiplica por aí. Pois bem, para multiplicar o bem, o caminho é óbvio: a “certeza da punidade”. O mal se multiplica pela certeza da impunidade, o bem será alcançado pela certeza da punidade.

            Apesar dos modernos mecanismos de pressão popular, Internet à frente, nada ainda substituiu as ruas. A rua continua sendo o caminho mais curto, mais rápido entre o desejo e a mudança efetiva, se assumirmos a importância da participação popular.

            Eu não nego a importância das mensagens eletrônicas, tão em voga nestes dias, mas o grito em coro mais que sensibiliza, porque não só ele não se arquiva, simplesmente, como papel de estatística, nem se deleta a um toque. Ele chega mais fundo aos corações e às mentes. Ele produz eco. A pressão é mais contundente. Não dormita nas prateleiras frias do esquecimento.

            Eu ainda tenho como foco as nossas mais evidentes experiências recentes: “Diretas-Já!” e o impeachment do Presidente. As mobilizações sempre contaram, além da mídia, com a participação das representações na sociedade civil.

            A União Nacional dos Estudantes, a UNE. Oh, nossa UNE, onde estás? E as Centrais Sindicais, onde estão, além dos cargos de comando? UNE e Centrais Sindicais foram protagonistas decisivas no enredo e na concepção do capítulo final daquelas histórias. Os “caras-pintadas” tinham na UNE a voz de comando e de coordenação. Os trabalhadores, de tantas e tão diferentes atividades, cada uma representada por sindicatos atuantes no campo da política nacional, faziam coro sob a partitura das Centrais Sindicais.

            Hoje, infelizmente, estas mesmas instituições, quando estão diretamente no poder, foram cooptadas por ele. Recebem polpudos recursos públicos e não ousam erguer a voz contra seus “financiadores de projetos”, como a construção de sedes suntuosas e a política de favores e cargos públicos polpudos. Hoje, no máximo, pintam-se as caras para se conseguir recursos para obras caras ou, por exemplo, para pressionar pelo passe livre nos ônibus. Pela liberdade de ir e vir, mas pagando, no máximo, meia passagem. O que pode ser, também - não nego - de significativa importância para os representados, mas que nem mesmo tangenciam as mudanças estruturais na política e na construção de novos valores e referências na sociedade brasileira, como se espera.

            A alteração da política institucional também engloba, portanto, essas mesmas instituições, mas em outros moldes, porque elas passaram a se constituir numa espécie de apêndice do poder.

            O mesmo pode ser dito das chamadas organizações não governamentais, que pouco ou nada têm de não governamentais. Também elas, muitas vezes, têm-se tornado apêndices do Estado, financiadas, não raramente, com recursos públicos, quando não defendendo interesses nem sempre explícitos.

            As ONGs são objeto, inclusive, de uma Comissão Parlamentar de Inquérito no Congresso, tendo em vista evidentes desvios de objetivos e recursos. O que, tudo indica, não chegará a denominador comum nenhum, porque se estabeleceu, no plenário da CPI, uma dicotomia entre o Governo atual e o anterior, cada um ameaçando o outro com listas de ONGs que comprometeriam, mutuamente, os dois lados. Na época do PSDB, apoio às ONGs dela, e, agora, apoio às ONGs do PT: “Tu não examinas aqui, e eu não examino lá”. Não é raro se ouvir, nos arredores do plenário da Comissão, expressões em tom de ameaça, como “chumbo trocado”. Como no ditado popular, “chumbo trocado não dói”.

            Como em tantos outros exemplos de investigações ávidas por aspas, nada se investigou e nada se investigará.

            Não serão, portanto, as organizações não governamentais, pelo menos nos moldes atuais, as timoneiras de movimentos de fora para dentro, os únicos que se imagina atingir os efeitos desejados na condução política do País.

            Mas, apesar de tantos óbices, serão as organizações da sociedade civil as responsáveis pela mobilização popular neste necessário movimento “de baixo para cima” e “de fora para dentro”. Bons exemplos também não faltam.

