Discurso durante a 15ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Reverêcia à memória da Dra. Zilda Arns Neumann, fundadora da Pastoral Nacional e Internacional da Criança e da Pastoral da Pessoa Idosa; do Dr. Luiz Carlos Costa, representante da ONU; e dos militares brasileiros vitimados pelo terremoto no Haiti.

Autor
Arthur Virgílio (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/AM)
Nome completo: Arthur Virgílio do Carmo Ribeiro Neto
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Reverêcia à memória da Dra. Zilda Arns Neumann, fundadora da Pastoral Nacional e Internacional da Criança e da Pastoral da Pessoa Idosa; do Dr. Luiz Carlos Costa, representante da ONU; e dos militares brasileiros vitimados pelo terremoto no Haiti.
Aparteantes
Romeu Tuma.
Publicação
Publicação no DSF de 24/02/2010 - Página 3997
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, ZILDA ARNS, MEDICO, LIDER, ENTIDADE, IGREJA CATOLICA, APOIO, CRIANÇA, IDOSO, SITUAÇÃO, POBREZA, ABANDONO, REPRESENTANTE, BRASIL, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), MILITAR, FORÇAS ARMADAS, VITIMA, ABALO SISMICO, PAIS ESTRANGEIRO, HAITI, CUMPRIMENTO, FAMILIA, AUTORIDADE, PRESENÇA, SESSÃO.
  • REGISTRO, HISTORIA, PAIS ESTRANGEIRO, HAITI, LUTA, INDEPENDENCIA, EXTINÇÃO, ESCRAVATURA, EXPLORAÇÃO, PAIS INDUSTRIALIZADO, EXCLUSÃO, AMBITO INTERNACIONAL, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, DITADURA, MISERIA, CALAMIDADE PUBLICA.
  • APOIO, LIDERANÇA, FORÇAS ARMADAS, MISSÃO, PAIS ESTRANGEIRO, HAITI, ELOGIO, BRAVURA, EMPENHO, MILITAR, TRABALHO, RECONSTRUÇÃO, PROMOÇÃO, DIREITOS HUMANOS, PAIS.
  • ANALISE, DITADURA, REGIME MILITAR, BRASIL, OPINIÃO, EFICACIA, LEI DE ANISTIA, DESNECESSIDADE, RETOMADA, JULGAMENTO, BENEFICIO, DEMOCRACIA.
  • ELOGIO, VIDA PUBLICA, ZILDA ARNS, MEDICO, IMPORTANCIA, PROJETO, ENTIDADE, IGREJA CATOLICA, REALIZAÇÃO, JUSTIÇA SOCIAL, CIDADANIA.

                          SENADO FEDERAL SF -

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            SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. ARTHUR VIRGÍLIO (PSDB - AM. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Senador Flávio Arns, Ilmo. Cel. João Chalella Júnior, Chefe da Assessoria Parlamentar do Gabinete do Comandante do Exército; Dr. Nelson Arns Neumann, filho da Drª Zilda Arns, Coordenador Nacional Adjunto da Pastoral da Criança e Coordenador da Pastoral da Criança Internacional; Srª Ana Paula Policarpo Torres, viúva do General de Brigada e ex-assessor parlamentar do Exército no Senado Federal, Exmo. Sr. General Emílio Carlos Torres dos Santos; Srª Emília Ribeiro Rodrigues Martins, viúva do Tenente-Coronel Francisco Adolfo Vianna Martins Filho; Srªs e Srs. Senadores, senhoras e senhores convidados e participantes desta justíssima homenagem. Afinal de contas, a sessão começou às 14 horas e percebi que diversos Senadores optaram por apartear Colegas, até porque estavam, talvez, no fim da fila. Mas, se todos tivessem realizado os seus discursos, iríamos até 10h da noite, e iríamos tranquilamente até 10h, 11h da noite, porque essa missa vale a pena.

