Discurso durante a 105ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Defesa da criação de instrumentos que punam severamente empresas que se utilizam de trabalho escravo; e outros assuntos.

Autor
Paulo Paim (PT - Partido dos Trabalhadores/RS)
Nome completo: Paulo Renato Paim
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
COMERCIO EXTERIOR, POLITICA EXTERNA. MINISTERIO PUBLICO, POLÍTICA DE INFORMAÇÃO. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, DIREITOS HUMANOS, LEGISLAÇÃO TRABALHISTA.:
  • Defesa da criação de instrumentos que punam severamente empresas que se utilizam de trabalho escravo; e outros assuntos.
Aparteantes
Cristovam Buarque.
Publicação
Publicação no DSF de 19/07/2014 - Página 123
Assunto
Outros > COMERCIO EXTERIOR, POLITICA EXTERNA. MINISTERIO PUBLICO, POLÍTICA DE INFORMAÇÃO. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, DIREITOS HUMANOS, LEGISLAÇÃO TRABALHISTA.
Indexação
  • REGISTRO, RELEVANCIA, REUNIÃO, GRUPO ECONOMICO, PARTICIPAÇÃO, BRASIL, LOCAL, BRASILIA (DF), DISTRITO FEDERAL (DF), COMENTARIO, IMPORTANCIA, ANUNCIO, REFERENCIA, CRIAÇÃO, BANCO DE DESENVOLVIMENTO, FUNDO DE RESERVA, OBJETIVO, FORTIFICAÇÃO, AGRUPAMENTO, PAIS ESTRANGEIRO.
  • REGISTRO, IMPORTANCIA, PROJETO, AUTORIA, MINISTERIO PUBLICO DO TRABALHO, MOTIVO, DEBATE, ASSUNTO, DESENVOLVIMENTO, CIDADANIA.
  • REGISTRO, RELEVANCIA, DEBATE, REFERENCIA, PROPOSTA, EMENDA CONSTITUCIONAL, OBJETIVO, PROIBIÇÃO, TRABALHO ESCRAVO, CRITICA, PROJETO DE LEI, SENADO, ASSUNTO, REGULAMENTAÇÃO, MÃO DE OBRA, ESCRAVO, MOTIVO, IMPORTANCIA, DEFESA, DIREITOS E GARANTIAS TRABALHISTAS.

            O SR. PAULO PAIM (Bloco Apoio Governo/PT - RS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Presidente, eu quero aproveitar o dia de hoje, a exemplo de outros Parlamentares, para falar também sobre a importância que foi aqui no Brasil a reunião da cúpula dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).

            O nosso País tem sediado uma série de encontros internacionais. Lembramos aqui que, na quarta-feira passada, dia 16, os Presidentes do Brasil, da Rússia, da Índia, da China e da África do Sul iniciaram, oficialmente, a 6ª Cúpula dos BRICS. Aqui, em Brasília, o Palácio do Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores, foi o centro das articulações para esse grande evento realizado em nosso País.

            Além dos cinco Presidentes e Primeiros-Ministros dos países que compõem os BRICS, participaram, como convidados, mandatários de 11 nações sul-americanas, da Unasul, entre eles a Presidente da Argentina, Cristina Kirchner, e os Presidentes do Uruguai, José Mujica, e da Bolívia, Evo Morales.

            A cúpula dos BRICS no Brasil iniciou na segunda-feira, em Fortaleza, com reuniões entre ministros da Fazenda, presidentes de bancos centrais e de bancos de desenvolvimentos dos países que fazem parte do grupo.

            Na terça, dia 15, também na capital cearense, ocorreram reuniões entre chefes de Estado e de Governo. A medida de maior impacto, não só no Brasil, mas no mundo, foi o anúncio do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) para o BRICS. O projeto do banco dos BRICS vem sendo discutido desde 2012. No ano passado, em Durban, na África do Sul, os cinco países deram sinal verde para essa iniciativa. O NBD foi criado à semelhança do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI).

            O NBD, Sr. Presidente, vai ter capital inicial de US$50 bilhões, divididos igualmente entre os membros fundadores. Entretanto, esse valor poderá chegar a US$100 bilhões. Os empréstimos também poderão ser concedidos a países emergentes, fora dos BRICS. Os países terão prazo de sete anos para disponibilizar o valor em parcelas crescentes. No caso do Brasil, o aporte virá de recursos do Tesouro.

