Discurso durante a 79ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Reflexões sobre o transcurso, ontem, dos 124 anos da Abolição da Escravatura.

Autor
Paulo Paim (PT - Partido dos Trabalhadores/RS)
Nome completo: Paulo Renato Paim
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DISCRIMINAÇÃO RACIAL, HOMENAGEM.:
  • Reflexões sobre o transcurso, ontem, dos 124 anos da Abolição da Escravatura.
Aparteantes
Eduardo Suplicy.
Publicação
Publicação no DSF de 15/05/2012 - Página 18124
Assunto
Outros > DISCRIMINAÇÃO RACIAL, HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA, BRASIL, DEMONSTRAÇÃO, REVOLTA, ORADOR, RELAÇÃO, PERMANENCIA, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, PAIS.
  • COMENTARIO, IMPORTANCIA, DECISÃO, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF), REFERENCIA, ESTABELECIMENTO, POLITICA, COTA, NEGRO, UNIVERSIDADE FEDERAL, OBJETIVO, REDUÇÃO, DESIGUALDADE SOCIAL, PAIS.

            O SR. PAULO PAIM (Bloco/PT - RS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Senadora Ana Amélia, ontem foi 13 de maio. Foi também o Dia das Mães. E eu falei sobre o Dia das Mães na sexta. Hoje eu quero falar sobre o 13 de maio, data da dita Abolição da Escravatura. Por ter coincidido com o Dia das Mães, pouco se falou no País sobre essa data.

            É uma data que, para mim, tem que ser lembrada sempre, até porque nós não queremos, não admitimos, não aceitamos escravidão, tortura, assassinato do nosso povo, seja negro, branco, índio, oriental. Não admitimos com ninguém.

            Por isso, Srª Presidente, eu começo, dizendo: somos uma Nação de grande magnitude, que alcançou, sem dúvida, nos últimos tempos, reconhecimento mundial. Mas nem todos sabem que nós somos a nação, fora da África, mais negra. Nossa história registra que 40% dos africanos trazidos para as Américas como escravos chegaram ao Brasil em 1530. E eu acredito que o Brasil não pode, não deseja negar os fatos, nem fugir da sua história.

            A história conta que os africanos foram arrancados da sua terra, do convívio com sua família e jogados em porões dos chamados navios negreiros. Depois foram atirados em senzalas e submetidos a todo tipo de tortura, humilhação e assassinatos. Então, após longos anos de sofrimento, chegou a noite de 13 de maio de 1888.

            A abolição da escravatura foi muito esperada e, quando chegou, o momento foi de festa, foi de alegria. A palavra “liberdade” estava no ar e soava como anúncio de um novo momento, de uma boa vida para negros, brancos e índios. Mas as coisas não aconteceram assim. Todos sabem que aquela abolição não pôs fim de fato à escravidão. Nós estamos vivendo, há 124 anos, a abolição da escravatura não conclusa, tanto que o Supremo Tribunal Federal somente agora, agora, nos últimos dias, aprovou a possibilidade de os negros terem direito a cotas para chegarem a uma universidade. Passados 124 anos, nossa realidade mostra que a população negra continua sofrendo as consequências da escravidão. Vamos aos fatos.

            Pesquisas conduzidas, nos últimos 25 anos, pelo Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Unicamp apontam os seguintes números da chamada discriminação racial presente na sociedade brasileira, que determina diferentes padrões de atendimento e tratamento, por exemplo, de saúde, educação e segurança da população negra.

            O risco de morte por desnutrição é, por exemplo, para o negro, 90% maior do que para aqueles que não são negros. Fonte: Ministério da Saúde. A chance de morrer por tuberculose entre adultos é 70% maior do que para aqueles que não são negros.

            A Organização Mundial da Saúde recomenda, no mínimo, seis consultas de pré-natal. Pois bem. As estatísticas mostram que o índice de mulheres que passam por mais de seis consultas no pré-natal é de 62% entre mães de nascidos vivos que não são negros e de apenas 37% entre as mulheres negras. Ou seja, 62% de mulheres que não são negras fazem os exames seis vezes, e as mulheres negras, 37%, praticamente a metade.

            A mortalidade de crianças negras até o quinto ano de vida é de 36 por mil, diminuindo para 28 por mil se tratar de crianças que não são negras.

            A socióloga, demógrafa e professora Estela Maria Garcia Pinto da Cunha, coordenadora do Nepo, disse que:

Apesar do histórico de vulnerabilidade social em que viveram e vivem os negros desde a época da escravatura, estudos mostram que, mesmo controlando variáveis socioeconômicas, como renda e educação, existe, na saúde, um diferencial [...] [se compararmos com aqueles que não são negros]. Há um efeito racial, [...] [profundo].

            A socióloga Estela Maria frisou que a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, aprovada em 2006 pelo Conselho Nacional de Saúde, tem de ser cumprida, pois enumera os objetivos e estratégias em todo o sistema de saúde para se chegar, de fato, a uma política de igualdade de tratamento. Ela enfatizou que a política é uma resposta do Governo Federal às desigualdades em saúde da população negra e traz como marca o reconhecimento do racismo, das desigualdades etnicorraciais e do racismo institucional como determinantes sociais para as condições de saúde dos negros em nosso País.

