Discurso durante a 41ª Sessão Especial, no Senado Federal

Destinada a lembrar os 50 anos do golpe civil e militar de 1964, nos termos do Requerimento nº 56/2014, de autoria do Senador João Capiberibe e outros Senadores.

Autor
Randolfe Rodrigues (PSOL - Partido Socialismo e Liberdade/AP)
Nome completo: Randolph Frederich Rodrigues Alves
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SISTEMA DE GOVERNO, FORÇAS ARMADAS, ESTADO DEMOCRATICO.:
  • Destinada a lembrar os 50 anos do golpe civil e militar de 1964, nos termos do Requerimento nº 56/2014, de autoria do Senador João Capiberibe e outros Senadores.
Publicação
Publicação no DSF de 01/04/2014 - Página 11
Assunto
Outros > SISTEMA DE GOVERNO, FORÇAS ARMADAS, ESTADO DEMOCRATICO.
Indexação
  • CRITICA, REGIME MILITAR, IMPEDIMENTO, EVOLUÇÃO, ECONOMIA, DIREITOS SOCIAIS, CULTURA, ARTES, ESPORTE, BRASIL, IMPORTANCIA, COMBATE, DITADURA, COLABORAÇÃO, FORÇAS ARMADAS, BUSCA, VERDADE, APOIO, REVISÃO, LEI DE ANISTIA.

            O SR. RANDOLFE RODRIGUES (Bloco Apoio Governo/PSOL - AP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Meu caríssimo Senador, João Capiberibe, primeiro signatário, autor desta sessão solene, sou fã de um trecho de música de Nando Reis que diz que “tudo o que acontece na vida tem seu momento e seu destino”.

            Quis, esta semana, em lembrança ao Cinquentenário do Golpe Civil e Militar de 1964, que este Senado da República, ao fazer lembrança a esse golpe, iniciasse esta semana com uma sessão solene lembrando o golpe, proposta feita por um Senador do meu Estado. Esta semana terminará, na sexta-feira, com outra sessão solene proposta por mim, Senador também do Amapá, onde começa o Brasil, para celebrar o Cinquentenário do Comício da Central do Brasil. São dois eventos do mesmo ano, 1964, ano intenso e que marcou, indelevelmente, a vida de todos nós.

            Antes de falar disso, quero estender os cumprimentos a este que viveu os intensos acontecimentos daquele dia 31 e 1º de abril de 1964, este companheiro que constará no meu currículo como tendo convivido com ele aqui e ter aprendido com ele neste Senado da República: Senador Pedro Simon. Estendo também meus cumprimentos à minha querida companheira de Bancada, a Deputada Federal Janete Capiberibe.

            Estendo ao Sr. Vereador, Ouvidor-Geral da República, Ministro da Defesa, Waldir Pires, que também esteve aqui naquele intenso dia de 1º de abril de 1964 e, junto com Darcy Ribeiro, foi dos últimos a sair do Palácio do Planalto, a insistir, até os últimos instantes, à legalidade constitucional daqueles dias de 1964.

            Waldir e Darcy foram os últimos a resistir, no Palácio do Planalto, e a insistir na constitucionalidade, na não ruptura da constitucionalidade.

            Diz a história que as luzes do Planalto foram acesas na marra, para dar posse, na marra, ao então Presidente da Câmara Ranieri Mazzilli, que, dias depois, deu posse ao primeiro Presidente do regime, o Gal. Humberto de Alencar Castelo Branco. Diz a história que as luzes foram acesas.

            Na verdade, Waldir, você e Darcy, naquele dia 1º de abril, insistiam em que as luzes ficassem acesas. As luzes, naquele dia, foram apagadas por 21 anos. Então, assim, eu o cumprimento.

            Cumprimento também o Sr. Jornalista José Maria Rabelo e quero cumprimentar meu querido, com quem me aconselho, assim me permita, e a quem muito ouço, Luiz Cláudio Cunha, jornalista que muito contribui com a sua escrita, a sua caneta, misturada com poesia, sobre a resistência ao regime de 64.

            Cumprimento também o Sr. Marcos Magalhães.

            Há 50 anos, houve um país interrompido. O país de 1964 era um país que estava dando certo. É este país, de 50 anos atrás, que nós queremos aqui destacar. Waldir, é o País, Waldir, Simon, que vocês lembram muito bem, de que nós nos referenciamos pela história, nós temos referência na história e dava muito orgulho ser brasileiro.