            Eu, antes de mais nada, gostaria de falar um pouco do Haiti. Pode até... e vou insistir em dizer: Deus escreve certo por linhas tortas. O Haiti, não bastassem todos os anos e séculos de opressão colonial, de espoliação econômica e de ditaduras, passa agora por esse terrível momento de crise econômica e social que veio pelo terremoto. Mas, quando eu digo que Deus escreve certo por linhas tortas é porque a miséria no Haiti antecede o terremoto. O terremoto desnudou a miséria e agravou as suas condições, chamando a atenção da comunidade internacional. E ele serve para dois tipos de reação: para a reação sincera de quem é solidário e até para quem queira apaziguar falsos sentimentos.

            Mas o Haiti tem problemas, e eu gostaria muito de falar um pouco sobre a sua história.

            Ele chegou a ser vítima, ao longo da sua trajetória histórica, de teorias racistas que diziam que ele não se desenvolvia pela cor da pele dos seus filhos, e teorias de preconceito religioso - suas religiões de origem afro não permitiriam a um povo que se desenvolvesse plenamente do ponto de vista cultural.

            O Haiti resistiu a tudo isso. O seu povo continua negro, mantém suas crenças religiosas, o que parece até um desafio. Eu respeito profundamente... Sou católico praticante, mas respeito profundamente quem quer que professe sua religião de acordo com sua própria consciência, com seu direito de arbitrar sobre a sua vida. Mas o fato é que nós percebemos até nos filmes “politicamente corretos” a tentativa de desqualificar o Haiti, seu povo, sua religião, seus costumes, e o terremoto vem e impõe dores terríveis a um povo que já não tinha nem corpo para sofrer mais dor nenhuma, para pagar mais pena qualquer. É uma hora para nós mergulharmos nas águas profundas da sociologia política haitiana e encontrarmos um país cheio de contradições, um país que, por exemplo, libertou seus escravos antes de nós; um país que proclamou sua independência antes do Brasil e depois apenas dos Estados Unidos da América; um país que passou por terríveis vicissitudes que explicam as vicissitudes atuais sociais e econômicas do seu povo.

            Em 1697 ele é cedido à França pela Espanha, como se fosse uma coisa. Foi cedido à França pela Espanha e aí teve seus braços, sua mão-de-obra trabalhadora servindo de mão-de-obra escrava para a produção de café em larga escala, de açúcar, de cacau, o que rendeu muitas divisas para a França, muito conforto para quem comprava aqueles bens.

            Em 1803, porém - estou falando de 1697, com mais três anos, 1700 -, 106 anos depois, os negros incultos do Haiti, de religião atrasada, derrotaram os franceses militarmente e, então, viram raiar sua independência política 12 anos antes da brasileira, ou seja, em 1812.

            Aqui no Brasil, houve um arranjo de elites graças a dois estadistas: Dom Pedro I -, que, para mim é responsável pela unidade nacional, teve uma enorme antevisão - e José Bonifácio; e graças também à antevisão de um rei - Dom João VI - que costumam caricaturar como se fosse um comedor de pernil, de frango, como se fosse um glutão e não alguém que tivesse sabedoria. E ele teve sabedoria de resguardar Portugal do domínio francês, de resguardar a soberania que estava representada não precisamente no território de Portugal. Quando trouxe para o Brasil a Família Real, ele preservou a sua dinastia e disse: “Nós continuamos governando numa das nossas possessões”, que era o Brasil. Eu hoje faço uma enorme reflexão sobre Dom João VI e o vejo como muito bem absolvido pela História. Teve antevisão, e essa antevisão levou dois estadistas - um muito jovem e outro maduro, respectivamente Dom Pedro I e José Bonifácio - a declararem a Independência brasileira.

            Agora, houve uma diferença essencial: no Brasil houve o pacto das elites, como costuma acontecer no nosso País, Senador Flávio Arns.