            Todos sabem também, Sr. Presidente, que os negros continuam ocupando postos de menor destaque, recebendo salários menores do que aqueles que não são negros. Quando se trata da mulher negra, é pior ainda. As pesquisas mostram que, em média, o homem negro ganha 50% do salário do homem branco. Já a mulher negra ganha, em média, 50% do que ganha a mulher branca. Levando em conta que a mulher que não é negra ganha metade do que ganha o homem branco, imaginem o salário de uma mulher negra, que é a metade da metade da metade, para sobreviver. Como vemos, o preconceito não é só de raça e de cor, é também de gênero.

            Passados 124 anos, a taxa de pobreza entre negros é bem, bem mais alta que entre aqueles que não são negros. A taxa de analfabetismo no Brasil também é maior entre a população negra. Nesse caso, a diferença ultrapassa 50%. Dizia-me hoje de manhã o Senador Cristovam que o número de analfabetos no Brasil fica em torno de 14 milhões. Com certeza, em torno de 70% desses analfabetos são negros.

            Mas, Senadores, vamos às notícias e às estatísticas que foram publicadas, e teremos diante de nós todas as evidências de quanto é forte ainda, infelizmente, o preconceito e a discriminação.

            Por exemplo, nossos heróis negros: ou eles são desconhecidos, como aconteceu com os gênios da engenharia, os irmãos Rebouças, engenheiros, ou a cor de sua pele não é revelada, como é o caso de Machado de Assis, Chiquinha Gonzaga, Aleijadinho e tantos outros. Mas dei destaque aos engenheiros, os irmãos Rebouças.

            É o caso também dos lanceiros negros, considerados por Giuseppe Garibaldi os maiores guerreiros de todos os tempos. Giuseppe Garibaldi, herói da unificação italiana e grande internacionalista, que lutou ao lado dos Farrapos, disse que nunca viu um corpo militar lutar com tanta bravura como os destemidos guerreiros chamados lanceiros negros, que lutavam sem armas de fogo, mas de posse de uma lança um pouco maior do que aquelas chamadas comuns. Lembro aqui que nós, brasileiros, não sabemos sequer o nome dos lanceiros negros. Quando Garibaldi voltou para a Itália, levou um quadro no qual estavam os lanceiros negros e contou sobre sua bravura, que lutavam com lanças e não com armas de fogo. Digam-me se alguém sabe o que aconteceu, quando terminou a Revolução dos Farrapos, com os bravos guerreiros chamados lanceiros negros.

            A Revolta Farroupilha começa em 1835, e os farroupilhas prometiam dar liberdade aos escravos que batalhassem a seu favor. No final de 1844, já há nove anos em guerra, a província desgastada, a guerra parecia perdida. Com o intuito de dar um fim ao conflito, na madrugada de 14 de novembro, foi dada a ordem, pelo poder imperial, para que tirassem as armas dos escravos, mas dos escravos negros. O argumento era o medo de que esses se rebelassem, exigindo o fim da escravidão. Assim, por volta das duas horas da madrugada, as tropas imperiais, conforme diz a história, comandada por Caxias - comandada a longo prazo, porque ele mandou uma carta, que está publicada em inúmeros museus no Rio Grande -, entraram no campo de Porongos, e o corpo dos lanceiros negros, desprotegido, foi então dizimado. Os lanceiros foram assassinados covardemente pelo poder imperial, porque o poder imperial entendia que, se cumprisse o acordo firmado entre os farrapos e os negros, nós estaríamos, segundo eles diziam, acendendo a chama da liberdade, e todos os negros teriam que ser libertados. Para não dar liberdade aos negros - isso ocorreu antes de 13 de maio de 1888 -, eles resolveram matar os negros para que a liberdade não iluminasse os céus do nosso Brasil.

            Srª Presidente, em meu livro Cumplicidade, escrevi uma poesia em homenagem aos lanceiros negros. Já li da tribuna, mas vou ler de novo hoje a poesia que eu escrevi:

Negros Lanceiros

Noite de Porongos

Noite da traição.

Lanceiros, sei a noite em que morreram

- 14 de novembro de 1844.

Não sei o dia em que nasceram.

Não sei os seus nomes.

Só sei que em tempo de guerra

Vocês foram covardemente

Assassinados,

Em nome da paz.

Somos todos lanceiros.

Queremos justiça.

Somos amantes da paz e da vida.

Lanceiros, guerreiros,

Baluartes da liberdade.

Lutaram e morreram sonhando com ela.

Negro lanceiro,

Mesmo quando tombava [ao som das armas de fogo

- e ele nem da lança estava de posse],

Dizia

Sou um lanceiro,

Sou negro,

[Quero] Liberdade, liberdade, liberdade...

            Srª Presidente, trazendo à memória esses 124 anos, eu não estou aqui dizendo que a Lei Áurea não foi importante. A Lei Áurea pode, sim, ser lembrada como processo de luta contra a escravidão, mesmo considerando que, na prática, muitos dos escravos já haviam conseguido a liberdade por seus próprios esforços, ou comprando a liberdade, ou pela decisão do próprio sistema econômico na época, já que não era mais interesse sustentar a escravidão.