            Era o país que no esporte tinha tenistas como Maria Esther Bueno, era o país que tinha no boxe gente como Éder Jofre, era o país do futebol bicampeão mundial, primeiro nos campos da Suécia e depois nos campos do Chile, o país de Pelé, de Garrincha, de Nilton Santos, de tantos outros no futebol. O País contemporâneo, progressista, culturalmente relevante. O País da Bossa Nova. Era o País em que, entre 1961 e 1963, música brasileira, com certeza, como o Samba de Uma Nota Só, de Tom Jobim e Newton Mendonça, havia sido gravada por pelo menos 15 músicos americanos e europeus. O Brasil de 61, 63, 64, nós tínhamos certeza de que não era o país do futuro; era o país do presente. Era o país que estava dando certo.

            Era o país que tinha revistas lançadas aqui, como a revista Senhor, que estavam entre as mais sofisticadas do mundo. Revistas que tinham no seu elenco nomes como Clarice Lispector, Paulo Francis, Ferreira Gullar, Ivan Lessa, José Guilherme, Luís Lobo e, no cartum, nomes como Jaguar.

            Nós convivíamos, o Brasil de 1964 convivia, no dia a dia... Com todo o respeito aos livros de autoajuda da atualidade, mas, nas prateleiras das livrarias, a geração de 63, 64 convivia com a poesia de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto.

            Na narrativa, os jornais tinham a companhia de Carlos Heitor Cony, Sérgio Porto, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, que era ainda um estreante.

            Há 18 dias do golpe de 64, exibido no comício da Central do Brasil, estreava uma obra-prima do cinema nacional: Deus e o Diabo na Terra do Sol. E estava sendo filmado - interrompido pelo Golpe de 64 -, no sertão de Galileia, Cabra Marcado para Morrer, que só foi retomado depois, com a abertura política. Àquela altura, quem estava com os dias marcados para morrer era a ditadura.

            Na verdade, não era um País que estava dando certo somente no futebol, nas artes, na cultura. Nós tínhamos um País que vinha de um apogeu dos anos 50, que progressivamente estava dando certo. A nossa média de crescimento econômico era de 11% ao ano. Era o País que tinha construído Brasília no meio do Planalto Central. Tínhamos construído as indústrias de base. Tínhamos vindo, nos anos 40, nos anos 50, da Companhia Siderúrgica Nacional. E, além de construir Brasília, tínhamos uma potente indústria automobilística.

            Nós mudávamos para uma Nação concretamente industrializada. Basta ver a nossa pauta de exportações de 1963, que faz inveja à nossa pauta de exportações de 2014. Em 1963, nós tínhamos uma pauta de exportações de produtos manufaturados, enquanto hoje estamos exportando matéria-prima. Estamos nos transformando numa enorme fazenda de soja, enquanto em 1963, naquele governo tão criticado de João Goulart, nós éramos um País de exportação de produtos beneficiados aqui no Brasil, gerando empregos aqui no Brasil.

            Aquela história, repito, que a ditadura colocou na nossa cabeça de país do futuro... O Brasil, em 1963, 1964, era um País do presente, era um País de que não tínhamos dúvida de que daria certo.

            A ditadura interrompeu esse País. Não há mediações para dizer que a ditadura construiu, durante 20 anos, algo de bom neste País. E é necessário dizer claramente quem foram os agentes que interromperam esse ciclo virtuoso da história nacional.

            É Chico Buarque que nos diz: “A história é um carro alegre que atropela indiferente todo aquele que a negue”.

            Talvez sejam inspirados na poesia de Chico Buarque que, na atualidade, alguns, em editoriais, ou alguns tenham tentado, a qualquer custo, fazer autocrítica do erro crasso para o País de ter apoiado o Golpe de 1964.

            É porque a história, meu querido Senador Capiberibe, é implacável. Aqueles que cometeram o deslize histórico de interromper aquele País que está dando certo podem ter vencido no momento, como diz Cristovam, como dizia Darcy, podem ter sido vitoriosos no momento, podem ter rompido o fluxo vitorioso de um país, mas as gerações do futuro e a história haverão de contar quais foram os responsáveis e quem apoiou aquele Golpe de 1964, que trouxe infelicidade e morte e desagregação social para a vida brasileira. Porque é necessário dizer que o País não deu certo nos 20 anos.