            No Haiti, foram os negros incultos, de religião atrasada, que resolveram tudo sozinhos, o que mostra que, se esse país é atrasado hoje, isso se deve muito mais a influências externas, ações exógenas, do que a deficiências internas, a deficiências endógenas. Se soube libertar os escravos antes, se soube se tornar independente antes, se teve, inclusive, a capacidade de dar abrigo a Simón Bolívar, quando Simón Bolívar precisou de abrigo em terra estrangeira, na sua pregação libertária, na sua pregação por uma América livre - e não me confundam com Hugo Chávez, pelo amor de Deus -, mas soube dar asilo a Simón Bolívar, eu me indago se esse povo era mesmo atrasado e inculto, incapaz do desenvolvimento econômico e social pleno, ou se forças externas impediram que ele se desenvolvesse plenamente.

            Aí eu chego a um outro dado: houve um bloqueio promovido por Estados Unidos e Europa, de um modo geral, França, em particular, que durou décadas. Um bloqueio econômico terrível! Para se livrar dele, o Haiti pagou 150 milhões de francos, à época, dos seus depauperados cofres.

            A gente sempre imagina que a tragédia que se está vivendo é a última. Mas não era, não era nem a penúltima. A última foi o terremoto, ou melhor, o terremoto foi a penúltima. Os estupros, o tráfico de órgãos, o tráfico de crianças têm sido o último ato, até o momento, da tragédia haitiana que bem merecia uma ópera no estilo Evita.

            Após tudo isso, e ainda em função da influência estrangeira, entra em cena a ditadura Duvalier. Primeiro, Papa Doc, sanguinário, criminoso, frio, corrupto, como costumam ser sanguinários, corruptos e frios os ditadores; e, depois, seu filho Baby Doc, degenerado a ponto de eu fazer um trocadilho e dizer que suas faculdades mentais não eram nem ginasianas, suas faculdades mentais eram abaixo de ginasianas. Baby Doc, então, completou todo aquele ciclo de perversidade social, de perversidade econômica e de atraso político para o Haiti, nada a ver com a religião, nada a ver com a cor da pele.

            Eu traço aqui um quadro hipotético. Se o Plano Marshall tivesse atingido o Haiti, o Haiti seria rico hoje, desenvolvido. Estou falando algo absurdo do ponto de vista da geopolítica que se esboçava naquele momento de Guerra Fria entre os Estados Unidos, que emergiam como potência principal do mundo ocidental, e a União Soviética, que emergia como outro pólo militar. Claro que o Haiti não caberia naquele jogo, estou só dizendo que, se tivesse havido cooperação internacional efetiva, o Haiti não teria necessitado de tanta solidariedade internacional por causa do terremoto. O terremoto transforma em aguda a necessidade da ajuda internacional, porque o Haiti é um país depauperado, explorado, espoliado, sofrido, humilhado, traído, roubado há décadas, há séculos. Eu espero que paremos por aqui essa contagem.

            Eu ainda gostaria de, falando sobre o Haiti, dizer que, daqui desta tribuna, concordei com o envio de tropas brasileiras para o Haiti. Entendi que era uma ocasião já plenamente realizada, aliás, em plena realização, de o Brasil assumir o comando, a liderança de uma missão de paz, uma missão visando garantir a ordem num país que estava conflagrado por uma guerra civil de cores cruéis, desumanas, servindo também de enorme possibilidade de transferência de experiência para o Exército brasileiro.

            Os que foram para o Haiti voltaram, ou voltam, outros do ponto de vista do treinamento e da capacidade de ação militar. Tenho muito respeito pelo papel que desempenha o Exército brasileiro no país chamado Haiti.

            E aqui eu cito um notável romancista brasileiro do meu Estado, o Márcio Souza, que se refere ao herói da independência haitiana, Jacques Dessalines, para dizer que quem produz um Jacques Dessalines é capaz de produzir o progresso, a independência e a justiça, e é isso que eu espero que o Haiti encontre.

            Por outro lado, meu querido Flávio, eu ouvia o aparte do Senador Garibaldi Alves, que a mim me tocou muito, porque o Senador Garibaldi falou, como sempre faz, com o coração e, ao se referir a você, Presidente, ele transmitiu algo - com a peculiaridade dele, com a forma de falar e de se explicitar do Garibaldi Alves, que é do Garibaldi Alves, que nós tanto queremos bem, tanto admiramos -, ele falou o que a Casa pensa, porque, de fato, alguém aqui pode não concordar com determinada posição do Senador Flávio Arns - se todo mundo concordasse com o Senador Flávio Arns, estaria estabelecida a unanimidade burra, tão condenada por Nelson Rodrigues -, mas não há ninguém neste Senado que não respeite o Senador Flávio Arns, o que é uma diferença substancial. Gostar ou não gostar - estou repetindo o início da palavra - é gosto.