            Antes disso, o negro, com a violência do chicote, sofreu e, depois, foi marginalizado. Os resultados disso, obviamente, só poderiam ser a miséria, a tristeza e o preconceito. Ao negro não foi dado direito no momento da abolição. Mesmo que tivesse dinheiro, ele não poderia comprar terra, ele não poderia estudar e também não tinha o direito de exercer a mesma atividade daqueles que estavam chegando de outros países e que não eram negros.

            Ontem foi “13 de maio”. Essa data sempre é um momento de reflexão sobre a exclusão da população negra aqui, no nosso País. Mais do que isso, é um dia para olharmos onde guardamos nosso preconceito.

            Temos clareza dos objetivos presentes em cada ato praticado pelas autoridades a partir do momento em que decidiram colonizar o País numa visão europeia.

            O fato de a escravidão ter sido oficializada trouxe sérias consequências para as relações sociais. A febre do preconceito agiu de forma dura, intransigente e se perpetuou, contaminando as possibilidades da emancipação política do povo negro, infelizmente, até os dias atuais. É só ver. Quantos negros temos no Senado? Um, no universo de 81. Quantos negros temos na Câmara? Talvez 20, no universo de 513.

            Sei que a verdade dói. É uma ferida em que muitos não querem que se toque, inclusive negros. É uma ordem cruel, disfarçada de democracia racial, na qual somente uma parcela da população tem acesso ao saber. Todos sabemos que a educação é uma alavanca da ascensão social, econômica e política de uma Nação. Por isso, queremos o direito à universidade para todos: negros, brancos, índios, pobres.

            Aos negros de ontem e de hoje, o espaço restrito na educação reflete a intenção de deixar as coisas mais ou menos como estão, como que dizendo que o lugar do negro é lá mesmo na favela, não nas universidades. Negro sem ocupar espaço de visibilidade, inclusive nos três Poderes. Por que não lembrar? Onde estão os negros no Executivo, no Legislativo e no Judiciário? Raras exceções. Na área privada, quantos negros são diretores no banco? Um ou outro, se existirem. Nas Forças Armadas, um ou outro. Na reitoria das universidades, um ou outro. Das estatais mesmo, como diretor, um ou outro.

            Aí muitos me perguntam: é preciso mesmo, Paim, as ações afirmativas? Claro que sim. Na década de 50, 60, nos Estados Unidos, eles tiveram as ações afirmativas, e somente agora nós estamos aplicando. E não esqueçam que Barack Obama e Michelle Obama passaram pelas ações afirmativas.

            O sistema de cotas é um exemplo de política afirmativa que visa corrigir as distorções existentes e tem avançado nesse sentido.

            Srª Presidenta, nas instituições públicas de ensino superior que adotaram políticas de ações afirmativas e nas particulares, com o ProUni - Programa Universidade para Todos, que possui vagas para este setor da sociedade: negros, brancos e índios pobres, estamos avançando.

            Às vezes, muitos me perguntam: Mas o jovem branco aceita bem a participação do negro que entra pela política de cotas? Aceita. O nosso jovem, a nossa criança, não tem a maldade do racismo. Eles aceitam e entendem, porque os nossos jovens, em sua rebeldia, querem justiça e acham que todos têm que ter acesso à universidade.

            A missão do Estado é corrigir as desigualdades históricas praticadas contra negros, mulheres, indígenas, idosos, pessoas com deficiência. Não podemos perpetuar as práticas de exclusão e descriminação que existiram durante séculos em nosso País.

            Volto a citar o belíssimo voto do Ministro Relator Ricardo Lewandowski, quando da discussão das cotas no Supremo Tribunal Federal. Naquele dia, disse e repito hoje que o voto do Ministro Relator será contado e cantado em verso e prosa nos cinco continentes do mundo, como um exemplo de combate a qualquer tipo de preconceito.

            Cumprimento, mais uma vez, neste dia que lembra o 13 de maio, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Carlos Ayres Britto, que, na primeira sessão sob sua presidência, colocou em votação o sistema de cotas. No outro dia, foi Relator e também se posicionou, dizendo ser constitucional o ProUni.

            Uma semana depois, também uma ação vinda do Rio Grande do Sul,teve, do mesmo Ministro Ayres Britto, posicionamento favorável ao dizer ser constitucional a política de cotas.

            Srª Presidenta, as medidas afirmativas são temporárias, sei e assim as defendo, são transitórias, mas enquanto a diferença entre os negros e aqueles que não o são for tão grande como é hoje, temos, sim, que manter políticas afirmativas.

            Todo mundo sabe, por exemplo, que os negros libertos em 1888 não tiveram - repito aqui - direito à terra, a serem tidos como trabalhadores formais e não tinham direito a estudar. Mas uma pergunta feita aqui no Brasil - e não por mim - , mas por um presidente de um país africano, um famoso presidente que aqui esteve e foi a uma exposição como a Expointer do Rio Grande do Sul, Senadora Ana Amélia, e, chegando lá, viu que não havia um expositor negro. Aí ele perguntou onde é que estavam os negros. Ele foi ver e visitou diversas exposições no Brasil e, em todos os Estados que ele foi, lá estava o negro cuidando da vaca, do boi, do cavalo, da ovelha e não tinha nenhum como expositor. Ele perguntou: “Mas não existe um negro fazendeiro no Brasil?” Diz-se que ninguém respondeu. Eu respondo. Eu, pelo menos, não conheço um grande fazendeiro negro. Eu não conheço. Pode até existir, mas não conheço um, em um País com cerca de 200 milhões de habitantes. Eu não conheço.