            O acordo também permite que novos países se associem a esse importante banco, que terá responsabilidade social. Entretanto, os cinco fundadores deverão manter um mínimo de 55% de participação conjunta.

            O Brasil poderá indicar o primeiro presidente do Conselho de Administração do banco. Já a Índia, que apresentou a ideia inicial, a da criação do banco, terá o direito de indicar o primeiro presidente, e a Rússia, o presidente do Conselho de Governadores. A China sediará a instituição, que ficará em Xangai. A África do Sul vai sediar o Centro Regional Africano do banco.

            Pelos termos do acordo, haverá rotatividade na presidência do banco. Depois da Índia, o Brasil terá o direito a chefiar a instituição, seguido por Rússia, África do Sul e China. Os mandatos serão de cinco anos.

            A criação do banco precisa ser aprovada pelos congressos dos países para sair do papel, mas tenho a certeza de que o Congresso brasileiro assinará e aprovará, vai avalizar essa ideia tão importante, eu diria até para combater a pobreza no mundo e para contribuir com o desenvolvimento, pensando no bem-estar da humanidade, no bem-estar do Planeta.

            Quero registrar aqui a posição do Presidente do Senado e do Congresso Nacional, Senador Renan Calheiros, que prometeu celeridade na aprovação do banco do BRICS, se depender desta Casa. Segundo ele, “a criação do banco se trata da mais importante iniciativa das últimas décadas para a democratização do acesso ao crédito, principalmente para os países em desenvolvimento”.

            Outro acordo dos BRICS propiciou o Arranjo Contingente de Reservas (ACR), que será capitalizado em US$100 bilhões para dar apoio aos membros com problemas no balanço de pagamentos.

            Sr. Presidente, Senador Ruben Figueiró, e Senador Mozarildo, sempre presentes nesta Casa, os países que compõem o BRICS estão de parabéns pela criação desse novo banco.

            Aqui, cito o que publicou o jornal inglês Financial Times. Lá a manchete foi: “Notável demonstração de como a ordem econômica está mudando”.

            A Presidente Dilma Rousseff destacou que a criação do Novo Banco de Desenvolvimento não é uma resposta à falta de reforma do FMI: “É uma resposta às nossas necessidades”.

            Sr. Presidente, eu queria, na mesma linha, avançando aqui nos meus registros, fazer um pronunciamento sobre o projeto chamado PCDLegal. Faço aqui um registro relativo ao material que recebi do Ministério Público do Trabalho, um material muito importante, interessante. Diga-se de passagem, são publicações que fazem parte do projeto PCDLegal, uma biblioteca virtual gratuita, idealizada pelo Ministério Público do Trabalho.

            Qual o objetivo dessas cartilhas, dessas revistas, inclusive em quadrinhos?

            Desde a minha primeira campanha, na Constituinte ainda, sempre usei a revista em quadrinhos como forma de chegar à população.

            O material é muito bem elaborado, oferece conhecimento sobre temas importantes para o desenvolvimento da cidadania, em especial para os 46 milhões de brasileiros que, de acordo com o IBGE, apresentam algum tipo de deficiência. As publicações incluem títulos como “O Ministério Público do Trabalho e os Direitos dos Trabalhadores”, o que é muito importante.

            Li toda a cartilha, que foi muito bem elaborada. Parabéns ao Ministério Público!

            Outros títulos são: “O Ministério Público e o Trabalho Infantil: Mitos e Verdades”, “O Ministério Público e a Inserção com Inclusão”, “O Ministério Público, o Trabalhador e seus Direitos”, “A Lei de Cotas em Perguntas e Respostas”. Essas são algumas das cartilhas que recebi.

            Sr. Presidente, é importante destacar que, para assegurar que a mensagem alcance todos os brasileiros, o Ministério Público do Trabalho desenvolveu um espaço bilíngue, ou seja, a qualquer momento, o usuário pode optar por um dos idiomas oficiais do Brasil: Português ou Libras, que é a Língua Brasileira de Sinais. O endereço eletrônico para acesso ao conteúdo dessas publicações tão bem elaboradas é www.pcdlegal.com.br.