            Agora, respeitar ou não respeitar, me parece ser uma questão de obrigação, não se deve respeitar quem não merece respeito, e deve se respeitar quem se impõe ao respeito das pessoas. É o caso do Flávio Arns.

            Eu hoje pensava numa situação que poderia ser delicada, mas que vou tratar com a maior tranqüilidade, até porque eu não vejo que tenhamos que ter nenhuma vergonha dos episódios que a história do Brasil viveu, até porque a história do Brasil vai prosseguir vivendo os seus dramas, suas epopéias, os seus episódios todos. 

            Vejo o Exército brasileiro, hoje, merecendo todos os encômios, todos os elogios. Em algum momento, divergi muito francamente, quando aqui se quis implantar um regime de cor, de tom autoritário. Eu não podia concordar com aquilo. Não foi minha opção pegar em armas, porque eu não queria substituir uma ditadura por outra. Não foi imaginava que seria possível meia dúzia de pessoas derrotarem a força que representava o Exército brasileiro, mas fui às ruas, paguei meu preço, meu pai foi cassado pelo Ato nº 5, paguei meu preço. Eu queria o que nós obtivemos ao final: queria o Exército, como ele está hoje - porque ele quer e porque tem de ser assim, e com muito prazer ele faz assim, com muito mérito ele faz assim -, submetido aos ditames da Constituição brasileira, cumprindo seus deveres constitucionais com muita nobreza e de maneira admirável.

            Eu quero um Congresso funcionando, com suas mazelas, com seus defeitos, mas funcionando e buscando o seu aperfeiçoamento. Eu quero um Judiciário independente. Eu quero um Executivo limitado pelo Judiciário, pelos órgãos de fiscalização e pelo Congresso Nacional.

            Nós queríamos eleições diretas para os prefeitos de capital, e obtivemos; para governadores de Estado,e obtivemos; para Presidente da República, e obtivemos. Queríamos Assembléia Nacional Constituinte, e obtivemos, e temos hoje uma Carta Constitucional que, já bastante emendada e bastante aperfeiçoada, está aí a nos garantir, a nos dar garantias.

            Não sou a favor de se mexer em nenhuma ferida pós-Lei de Anistia porque seria insensato. Não sou a favor, porque seria injusto; não sou a favor, porque fizemos um acordo muito claro, um pacto nacional que determinou que a anistia colocava uma pedra em cima de tudo aquilo. Portanto, nenhum sentimento revanchista anima a minha alma, ainda que eu tenha todas as condições de ter sentimento revanchista, até pelo que passei, pelo que minha família passou. Mas não quero isso, quero paz.

            Entretanto, vou falar de um episódio que, a meu ver, cria um fio que me leva à Drª Zilda Arns e que passa, obviamente, pela vida do Flávio Arns.

            Quem sou eu para absolver quem quer que seja. Não sou juiz, mas, se eu pudesse, no meu modesto juízo, fazer um julgamento, eu absolveria o General Castelo Branco, eu absolveria o General Ernesto Geisel, eu absolveria o General Figueiredo. Eu não absolveria o General Costa e Silva, não absolveria a Junta Militar, não absolveria o General Garrastazu Médici, eu não absolveria o General Silvio Frota, não absolveria o General Ednardo. Absolveria o General Geisel porque teve a coragem de demitir Sílvio Frota e demitir Ednardo para por cobro, por fim à tortura que havia no País àquela altura, à tortura que matou Vladimir Herzog, cujo sacrifício serviu para que se começasse a abrir um novo caminho na direção da verdadeira abertura democrática neste País. Pois houve uma missa... Missa não, missa é coisa nossa, de católico. Houve um culto ecumênico em São Paulo, na Praça da Sé, reunindo - que eu saiba, pela primeira vez - diversas religiões, pelo menos três delas, três muito importantes, através de três grandes lideres dessas religiões, pedindo paz no Brasil e dizendo que não se podia deixar impune o que se passara com o jornalista Herzog.