(Interrupção do som.)

            O SR. PAULO PAIM (Bloco/PT - RS) - E por que não existe? Porque as terras foram sendo doadas de pai para filho. E para quem? Para aqueles que não eram negros e que não eram escravos.

            Vocês acham que grandes extensões de terra alguém comprou na época? Recebeu a terra. Só que ao negro, além de não receber do Estado, ele não podia comprar. Por isso que praticamente não existe.

            O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT - SP) - Permite-me um aparte?

            O SR. PAULO PAIM (Bloco/PT - RS) - Vou passar a palavra a V. Exª, Senador Suplicy. Sei da tolerância da Senadora Ana Amélia, porque ontem foi 13 de maio, data da Abolição. Até o Senador Cristovam disse que estaria aqui para aprofundar mais esse debate. Nós temos 5.000 comunidades quilombolas no Brasil. Sabe quantos tem direito à titularidade da terra, que, pela Constituição, seria deles? Não chega a 200. Pequenas terras.

            Por isso, Presidente Ana Amélia, Senador Suplicy - que está aguardando o aparte, eu tenho muita esperança que o Supremo Tribunal Federal, apesar do voto do Relator, que deu o voto e se aposentou - devia ter ficado lá para defender a sua posição. Não vou citar o nome dele aqui. Ele deu o voto contra os quilombolas e no outro dia foi embora, como que com vergonha pelo voto dado. Saiu do Supremo Tribunal e se aposentou. Aposentou-se, sumiu. Então, eu espero que o Supremo Tribunal Federal reverta esse dado contra o decreto do Presidente Lula, que simplesmente diz que deverá o Estado trabalhar para regulamentar a terra dos quilombolas e que comprove que é direito deles. Quem comprovar que a terra é dele seria regulamentado por esse decreto. É o que manda a Constituição no seu art. 68, das Disposições Constitucionais Transitórias.

            Então, o Presidente Lula baixou um decreto: que se cumpra a Constituição. Mas o Ministro Relator, que no outro dia foi para casa, que devia ter ficado lá para sustentar seu voto, simplesmente disse que não, que ele não reconhecia o decreto do Presidente Lula e que entendia que era inconstitucional.

            Srª Presidente, antes de conceder um rápido aparte ao Senador Suplicy, eu quero dizer que estou encaminhando à Casa um projeto de lei que garante que nas escolas, nas escolas militares, seja da Polícia Militar, seja do Exército, seja da Marinha, nós temos que ter uma cadeira específica para o combate ao racismo, ao preconceito. É isso que diz o projeto, porque, infelizmente, nós sabemos muito bem que toda a vez que o negro entra numa área de conflito, em que está sendo procurado alguém por ser ladrão ou coisa parecida, o alvo principal é o negro. E a gente não quer que o poder das Forças Armadas brasileiras, e quando digo isso é a polícia, veja sempre o negro como o alvo que cometeu algum tipo de delito.

            Senador Suplicy.

            O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT - SP) - Prezado Senador Paulo Paim, meus cumprimentos pela reflexão que faz a respeito do 13 de Maio, da abolição da escravidão no Brasil. V. Exª falava de possibilidade de poucos fazendeiros, mas falou também dos quilombos. Na semana passada tive a oportunidade de visitar um quilombo junto a Praia da Fazenda, em Ubatuba, onde ali o negro Zé Pedro, de 73 anos, é como um líder, e pude perceber que ali as coisas funcionam sob a forma de cooperativa e é muito interessante. Eles ali produzem os mais diversos tipos de produtos, inclusive se preocupam com a questão da pesca. Mas ali está um exemplo de como é importante a formação dos quilombos, que dão a possibilidade de os negros hoje terem o acesso ao direito de cultivar, de desenvolver a propriedade na terra, inclusive na forma tradicional dos quilombos, muitas vezes em forma de cooperativa. E gostaria de aqui lhe dar uma boa nova, não sei se tomou conhecimento. No próximo dia 28 estará no Brasil o Prêmio Nobel da Paz, o Arcebispo Desmond Tutu, que foi convidado para o V Congresso Brasileiro de Comunicações. E tenho convicção de que ele nos brindará como se apontara o caminho - na sua linguagem - para o mais alto padrão, as estradas que são caracterizadas pelos anseios de solidariedade, de justiça, de maior igualdade para todos. E certamente, o Arcebispo Desmond Tutu dará uma extraordinária contribuição aqui no Brasil para a causa que V. Exª, aqui no Senado, tão bem tem defendido. Meus cumprimentos.

            O SR. PAULO PAIM (Bloco/PT - RS) - Muito obrigado, Senador Suplicy.

            Senadora Ana Amélia, estou encerrando, mas tenho sido muito tolerante com todos os Senadores. Eu confesso que fico um pouco triste, porque, em pleno dia após o 13 de Maio eu não posso falar cinco minutos a mais sobre a situação do negro no Brasil. E não é por causa de V. Exª. Sinto que há uma certa pressão, e isso me deixa um pouco chateado, mas nós negros estamos acostumados. Sempre dou quase trinta minutos para cada um. E se eu falar dois minutos a mais... mas tudo bem, eu voltarei, voltarei à tribuna outras vezes e falarei desse projeto que estou apresentando, com todo o respeito que tenho pelas Forças Armadas.