            Não me digam que deu certo no crescimento econômico. Mesmo os 14% de crescimento econômico em 1970, no auge do crescimento econômico da ditadura, teriam ocorrido em qualquer conjuntura e teriam ocorrido muito melhor se fosse na democracia.

            Não é demais destacar que, em 1963, o índice de Gini, no Brasil, era de 0,49, ou seja, nós éramos um País mais igualitário. A ditadura produziu um País de desigualdade. Em 1973, nós tínhamos um índice de Gini de 0,69. Nós produzimos um País mais desigual, e, ainda hoje, em 2014, nós nem sequer recuperamos o índice de Gini de 1963, ou seja, a ditadura produziu um País de desigualdade. Nem mesmo os anos de redemocratização conseguiram reconstituir o padrão de igualdade social que nós tínhamos antes de 1964.

            O tal “milagre econômico” de 1970, que fez o bolo econômico brasileiro crescer a 14%, só serviu para criar uma legião de miseráveis, uma legião de analfabetos e desigualdade social no Brasil, principalmente nas regiões mais pobres do País: no Nordeste brasileiro, na Amazônia e no Centro-Oeste.

            A industrialização criou bolsões de miséria, em especial nas grandes cidades do País. O saldo da ditadura, ainda na economia? A nossa dívida externa em 1964 era de US$3,4 bilhões. Vejam que a democracia, os anos de desenvolvimentismo, com a construção de Brasília, com o incremento da indústria automobilística, mesmo com tudo isso...

            Ora, diziam que Juscelino endividou o Brasil para construir Brasília e para fazer a indústria automobilística. Em 1964, a nossa dívida externa era de US$3,4 bilhões. Em 1985, o regime ditatorial deixou o Brasil com uma dívida externa de US$105,2 bilhões. Se houve um período que endividou o Brasil foi o período ditatorial e não o período da democracia de Juscelino, de João Goulart, de Getúlio! (Palmas.) Nesse período, o Brasil se industrializou. Foi a ditadura que endividou o Brasil para criar um famigerado aparato de repressão para matar, torturar e exilar brasileiros.

            Foi a ditadura que criou uma das maiores concentrações de renda da América Latina e uma das maiores concentrações de renda do continente. Foi a ditadura que criou um regime de opressão que destruiu famílias brasileiras. Foi de 6.016 o número de torturados, 210 o número de mortos, 146 o número de - abre aspas - “desaparecidos” - fecha aspas. Vamos arredondar os números: mais de 300 foi o número concreto de mortos.

            Falaram em marcha de família para salvar a democracia.

            Destruíram mais de seis mil famílias brasileiras. Em nome da democracia destruíram indelevelmente a democracia brasileira por mais de 20. Isso além de sacrificarem, amputarem da vida nacional uma geração de políticos.

            Havia uma bela geração de políticos que poderia ter nascido no final dos anos 60 e durante os anos 70. Que bela geração de políticos nós poderíamos ter, com Honestino Guimarães frequentando hoje, quem sabe, os bancos do Senado da República ou da Câmara Federal, uma geração de políticos com Zuzu Angel, uma geração de políticos com tantos e tantos outros que sofreram e morreram diante da ditadura, uma geração de políticos com todos aqueles que foram chacinados na Guerrilha do Araguaia. Uma bela geração de políticos teve sacrificado o direito de militar na vida política brasileira.

            E tentam, a pretexto disso, ainda dizer que houve guerra. Não houve guerra. Houve chacina de um lado sobre outro. Não se justifica o que ocorreu nos piores anos da nossa história.

            A democracia chegou, mas o que aconteceu? O processo de transição democrática no Brasil não foi de transição democrática, foi de transação. Foi uma transição democrática totalmente negociada sob a tutela militar, sob a tutela de todos os processos de transição democrática acontecidos neste continente. Para fazer a comparação com outros 60 processos ocorridos no mundo, o pior foi aqui no Brasil.

            Só para constituir uma Comissão Nacional da Verdade nós demoramos 25 anos, e a nossa Comissão Nacional da Verdade é a mais limitada.

            Um exemplo da cara da ditadura é o Sr. Paulo Mulhões, Coronel reformado do Exército, que, essa semana, na Comissão Nacional da Verdade, em depoimento, disse cinicamente: “matei e torturei só o que foi necessário”. É essa a cara do pior regime da história nacional, da história do País. (Palmas.)