            Estavam lá Dom Paulo Evaristo Arns, irmão da Drª Zilda Arns, o Pastor James Wright - não sei se era anglicano, não me recordo, realmente não sei - e o meu querido amigo Henry Sobel, que passou por momentos difíceis. Observo, a propósito, que vivemos numa sociedade midiática, a gente tem de se acostumar com isso. A notícia vale mais do que tudo. De repente, aconteceu um drama na vida do Reverendo Sobel e todos se arvoraram em juízes do Reverendo Sobel.

            O Reverendo Sobel, visivelmente sob efeitos de remédios, remédios com os quais é preciso ter muito cuidado, cometeu excessos e equívocos nos Estados Unidos - de maneira tão primária, que estava visível que não era de má-fé que ele fazia o que tinha feito.

            E todo mundo o condenava. Parece até que o Reverendo Sobel não tinha valor algum e nunca tinha feito algo bom por ninguém, parece até que o Reverendo Sobel não havia participado do culto ecumênico por Vladimir Herzog, parece até que era um cidadão qualquer que merecia mesmo a execração pública. Não sei viver assim e, desta tribuna, prestei minha reverência, e, hoje, eu a repito, ao Reverendo Sobel.

            Mas, muito bem, juntaram-se democratas de três credos, pensando no mesmo Deus e pedindo aquilo por que o povo inteiro ansiava - e tenho certeza de que a maioria esmagadora dos militares ansiava também por isso -, por liberdade no País, por reconstitucionalização do País, por democracia. E, hoje, existe tudo isso no Brasil.

            Então, estou vendo que há um “quê” de genético nisso. Chegamos a Dom Paulo, chegamos ao Flávio - não tenho dúvida alguma do Nelson ou de quem quer que seja da família Arns - e chegamos à Drª Zilda. Tenho muita desconfiança das pessoas que se julgam superiores às demais ou melhores do que as demais, tenho profunda desconfiança dessas pessoas.

            Estou aqui com um discurso muito bonito feito pela minha assessoria, muito competente, um discurso irreparável. Não há uma vírgula para se trocar. Está aqui um discurso que daria para ler, desincumbindo-me desta missão muito honrosa de homenagear a Drª Zilda Arns. Mas não vou ler o discurso. Vou dizer apenas que - já falaram tanto que ela reduziu a mortalidade infantil, já disseram da sua dedicação ao fundar a Pastoral e da sua bondade, e tenho muito pouca coisa a dizer mais - a Drª Zilda era mesmo melhor que as demais pessoas.

            Havia um membro da Câmara dos Lordes, na Inglaterra, que tinha o hábito muito intenso de o tempo inteiro se autoelogiar, colocando-se como a única pessoa honesta que havia no Reino Unido. Sir Edmund Burke dizia que, para o mal triunfar, bastava os bons não se meterem na vida pública, por exemplo. Sir Edmundo Burke, que era, por outro lado, além de grande orador, um homem muito irônico, muito sarcástico, vira-se para o Lorde e diz: “Sr. Lorde, permite-me um aparte?”. Ele diz: “É claro, Sr. Lorde”. E ele diz: “Não me leve a mal, não é nada pessoal, mas o Sr. Lorde me provoca uma enorme desconfiança. Não me leve a mal. Não é nada objetivo. É subjetivo apenas”. O tal Lorde se desfez, desmanchou-se: “Mas como? Logo eu, que a Inglaterra inteira conhece? Logo eu? Todos sabem da minha pureza. Logo eu? Todos sabem da minha honestidade. Logo eu? E não sei mais o quê. Logo eu? E não sei mais o quê”. E ele diz: “Mas, Sr. Lorde, eu lhe disse que não era objetivo. Era subjetivo. Não fique tão apoquentado assim! Não fique tão inseguro! Estou apenas dizendo que desconfio de V. Exª. Alguma coisa não me traz confiança quando V. Exª fala, quando o eminente Lorde fala”. Lá não chamam os lordes de V. Exª. Então, reza a história do Parlamento inglês que esse Lorde, cujo nome não ficou - o de Edmund Burke ficou, tanto que aqui estamos a citá-lo -, não teria mais aparecido com assiduidade às sessões. Ou seja, procurava passar por melhor do que os outros e não era melhor do que ninguém, não era melhor, por exemplo, do que essa grande figura inglesa que era Sir Edmund Burke.