 

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            SEGUE, NA ÍNTEGRA, DISCURSO DO SR. SENADOR PAULO PAIM.

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            O SR. PAULO PAIM (Bloco/PT - RS. Sem apanhamento taquigráfico.) -

            Pronunciamento sobre o 13 de Maio e a Lei Áurea.

            Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, nós somos uma Nação de grande magnitude que alcançou um crescimento reconhecido mundialmente.

            E talvez alguns não saibam, mas nós somos também a maior nação negra fora da África.

            Nossa história registra que 40% dos africanos trazidos para as Américas como escravos, chegaram ao Brasil em 1530 e eu acredito que o Brasil não pode e não deseja fugir de sua história.

            E a história conta que os africanos foram arrancados de sua terra, do convívio com suas famílias e jogados em porões de navios negreiros.

            Depois foram atirados em senzalas e submetidos as mais diversas torturas e humilhações. 

            E então, após longos anos de sofrimento, chegou o dia 13 de maio de 1888.

            A Abolição da Escravatura foi muito esperada e quando ela chegou, o momento era de êxtase e a liberdade tão desejada soava como o prenúncio de uma nova vida.

            Mas as coisas não aconteceram do modo esperado. Todos sabem que aquela Abolição não pôs fim, de fato, a escravidão. Nós estamos vivendo há 124 anos a Abolição da Escravatura não conclusa.

            E porque nós a chamamos assim?

            Porque passados 124 anos nossa realidade mostra que a população negra continua sofrendo as consequências da escravidão. Basta citar:

            Pesquisas conduzidas nos últimos 25 anos pelo Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Unicamp apontam que a discriminação racial presente na sociedade determina diferentes padrões de atendimento e tratamento de saúde para a população negra no país.

            O risco de morte por desnutrição é, por exemplo, 90% maior entre crianças negras do que entre brancas (Ministério da Saúde, 2005).

            A chance de morrer por tuberculose, entre adultos, é 70% maior nesta mesma comparação.

            A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda no mínimo seis consultas de pré-natal.

            Pois bem, as estatísticas mostraram que o índice de mulheres que passam por mais de seis consultas no pré-natal é de 62% entre mães de nascidos vivos brancos e de apenas 37% entre mães de nascidos vivos negros.

            A mortalidade de crianças negras até 5 anos de vida é de 36 por mil, diminuindo para 28 por mil ao se tratar de crianças brancas (IBGE, 2006).

            A socióloga, demógrafa e professora Estela Maria Garcia Pinto da Cunha, coordenadora do Nepo, disse que:

“Apesar do histórico de vulnerabilidade social em que viveram e vivem os negros, desde a época da escravatura, estudos mostram que mesmo controlando variáveis socioeconômicas, como renda e educação, existe, na saúde, um diferencial quando os comparamos aos brancos. Há um efeito racial, sim”

            A socióloga Estela Maria frisou que a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, aprovada em 2006 pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), tem que ser cumprida, pois enumera os objetivos e estratégias em todo o sistema de saúde para se chegar a uma igualdade racial.

            Ela enfatizou que a política é uma resposta do governo federal às desigualdades em saúde da população negra e traz como marca o reconhecimento do racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo institucional como determinantes sociais para as condições de saúde dos negros no país.

            Todos sabem também, Senhor Presidente, que os negros continuam ocupando postos de menor destaque e recebendo salários menores do que os brancos. E, quando se trata das mulheres negras, a coisa piora.

            As pesquisas mostram que o homem branco ganha 50% a mais que o homem negro. Já a mulher negra ganha em média, também, cerca de 50 por cento do que ganha a mulher branca.

            Levando em conta que a mulher branca ganha a metade do que ganha o homem branco, imaginem o salário de uma mulher negra. Como vemos o preconceito é por cor e por gênero.

            Passados 124 anos a taxa de pobreza entre negros é bem mais alta que entre brancos.

            A taxa de analfabetismo no Brasil também é maior entre a população negra. Nesse caso a diferença ultrapassa a cinqüenta por cento.

            Srªs e Srs. Senadores, basta vermos as notícias ou acompanharmos as estatísticas e teremos diante de nós todas as evidências do preconceito e da discriminação.

            Vejamos, por exemplo, nossos heróis negros. Ou eles são desconhecidos, como acontece com os gênios da engenharia, os irmãos Rebouças, ou a cor da sua pele não é revelada, caso de Machado de Assis, Chiquinha Gonzaga, Aleijadinho e tantos outros. 

            É o caso também dos lanceiros negros, considerados por Giusepe Garibaldi, os maiores guerreiros de todos os tempos.

            Giuseppe Garibaldi, herói da unificação italiana e grande internacionalista que lutou ao lado dos farrapos, chegou a dizer que nunca viu um corpo militar lutar com tanta bravura como os destemidos guerreiros negros.

            E nós, brasileiros, não sabemos sequer os seus nomes!!!

            Quando Garibaldi voltou para a Itália, levou um grande quadro no qual estavam os lanceiros negros e contou sobre sua bravura, contou que lutavam com lanças longas e não com armas de fogo.

            E, me digam, o que aconteceu com esses bravos guerreiros?