            Também é preciso dizer que o conteúdo das publicações está disponível para ser exibido no modo de textos, áudios e vídeos. O usuário pode consultar o conteúdo não somente pelo computador, mas também por meio do tablet e das redes sociais.

            Considero esse projeto sensacional. Quero aqui agradecer ao Procurador do Trabalho Estanislau Tallon Bozi, de Vitória, Espírito Santo, que, gentilmente, enviou esse material ao meu gabinete, para que eu tomasse conhecimento e desse também um espaço no Senado à devida publicidade.

            Meus parabéns ao Ministério Público da União, ao Ministério Público do Trabalho, por esse belo projeto e pela oportunidade que ele oferece a um público tantas e tantas vezes excluído! Dou meu total apoio ao Projeto PCDLegal.

            Sr. Presidente, eu sei que esta Casa deverá aprofundar o debate sobre a questão do trabalho escravo. Aprovamos já a PEC de combate ao trabalho escravo. Por isso, estou preocupado com o desdobramento desse tema. Tenho um receio muito grande de que, na regulamentação do trabalho escravo, a gente vá regulamentar o trabalho escravo. Devido a isso é que faço este pronunciamento antes que se inicie o recesso, que vai acabar acontecendo devido ao processo eleitoral.

            Sr. Presidente, no último dia 5 de junho de 2014, neste plenário, cantou-se a música “Ninguém ouviu um soluçar de dor. No canto do Brasil, um lamento triste sempre ecoou”. Composta há 40 anos por Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte, a canção prossegue: “Que agonia, o canto do trabalhador. Esse canto, que devia ser um canto de alegria, soa apenas como um soluçar de dor”.

            Nós ouvimos o lamento. Nós sentimos a dor. E foi por isso que, naquele dia 5 de junho de 2014, após longos anos de luta, promulgamos a Emenda Constitucional n° 81. Desde então, o artigo 243 da Constituição Federal prevê que a exploração do trabalho escravo dará ensejo à expropriação para fins de reforma agrária e de programas de habitação popular. Nada mais justo!

            A escravidão acompanha a humanidade há milênios. O Egito antigo, a China antiga, a Índia, a América Pré-Colombiana, a África pré-colonial, todos exploraram a mão de obra escrava, bem como, é claro, infelizmente, o Brasil, que foi o último País a abolir a escravatura.

            Na Babilônia, inscreveu-se em pedra: “Se um escravo diz a seu mestre ‘Você não é meu mestre!’, o mestre deverá cortar sua orelha”. No Brasil, não foi diferente. A escravidão só foi proscrita por aqui, tardiamente, em 1888. O Brasil República, o Brasil do século 20 não deveria ter escravos. Entretanto, a partir da década de 1970, começamos a desconfiar de que ainda havia por aqui muitos e muitos homens e mulheres vivendo sob o regime de escravidão.

            Quase cem anos depois da abolição da escravatura, começamos, então, a investigar. Cumprimento os Grupos Móveis de Fiscalização do Ministério do Trabalho, que foram ao campo e à cidade. Não só descobrimos que ainda tínhamos escravos, como já libertamos mais de 50 mil deles. Libertamos, só no ano passado, 2.063 pessoas que viviam sob o regime de escravidão. Vejam bem que isso acontece em pleno século 21.

            Infelizmente, não é privilégio do Brasil ainda ter pessoas trabalhando sob o regime de escravidão em pleno século 21. Trata-se, na verdade, de um fenômeno de proporções planetárias. Vejamos um exemplo recente. Em 2022, a Copa do Mundo de futebol será sediada pelo Catar. Algumas obras relacionadas à competição já foram iniciadas. Pois bem, segundo o jornal britânico The Guardian, dezenas de trabalhadores nepaleses, submetidos a trabalho exaustivo, morreram nessas obras ao longo das últimas semanas. Trata-se de imigrantes “importados” da Ásia para trabalhar sob o regime de escravidão na construção civil, naquele país. Milhares desses escravos modernos estariam sendo submetidos a condições abjetas, degradantes, exaustivas e letais de trabalho.

            A Organização Internacional do Trabalho, em relatório denominado Lucro e Pobreza: a Economia do Trabalho Forçado, publicado neste ano, estima que há hoje no mundo cerca de 21 milhões de pessoas, homens e mulheres, submetidas a trabalho análogo à escravidão.