            Mas Drª Zilda Arns era melhor, sim. Era melhor pela capacidade de não ambicionar, pela capacidade de ambicionar para os outros, pela capacidade de querer para os menores, pela capacidade de lutar por justiça, pela capacidade de fazer coisas pequenas que depois ficaram grandes, e as pessoas pequenas é que não entendiam que eram grandes aquelas coisas que pareciam pequenas que ela fazia e que tomaram toda essa dimensão. Era melhor, sim.

            Quando soube do falecimento da Drª Zilda Arns, eu estava no interior do meu Estado, no interior do Amazonas. Recebi a notícia truncada. Eu não estava com Internet à disposição, e me disseram: “Morreu a Drª Zilda Arns”. Eu procurei falar com o Flávio, que estava em um avião presidencial indo para o Haiti. Eu não sabia sequer do terremoto. Soube, momentos depois, horas depois, que tinha havido um terrível terremoto. Pensei em causas de morte comuns, como enfarte, derrame cerebral, acidente, essas coisas que a gente lê no cotidiano. Não pensei que tivesse sido no Haiti e não pensei que tivesse sido no terremoto.

            Morreram dois agentes diplomáticos, morreram cerca de duas dezenas de bravos militares, que merecem toda a nossa honra, toda a nossa reverência, todo o nosso respeito, toda a nossa melhor saudação, e morreu a Drª Zilda Arns. Se pensamos de maneira fatalista que todos nós temos de morrer, que é um desígnio divino nascer, viver e morrer, pelo ciclo curto ou longo que Deus nos reserva, que Deus reserva para cada um de nós, pergunto, Presidente Flávio Arns: onde mais poderia ter morrido a Drª Zilda Arns? Em um leito de hospital, com o médico medindo sua pressão, com a família esperando os últimos momentos? Em um acidente de trânsito? Onde mais poderia morrer a Drª Zilda Arns? Que lugar Deus poderia ter escolhido melhor para culminar essa vida tão bondosa e tão generosa do que no Haiti, em um terremoto, no meio das pessoas mais miseráveis da América Latina?

            Percebi que havia algo de simbólico nisso, como há muito de simbólico no que estamos fazendo aqui, nesta tarde. Estou aqui, há horas, esperando minha vez de falar. E há gente que está aqui há horas, e há pessoas que vão esperar não sei quanto tempo. Vinte horas não me parecem sequer o bastante. O Senador Flávio Arns, nosso Presidente, terá de prorrogar esta sessão, para que alguns Senadores se manifestem mais, pelo que estou a supor.

            O SR. PRESIDENTE (Flávio Arns. PSDB - PR) - Faço, então, uma interrupção e prorrogo a sessão pelo tempo que for necessário.

            O SR. ARTHUR VIRGÍLIO (PSDB - AM) - Muito obrigado, Senador Flávio Arns.

            Digo, então, que aconteceu o desfecho de um destino muito bonito, de uma maneira muito bonita. A Drª Zilda Arns, que fundou a Pastoral da Criança no Brasil, que reduziu a mortalidade infantil por onde passou, que salvou muitas vidas como médica, como cristã, como mulher de muita fé e de muita coragem, prosseguiu em uma trajetória de astro, de cometa, e foi morrer junto com os seres que ela mais certamente haveria de amar, os que mais precisavam dela: o povo do Haiti. (Palmas.)