            A Revolta Farroupilha começou em 1835 e os farroupilhas prometiam dar liberdade aos escravos que batalhassem a seu favor.

            Ao final de 1844, já há 9 anos em conflito, a província estava desgastada, a guerra parecia perdida.

            Com o intuito de dar um fim ao conflito, na madrugada de 14 de novembro foi dada a ordem para tirar todas as armas dos escravos.

            O argumento era o medo de que estes se rebelassem exigindo o fim da escravidão. Assim, por volta das 2 horas da manhã, as tropas imperiais entraram nos campos de Porongos e o Corpo de Lanceiros Negros, desarmado, desprotegido, foi dizimado.

            Os lanceiros foram assassinados covardemente pelo poder imperial, pois eles entendiam que se libertassem os lanceiros negros gaúchos teriam que dar a liberdade para todos os negros no Brasil.

            Em meu livro “Cumplicidade” incluí uma poesia que fiz em homenagem aos Negros Lanceiros:

Noite de Porongos

Noite da traição.

Lanceiros, sei a noite em que morreram

- 14 de novembro de 1844.

Não sei o dia em que nasceram.

Não sei os seus nomes.

Só sei que em tempo de guerra

Vocês foram covardemente

Assassinados,

Em nome da paz.

Somos todos lanceiros.

Queremos justiça.

Somos amantes da paz e da vida.

Lanceiros, guerreiros,

Baluartes da liberdade.

Lutaram e morreram sonhando com ela.

Negro lanceiro,

Mesmo quando tombou,

Dizia

Sou um lanceiro,

Sou negro, sou

Liberdade, liberdade, liberdade...

            Sr. Presidente, trazendo à memória esses 124 anos eu não estou dizendo que a Lei Áurea não teve seu significado.

            A Lei Áurea pode, sim, ser lembrada como processo da luta contra a escravidão, mesmo considerando que, na prática, muitos dos escravos já haviam conseguido liberdade por seus próprios esforços ou pela decisão do sistema econômico, que não tinha mais interesse de sustentar a escravidão. 

            Antes o negro sofreu com a violência do chicote, depois, com a marginalização. Os resultados disso foram a miséria, a tristeza e o preconceito.

            Ontem foi “13 de maio”. Essa data sempre é um momento de reflexão sobre a exclusão da população negra brasileira.

            Mais do que isso, é um dia para olharmos onde guardamos nosso preconceito. 

            Temos clareza dos objetivos presentes em cada ato praticado pelas autoridades a partir da colonização europeia no Brasil.

            O fato de a escravidão ter sido oficializada trouxe sérias consequências para as relações sociais.

            A febre do preconceito agiu de forma dura, intransigente e se perpetuou, contaminando as possibilidades de emancipação política do nosso povo negro até os dias atuais.

            Há uma ordem cruel, disfarçada de democracia, na qual somente uma parcela da população tem acesso ao saber.

            Todos sabemos que a educação é uma alavanca de ascensão social, econômica e política de uma Nação.

            Aos negros de ontem e de hoje o espaço restrito na educação reflete a intenção de deixar a ordem das coisas como está - negros nas favelas.

            Negros sem ocupar espaços de visibilidade em qualquer um dos Três Poderes da República, na área privada, nas Forças Armadas, na reitoria das universidades, nas diretorias dos bancos, das estatais etc.

            E aí muitos perguntam por que precisamos de políticas afirmativas? Por que precisamos das cotas, por exemplo?

            O sistema de cotas é um exemplo de política afirmativa que visa corrigir as distorções existentes e tem conseguido isso.

            Nas instituições públicas de ensino superior que adotaram políticas de ações afirmativas e nas particulares que adotam o Prouni - Programa Universidade para Todos, que possui reserva de vagas para negros e indígenas, o desempenho acadêmico dos beneficiados tem sido igual ou superior ao dos que entram pelo sistema tradicional.

            Às vezes as pessoas me perguntam se a convivência entre uns e outros é harmônica e eu afirmo: é, sim. A maioria dos estudantes entende as cotas como um Direito!

            Srªs e Srs. Senadores, a missão do Estado é corrigir as desigualdades históricas praticadas contra negros, mulheres, indígenas, idosos e pessoas com deficiência.

            Não podemos perpetuar as práticas de exclusão e de discriminação institucionalizadas no Brasil.

            Vou citar novamente o belíssimo voto do ministro-relator, Ricardo Lewandowski, na discussão das cotas étnico-raciais nas universidades, que foi iniciada em 25 de abril.

            Repito que esse voto será parâmetro no combate aos preconceitos nos cinco continentes e que espero que o Congresso Nacional faça o mesmo.

            Também repito que foi louvável a atitude do presidente do STF, Ministro Carlos Ayres Brito, ao colocar em votação, na primeira sessão sob sua presidência, a questão das cotas e posicionar-se em favor delas. Citamos também o belo voto que ele deu a favor do Prouni, como relator, onde fomos vitoriosos.

            Pois bem, Sr. Presidente, uma semana depois de aprovar por unanimidade as cotas raciais em universidades públicas, o Supremo Tribunal Federal considerou válido o programa Universidade Para Todos.

            A questão julgada desta vez foi a constitucionalidade do sistema de reserva de vagas adotado pelo Governo Federal nas instituições particulares de Ensino Superior, o Prouni.