            Eles estimam que o lucro ilegal obtido com a exploração dessa mão de obra ultrapassa US$150 bilhões anuais. Os trabalhadores sob o regime de escravidão no Planeta levam àqueles que os exploram um lucro de US$150 bilhões anuais. É isso mesmo! O lucro de mais de US$150 bilhões, baseado na submissão de seres humanos à condição desumana de trabalho, é maior do que o PIB - Produto Interno Bruto - da maioria dos países.

            O mesmo estudo preleciona que, nesse caso, enquanto empregadores criminosos obtêm lucros exorbitantes, os trabalhadores subjugados sofrem perdas econômicas e sociais gigantescas, ficam com sequelas e perdem a vida. Essas pessoas tornam-se prisioneiras de um círculo vicioso do qual não têm força para sair, para escapar, um círculo vicioso que as condena, e às suas famílias, à eterna miséria, à ignorância e à marginalidade social. Muitas vezes, os escravos não são somente o pai e a mãe; os filhos e toda a família vivem sob o regime de escravidão em regiões ocultas e escondidas da fiscalização.

            São pessoas às quais se negam a cidadania, a educação e o privilégio de serem capazes de sustentarem a si mesmos e às suas famílias com dignidade.

            Mas a exploração do trabalho escravo não destrói apenas a vida das pessoas subjugadas. Quando empresários inescrupulosos obtêm redução de seus custos de produção à custa da miséria das pessoas que subjugam, eles também desequilibram completamente o jogo econômico.

            Empresários dignos - a maioria no Brasil e no mundo -, empresários conscientes, empresários que têm a consciência social, respeitadores das leis e das regras do jogo são sangrados porque há uma concorrência desleal. Porque aqueles que usam o trabalhador sob o regime de escravidão acabam não pagando nem a metade daquilo que paga o empresário sério, responsável e que tem responsabilidade social. Eu diria, não paga praticamente nada. Por isso, é uma concorrência desleal. Eles têm dificuldades para manter seu negócio e os empregos de seus trabalhadores porque seguem a regra, a lei, enquanto os outros usam da ilegalidade.

            A escravidão cria uma vantagem competitiva que pode inviabilizar a livre concorrência e a própria responsabilidade social. É um crime que prejudica a economia e mancha a reputação das nações no mundo todo. Sr. Presidente, é necessário reequilibrar o jogo. É preciso inibir essas práticas desumanas e desleais, desonestas que têm destruído a vida de milhares de pessoas, de milhares de famílias.

            É urgente neutralizar essa excrescência que nos envergonha e que envenena o tecido social. E é por isso que temos ensaiado injetar no arcabouço jurídico nacional algum antídoto eficaz contra o veneno chamado escravidão.

            Em 2003, por exemplo, a Lei nº 10.803 definiu o que é trabalho escravo. Essa lei alterou o art. 149 do Código Penal e elencou as situações que tipificam crime de redução de alguém à condição análoga à de escravo. Foi suficiente? Não preciso responder. Apesar da lei, poucas pessoas foram condenadas. A escravidão continuou nos envenenando.

            Em 2004, no Brasil, criamos o Cadastro de Empregadores infratores, conhecido como “Lista Suja”. Essa lista atualmente relaciona mais de 500 pessoas, entre físicas e jurídicas, rurais e urbanas, flagradas mantendo trabalhadores em regime de escravidão.

            Foi suficiente? Respondo que foi bom, que ajudou e que ajuda, mas que, infelizmente, não é ainda o suficiente. O veneno continua a se alastrar e o doente precisa de remédio.

            O doente, Sr. Presidente, precisa de um remédio mais forte, um remédio que aplaque a ganância, que atenue a indignidade, que elimine a degradação que é o trabalho escravo. Um remédio que cure nossa sociedade.

            A boa notícia é que nós criamos esse remédio. Criamos e lhe demos um nome, o nome de Emenda Constitucional nº 81.

            Não obstante, há quem acredite que o remédio é forte demais. Há quem defenda que é necessário atenuar-lhe a eficácia. Há quem proponha diluir-lhe a fórmula.