            O SR. PRESIDENTE (Flávio Arns. PSDB - PR) - Agradeço ao Senador Arthur Vírgilio.

            O Sr. Romeu Tuma (PTB - SP. Fora do microfone.) - Senador Arthur Virgílio, V. Exª permitiria que eu fizesse um pequeno aparte?

            O SR. PRESIDENTE (Flávio Arns. PSDB - PR) - Tenho a impressão de que há um problema com o seu microfone, Senador Romeu Tuma.

            O Sr. Romeu Tuma (PTB - SP) - Eu queria perguntar, Senador Arthur Virgílio...

            O SR. PRESIDENTE (Flávio Arns. PSDB - PR) - Senador Arthur Virgílio, se V. Exª ainda puder considerar...

            O Sr. Romeu Tuma (PTB - SP) - Enquanto V. Exª passa pela Bandeira, gostaria de saber se eu poderia dar uma palavrinha, um aparte a V. Exª.

            O SR. ARTHUR VIRGÍLIO (PSDB - AM) - Numa sessão como esta, vale aparte até depois do discurso.

            O Sr. Romeu Tuma (PTB - SP) - Peço até desculpas, porque ouvi com atenção o discurso de um diplomata, de um homem de cultura, que faz uma análise perfeita de todos os acontecimentos históricos. Mas V. Exª passou por um fato - e eu pediria permissão para falar - e não citou o nome, quando falou da missa para Herzog, dos três pastores de cada uma das religiões. Tive uma conversa profunda com Dom Paulo Evaristo Arns sobre a caminhada pela cidade e sobre a missa, que seria religiosa, sem qualquer tipo de provocação ou coisa que pudesse trazer qualquer tipo de confronto. Eu disse a ele que eu era um delegado de polícia e que pouco poderia fazer no sentido de convencer as autoridades que comandavam o País a não intervirem naquela passeata, caminhada, procissão, como queiram chamar, mas que eu iria ver o que poderia ser feito. Em seguida, na praça, no Largo General Osório, procurou-me Fernando Henrique Cardoso - é isto que eu queria lembrar a V. Exª -, que falou comigo, debaixo de uma torrencial chuva, sobre a importância de interferirmos para que se realizasse aquele ato, que era o princípio da possibilidade de uma abertura importante. Realmente, eu também disse a ele: “Eu sou um simples delegado de polícia”. Fui com ele a gabinetes, fiz vários telefonemas a Brasília, e veio a autorização para que a caminhada e a missa se realizassem, sem incidentes. Então, só quis citar que Fernando Henrique também participou da solução para que nada acontecesse durante esse fato histórico do País, num momento de dificuldade, em que V. Exª, já num prejulgamento, absolveu todo mundo.

            O SR. ARTHUR VIRGÍLIO (PSDB - AM) - Senador Tuma, aproveito o aparte de V. Exª, que enriquece minha fala - aliás, eu até a retomo -, para relatar uma conversa que tive com um querido amigo que admiro muito, que foi um dos maiores Senadores que já passaram por esta Casa, que era um adversário - se eu tivesse sido Senador àquela altura, eu teria sido adversário dele - e que é um dos mais notáveis oradores que já conheci: o Senador Jarbas Passarinho. O Senador Jarbas, uma vez, justamente quando falei que, no meu julgamento histórico - olhe que prepotência! -, eu absolveria Geisel e condenaria Médici, disse-me: “Arthur, você está enganado. A questão toda é o momento”. Ou seja, se Geisel tivesse sido governante no período Médici, ele teria tido de aturar aquilo que Médici teve de aturar. Ele governou no momento em que era mais possível se fazer uma abertura e ele estava desejoso de principiá-la. Acreditava Passarinho que Médici também faria a mesma coisa. “Quero apenas ser justo.”

            E me veio à baila um pensamento que me remeteu à União Soviética, a Gorbachev. Ele disse, em liberdade, propiciando uma abertura política significativa na então União Soviética, aquilo que outros disseram, mas esses outros foram encarcerados. É que ele disse no momento em que a sociedade estava pronta para ouvir e em que havia força suficiente para respaldar aquilo que ele estava dizendo.