            O julgamento teve início em 2008. O relator na época era o ministro Ayres Britto e, com toda coerência, ele defendeu o Prouni afirmando que o programa é constitucional, porque garante um direito básico que é o acesso à educação.

            Ao todo, 1.319 instituições de Ensino Superior em todo o país aderiram ao Prouni. Desde o início do programa, em 2005, mais de um milhão de bolsas já foram concedidas.

            Sr. Presidente, as medidas afirmativas são temporárias e transitórias, acreditamos que as gerações futuras serão recompensadas ao ver efetivamente a brasilidade negra, indígena, branca e oriental estampada de maneira proporcional em todos os setores da nossa sociedade.

            A população negra espera há 124 anos pela igualdade de oportunidades.

            Todo mundo sabe, por exemplo, que os negros libertos em 1888 não tiveram direito às terras, foram substituídos pelos imigrantes como mão-de-obra, ficando marginalizados. Eles também foram proibidos de estudar. O resultado disso está presente na realidade atual: quantos grandes fazendeiros negros nós temos hoje no país? Eu não conheço nenhum.

            Os quilombolas aguardam até hoje pela demarcação de suas terras. Muitos negros arriscaram suas vidas para fugir da escravidão e foram viver em comunidades isoladas, os conhecidos quilombos.

            Lá eles podiam viver da forma que viviam na África. Podiam praticar sua cultura, podiam ter suas crenças.

            Como eu disse há poucos dias, o Judiciário recentemente iniciou debate sobre a demarcação de terras quilombolas, em que o relator deu parecer contrário ao Decreto do Presidente Lula que garantia a demarcação.

            O debate jurídico sobre o Decreto se deu no STF, porque o Congresso Nacional suprimiu do Estatuto da Igualdade Racial, de minha autoria, o artigo que regulamentava esse direito.

            O julgamento não chegou ao final. Só temos o voto do relator contra o Decreto, mas a Ministra Rosa Weber pediu vistas.

            Eu continuo otimista com a reversão do placar do julgamento no Supremo Tribunal Federal, por tratar-se de um direito Constitucional, assegurado no Art. 68 das Disposições Constitucionais Transitórias.

            Eu gostaria de pontuar, Senhor Presidente, que o Brasil é uma das principais economias do mundo e um dos países que melhor resistiu aos efeitos da crise internacional.

            Nós temos conseguido reduzir as taxas de analfabetismo, pobreza, desnutrição infantil e aumentado a quantidade de anos de estudos de nossa gente.

            Mas, isso não pode fechar nossos olhos para as fortes desigualdades de gênero, raça e etnia que ainda marcam o nosso Brasil.

            Eu procuro pautar em minhas falas também, a questão da concentração de renda, porque vejo nela uma tremenda injustiça social.

            Ela afeta a todos. No entanto, também nesse ponto, a desigualdade entre brancos e negros fica bem demarcada.

            De acordo com os dados do IBGE (2009), cerca de 70% da população considerada pobre é negra, enquanto entre os 10% mais ricos, apenas 24% são negros.

            Enfim, a verdade é que precisamos de políticas afirmativas.

            Em reportagem recente do Programa das Nações Unidas Para o Desenvolvimento - Brasil, a chamada foi: Políticas públicas são fundamentais para redução da desigualdade racial, diz ONU.

            A Organização das Nações Unidas no Brasil reafirmou seu apoio ao Estado brasileiro e à sociedade civil na aceleração do processo de desenvolvimento nacional.

            Em particular, a adoção de políticas que possibilitem a maior integração de grupos, cujas oportunidades do exercício pleno de direitos têm sido historicamente restringidas, como as populações de afrodescendentes, indígenas, mulheres e pessoas com deficiências.

            O Estatuto da Igualdade Racial, Lei de nossa autoria, é um instrumento de combate à discriminação racial e as desigualdades raciais.

            Há poucos dias o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades- CEERT promoveu o lançamento do material voltado ao Estatuto da Igualdade Racial, “Nova Estatura para o Brasil” em parceria com a SEPPIR e o Instituto Feira Preta.

            Para enriquecer o lançamento da Cartilha foi feita uma Roda de Conversa para refletir sobre o tema: “Direitos passados a limpo - Estatuto da Igualdade Racial”

            Essa Cartilha foi criada para auxiliar a população a compreender melhor a Lei, mediante uma espécie de tradução desse instrumento jurídico em um texto mais curto e com uma linguagem de fácil compreensão.

            Consta na Cartilha que, por certo, nada substitui a leitura da íntegra da Lei 12.288/2010. Mas que também é verdade que a força de uma lei depende em grande medida de que as pessoas a conheçam e saibam utilizá-la em defesa dos seus direitos e interesses.

            Para finalizar, Srªs e Srs. Senadores, relembro que esse material, voltado ao Estatuto da Igualdade Racial é: uma “Nova Estatura para o Brasil”.

            Faço questão de ler trecho da apresentação da cartilha, assinada pelo Prof. Dr. Hédio Silva Jr.:

            “Estatura significa magnitude, grandiosidade, importância, relevo.

            A combinação dos dois substantivos que compõem o título - estatuto e estatura - sintetiza um compromisso que todos, sociedade e governos, devemos assumir: a promoção da igualdade racial como exigência básica para que nosso país tenha uma nova estatura.