            É essa a cara do pior tipo de regime que nós tivemos.

            Por isso, para isso, essa reação não é a reação do ódio; é a reação necessária da justiça.

            Nós, Senador Capiberibe, Senador Simon, nos alinhamos com a campanha da Anistia Internacional pela revisão da Lei da Anistia; nos alinhamos com essa campanha porque fundamentalmente é uma campanha da cidadania. Não que ainda haja muitos para pagar por ela, mas porque a vida é feita de expiações. A vida nacional não pode viver dessa chaga indelével de 1979, de uma lei que foi aprovada no ventre de um regime autoritário por uma maioria imposta pelo regime autoritário. A vida vive de expiações.

            As nossas Forças Armadas atuais devem ser o resultado de um novo processo da redemocratização nacional. Elas têm que ter a compreensão de que processos iguais aos de 1964 não podem ocorrer jamais, jamais na história brasileira. O primeiro passo para elas reconhecerem isso é elas admitirem o que aconteceu. O primeiro passo para as Forças Armadas nunca mais intervirem na história brasileira é pedirem desculpas ao que aconteceu em 1964. É o primeiro passo para não intervirem nunca mais.

            Por isso, não pode se aceitar por parte do nosso Ministério da Defesa que, em relação ao que aconteceu, seja respondido o seguinte: “o Estado brasileiro, ao pagar as indenizações, já de certa maneira pediu desculpas”.

            Os mortos não são cifrões. Agora, cabe, sim, esclarecer a verdade. Estamos plenamente de acordo e cooperando com isso em tudo. As Forças Armadas nada têm a ver com aquilo.

            Nós ouvimos em resposta declarações da Comissão Nacional da Verdade, do seu Presidente Pedro Dalari, dizendo o seguinte: a Comissão Nacional da Verdade espera mais, espera mais proatividade, espera uma contribuição mais efetiva das Forças Armadas. O que ocorre é que essa contribuição não tem ocorrido. A ausência de contribuição das Forças Armadas deste País na democracia com a recuperação da verdade em relação ao que ocorreu na ditadura é cúmplice de todos os crimes e de todo o atraso que aconteceu nesses 21 anos.

            O que se espera da Armada Nacional é um pouco mais de cooperação para que se reencontre a verdade desses 21 anos.

            Coronéis como Paulo Mulhões só foram encontrados não foi devido às Forças Armadas, foi devido à atuação de trabalhos heroicos de comissões estaduais da verdade como a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, presidida por Wadi Damus, e de pessoas, de militantes heróicas, como a companheira Nadine Borges, que encontrou esse Coronel reformado do Exército, o colocou à luz e o levou à Comissão Estadual da Verdade, às páginas dos jornais e à Comissão Nacional da Verdade. Se tivéssemos de esperar pela contribuição das nossas Forças Armadas, não teríamos esse reencontro com a verdade histórica.

            Esperamos das Forças Armadas, em uma democracia, a sua contribuição verdadeira para encontrarmos tudo o que aconteceu durante a ditadura. Para transitarmos para um regime democrático de fato, não queremos revanchismo, não queremos vingança, só se espera uma coisa: o reencontro definitivo com a verdade; o reencontro definitivo com a justiça.

            É por isso que é fundamental a revisão da Lei da Anistia. Nesse sentido, há inúmeras iniciativas neste Congresso Nacional: projetos de lei da Deputada Luiza Erundina na Câmara dos Deputados, para o qual, lamentavelmente, já teve parecer negativo na Comissão de Constituição e Justiça; Projeto de Lei nº 237, de minha iniciativa aqui no Senado, na Comissão de Direitos Humanos, que, para nossa felicidade, encontra-se na relatoria do Senador Capiberibe.

            O fundamental é que esses projetos avancem aqui no Congresso.

            Não se encontra a verdade se não houver o reencontro histórico, a expiação por parte das Forças Armadas com o que aconteceu no passado, enquanto não se reconhecer, de fato, que o que aconteceu em 1964 foi um erro, enquanto não se reconhecer, de fato, que esse tempo, página infeliz da nossa história, deve ser, de fato, desbotado da memória das nossas novas gerações. (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 01/04/2014 - Página 11