            No passado recente, também respaldado na “Constituição Cidadã”, há que se destacar o primeiro projeto de iniciativa popular, que logrou obter mais de um milhão de assinaturas, que se destinava a combater a compra de votos no período eleitoral.

            Essa proposição deu origem à Lei nº 9.840, de 1999, que já foi utilizada para cassar centenas de mandatos obtidos de modo fraudulento.

            A elaboração do projeto envolveu entidades de maior representatividade do movimento social no Pais, sob a liderança da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), da OAB e da ABI.

            Esse movimento volta, agora, com a mesma liderança também para respaldar projeto de iniciativa popular, com o objetivo de possibilitar o registro de candidaturas de quem tenha apenas o que se convencionou chamar “ficha limpa”.

            Foram mais de um milhão os que aderiram ao projeto. Uma lufada de ética em muitos que serão, aprovada a lei, alcançados por ela.

            Para se ingressar no serviço público, mesmo que aprovado em concursos com altos níveis de dificuldade, há que se comprovar conduta ilibada. Não basta, portanto, conhecimento comprovado. Há que se comprovar procedimento adequado à função de cuidar dos recursos públicos.

            Assim é, também, em todas as nossas relações. Não se faz negócio com quem tem passado que se possa condenar. Entretanto, não é assim quando se trata de um candidato a traçar os caminhos da política brasileira. Ao contrário, o manto da impunidade é usado nas eleições para se alcançar a imunidade. Quantos são os que se candidataram exatamente para conseguir os tais foros privilegiados? Pior ainda: muitas vezes, custeiam suas campanhas eleitorais com o dinheiro que surrupiaram exatamente nas falcatruas que lhes geraram os processos que desejam encobrir, quando eleitos.

            Haverá, portanto, participação melhor da população do que quando, coletivamente, deixar de eleger candidatos que, já antes do pleito, demonstrem não estar à altura da representação popular? Que não podem ter legitimidade porque não possuem moralidade? Quem sabe seja esta a melhor participação popular hoje. Ela é individual e praticada no silêncio das urnas. Mas ela é coletiva, é concebida e se transforma no grito das ruas.

            O Brasil se preocupou, sobremaneira, nos últimos tempos, em conhecer o eleitor. O País ostenta hoje uma tecnologia eleitoral imitável pelas grandes nações do planeta. Grandes nações olham para o sistema eleitoral brasileiro. Perfeito. Voto depositado, voto apurado. Nenhuma fraude. Mas o Brasil não se preocupou, no mesmo passo, em conhecer os eleitos. Voto apurado, no sentido de “contado”. Eleito nem sempre apurado no sentido de requintado. Ou de “escolhido por (ser) o melhor”.

            Portanto, a minha emenda ao projeto de reforma eleitoral, que se convencionou chamar “ficha suja”, veio no mesmo tom da proposta de projeto de iniciativa popular do movimento comandado pela CNBB, denominado “ficha limpa”.

            Adjetivos opostos, objetivos sinônimos, para o mesmo substantivo. Ambos se concebem como instrumentos de participação popular, porque devolvem ao eleito a verdadeira legitimidade.

            A minha emenda não foi acatada na Câmara dos Deputados. Quem sabe muitos não teriam sido eleitos, se ela já tivesse sido aprovada antes das últimas eleições. O projeto de iniciativa popular terá certamente um poder maior de convencimento. Como terão outras iniciativas de fora para dentro. Quem sabe, então, para futuras eleições?!

            Pois bem, as mudanças político-institucionais que o País almeja estão nas mãos do povo: quando elas se levantam nas ruas ou quando elas apertam os botões nas urnas, ou quando elas se juntam nas representações da sociedade civil. Aí está o caminho mais curto e mais seguro para que possamos recuperar os melhores valores e referências perdidos nestes tempos de corrupção e de barbárie.

            Como na canção que se tornou hino, quando era proibido cantar: “(...) esperar não é saber. Quem sabe faz a hora (....).”

            Vamos embora. “A certeza na frente, a história na mão (...).”

            Obrigado, Sr. Presidente.


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 21/11/2009 - Página 60605