            Oxalá esta cartilha contribua para que, no prazo mais curto possível, o estatuto se transforme em estatura”.

            Meus caros Senadores e Senadoras, meus amigos que acompanham esta sessão,

            É assim que, aos poucos, com muita firmeza, determinação e amor nós estamos construindo e caminhando para a abolição.

            É assim que negros, brancos, índios, orientais estão somando forças para que a verdadeira Abolição aconteça.

            E foi também, imbuído desse sentimento, que eu apresentei projeto de Lei do Senado que inclui a disciplina Direito e Relações Étnicas nos cursos de graduação em Direito, de formação de oficiais e soldados da Polícia Militar, delegados de polícia e agentes, de delegados de polícia e agentes da Polícia Civil e de oficiais e soldados das Forças Armadas Brasileiras.

            Sua justificativa diz: “Não haverá democracia no Brasil sem a disseminação da justiça e da equidade para todos os cidadãos, a despeito de suas diferenças e particularismos”.

            No que tange às seculares desigualdades socioeconômicas, neste Brasil que foi o último país do mundo a desacorrentar seus escravos, no tardio ano de 1888, cumpre relembrar que, em todos os indicadores, conforme mensuração de instituições respeitáveis, como o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), as diferenças de renda e de escolaridade entre os gêneros masculino e feminino, em desfavor das mulheres, sobrepõem-se as diferenças entre raças, em indisfarçável prejuízo dos afrodescendentes.

            Vinte anos após a promulgação da Constituição da República, resta claro que o nosso maior desafio, no século XXI, jaz na construção de um ambiente pós-racial no País, que efetivamente acabe de vez com o racismo, atualmente velado, porém renitente na consciência nacional.

            O reconhecimento do problema racial foi nosso primeiro passo acertado, ante o caráter peremptório dos indicadores sociais, que reconfirmam o brilhante insight do compositor Marcelo Yuka, ao afirmar, em bela letra de música, que “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”.

            A despeito da legislação antirracismo no Brasil, bem sabemos que é ínfimo o total de processos judiciais que chegam a bom termo nos tribunais brasileiros, com condenações efetivas dos perpetradores de barbarismos, manifestações, atos e práticas racistas.

            A Constituição Federal, indubitavelmente avançada no combate ao racismo - tanto no plano externo, quando explicita, no art. 4º, inciso VIII, o objetivo primordial da República de repudiar o terrorismo e o racismo, nas suas relações internacionais; quanto no plano interno, ao definir, no art. 5º, inciso XLII, a prática do racismo como crime inafiançável, imprescritível e sujeito à pena de reclusão - dificilmente encontra concretude na vida real, no “mundo fático”, conforme a expressão usual entre os juristas.

            Raríssimos, minguados, quase inexistentes são os casos de condenação levada a termo de crimes de racismo no Brasil, a despeito da notória e reiterada ocorrência de tais práticas, e da norma jurídica impositiva de combate ao racismo, a partir do comando da própria Lei Maior. E a que se deve esse descompasso, senão à relativa permissividade social no que tange à discriminação de negros e índios?

            E como combater a inércia e omissão da paquidérmica máquina judiciária, senão pela infusão, nas consciências e nas almas dos futuros operadores do Direito e da Segurança Pública, daquilo que, miseravelmente, se convalida em letra morta na legislação pátria?

            Por esse motivo, optamos por oferecer ao Parlamento a ideia de disseminar, nos cursos de direito e nas academias das forças da ordem, a principiologia teórica e humanista que garante a todo ser humano tratamento equânime da lei por sua condição intrínseca de ser humano, igual em dignidade a todo e qualquer dos seus congêneres, e dotado de direitos e de obrigações válidas erga omnes perante a sociedade e o Estado.

            O conhecimento prudencial que o acúmulo dos anos nos propicia empresta foros de axioma à viva impressão de que somente a educação poderá nos salvar, sobretudo a educação para a cidadania.

            Aproveitamos o ensejo para dividir o mérito da iniciativa com o cidadão Almiro de Sena Soares Filho, Promotor de Justiça do Ministério Público da Bahia, que nos encaminhou a bem refletida sugestão que redundou no presente projeto, a partir de sua experiência na Promotoria de Combate ao Racismo e Intolerância Religiosa no Estado em que vive e trabalha.

            O Brasil que teremos é o Brasil que prefiguramos em nossos sonhos, e não há cidadão de bem que não vislumbre país melhor a partir da mitigação e, preferencialmente, da completa neutralização do racismo e da discriminação injusta, de qualquer natureza.

            Nesse dia feliz, não será o camburão a imagem repaginada do navio negreiro, exatamente porque no seu interior não discriminatório caberá tanto o afro-brasileiro à margem da lei quanto o racista - também ele um criminoso -, o falsificador de remédios, o praticante da pedofilia, o macho ignóbil que perpetra violência física contra a companheira, o fraudador de concursos públicos e - por que não dizê-lo? - todo o séquito de ladrões do erário.

            O grupo de maus brasileiros, no entanto, será cada vez menor, na medida em que a educação propiciar intensas luzes para a nova sociedade - livre, porque justa e solidária - que haveremos de construir.

            Esperamos, nesses termos, contar com o apoio dos nobres Senadores para a aprovação deste projeto.

            Era o que tinha a dizer.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/05/2012 - Página 18124