            Então, eu me ponho muito - recorro à minha consciência - a relembrar as palavras do sábio Senador Jarbas Passarinho, que, até hoje, acredita que o movimento militar de março e de abril de 1964 foi alguma coisa boa para o País. Eu acredito que não o foi. Ele, se Deus quiser, com muita vida, vai morrer achando isso, e vou morrer achando o contrário. Mas tenho por ele um carinho e um respeito muito grande. Tenho por ele uma amizade pessoal, tenho por ele carinho. Respeito sua figura pública, sua honradez pessoal.

            O fato é que, naquele momento, foram tomadas atitudes sábias. E V. Exª faz referência ao ex-Presidente Fernando Henrique, então um sociólogo de nome internacional que já havia sido punido pelo regime e que estava, àquela altura, ainda sem seus direitos políticos devolvidos. Eu poderia chegar ao Presidente da República, ao Presidente Lula, que tantas campanhas fez ao lado de Fernando Henrique nessas lutas por liberdade, por justiça.

            E, certa vez, quando a democracia começava a raiar no País, um colega, o Deputado Djalma Bom, do PT, que comigo enfrentou tanto o que considerávamos o arbítrio do regime, disse-me assim: “Arthur, a única coisa ruim disso é que, agora, começamos a divergir”. E eu disse: “Não, Djalma. A melhor coisa disso é que agora nós podemos divergir”. Antes, não podíamos divergir. Éramos obrigados a ficar todos na mesma trincheira, combatendo pelas mesmas ideias. Não podíamos especificar nossas ideias. Queríamos ver realizadas cinco ou seis bandeiras. Cinco ou seis plataformas tinham de acontecer, e éramos obrigados a ficar presos a isso. O Brasil está muito mais rico hoje. Ou seja, não tenho saudade do tempo em que eu concordava com o Presidente Lula, e ele não deve ter saudade do tempo em que ele concordava comigo. Era preciso que ele, brilhantemente, e eu, modestamente, fizéssemos o que fizemos, mas, com certeza, hoje, é melhor eu ter o direito de questioná-lo, de criticá-lo, e ele ter o direito de me criticar e de me questionar quantas vezes ele quiser. Não estamos mais sob a camisa-de-força de regras que peiam a nacionalidade.

            E, novamente, meu prezado Coronel, voltando ao Exército Brasileiro, mesmo nos momentos mais agudos, eu jamais confundi o Exército Brasileiro em si com os que praticaram arbitrariedades, exageros e excessos, como também sei distinguir, historicamente, a diferença entre o exército alemão brioso e combativo que, em algum momento, teve de servir ao Reich da SS brutal, degenerada. Não misturar as coisas é fundamental para não cairmos no sectarismo de que sou melhor do que Fulano, porque não acho que eu seja melhor do que ninguém, simplesmente acho que temos de buscar a razão das coisas para expressarmos nossa melhor razão.

            Agradeço ao Senador Romeu Tuma. Há esta coisa inédita, prezado Nelson, de recomeçar um discurso. Mas valeu pelo Senador Tuma, valeu por ter vivido ele aquele momento, valeu pela lembrança que trouxe e valeu pela oportunidade de poder repetir que, de fato, quando pensamos nas pessoas, vemos que elas, de um modo geral, têm coisas muito boas dentro delas. Algumas poucas têm dentro delas coisas muito ruins, só coisas ruins, mas a maioria tem coisas boas e coisas ruins. Não há ser humano sem suas misérias, não há ser humano sem seus defeitos graves, não há ser humano sem suas mesquinharias. A inveja não é um sentimento alheio à natureza humana, a inveja é algo que faz parte da natureza humana. Temos de limitá-la, de combatê-la, de cerceá-la, de enfrentá-la, de vencê-la, de derrotá-la. Mas há alguns poucos que são diferentes. Dom Paulo é diferente, James Wright é diferente, Henry Sober é diferente, e Drª Zilda Arns, sem dúvida alguma, é diferente, melhor do que nós, não tenho dúvida.


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