            O Projeto de Lei do Senado nº 432, de 2013, que tem por fim regulamentar a Emenda Constitucional n º 81, pretende definir trabalho escravo de forma arquetípica.

            Parece acreditar que ainda estamos no século 18. Trabalho escravo, segundo o projeto de lei, seria, apenas, a submissão de um ser humano a trabalho forçado, exigido sob ameaça de punição, com uso de coação e restrição de liberdade pessoal; o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte ou a manutenção de vigilância ostensiva com o fim de reter o escravo no local de trabalho; ou a restrição de locomoção do escravo em razão de dívida. Aí termina.

            Há 126 anos, a Princesa Imperial Regente, em nome de Sua Majestade o Imperador D. Pedro II, fez saber a todos os súditos do Império, que a Assembleia Geral decretava, e ela sancionava, a seguinte lei:

Art. 1º. Era declarada extinta, desde a data daquela lei, a escravidão no Brasil.

Art. 2º. Revogam-se as disposições em contrário.

            Estamos no século 21. Não precisamos reeditar a Lei Áurea. Repito: não precisamos reeditar a Lei Áurea. Os escravos do Império já foram alforriados.

            A restrição ostensiva da liberdade de locomoção; a vigilância ostensiva; a submissão a trabalho forçado sob ameaça; e o condicionamento da liberdade ao pagamento de carta de alforria são, evidentemente, definições pré-republicanas.

            O Projeto de Lei do Senado nº 432, de 2013, propõe definições que parecem ter sido formuladas no século 19. Estamos em 2014, não devemos, não podemos retroceder.

            Em 2003, nosso Código Penal aperfeiçoou, modernizou, tipificou a definição de trabalho escravo.

            Ali, em 2003, às definições pré-republicanas de coação a trabalhos forçados e privação da liberdade, acrescentou a submissão a jornadas de trabalho exaustivas e a realização de trabalhos em condições degradantes. Ou seja, ao conceito arcaico de escravidão, adicionou a noção moderna de afronta à dignidade humana. Nada mais se fez que acrescentar à lei infraconstitucional o que a própria Constituição já previa no inciso III de seu art. 5o: “Ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante”.

            Carlos Henrique Borlido Haddad, Juiz Federal, Professor Doutor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, nos ensina que “a lei penal, ao tipificar a redução à condição análoga à de escravo, prescinde de que essa condição seja igual àquela desfrutada pelos escravos do Império Romano ou do Brasil colonial”. Grande definição. E acrescenta ainda: “não se pode continuar adotando uma concepção caricatural da escravidão”.

            Aqueles que querem, por meio do Projeto de Lei do Senado no 432, de 2013, atenuar a eficácia da Emenda Constitucional no 81, de 2014, argumentam que, sem a regulamentação, a mera infração de norma trabalhista resultará em expropriação sumária, sem o devido processo legal, de propriedade no campo ou na cidade, quando se entender que lá há regime de escravidão.

            É impossível concordar com essa argumentação. É impossível sequer aventar essa hipótese. A nossa Lei Maior, a Constituição Federal, em seu art. 5o, garante já que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”; determina ainda que seja “garantido o direito de propriedade”; e assegura que “ninguém” - repito, ninguém - “será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

            É verdade: ninguém foi privado de sua liberdade com base no art. 149 do Código Penal, que prevê as condições degradantes e a jornada exaustiva como elementos de trabalho escravo, sem o devido processo legal. Não há um único caso. Por isso, não tem que haver esse temor. Da mesma forma, “ninguém” - repito, ninguém - “será privado de sua propriedade sem o devido processo legal”. Está na Constituição! Regulamentar o quê? Que se cumpra a Constituição.

            A regulamentação da Emenda Constitucional no 81, de 2014, que visa a eliminar o trabalho escravo no Brasil, não pode transformar-se na regulamentação, na legalização do trabalho escravo no Brasil. Eu não gostaria nem um pouco, nem um pouco mesmo, que esta Casa fizesse um ato desses. Eu não gostaria de dizer, embora, é claro, votarei contra com muita convicção, que eu estava no Congresso Nacional quando, no meu entendimento, equivocadamente - no mínimo, o termo é equivocadamente -, aqueles Parlamentares da Câmara e do Senado regulamentaram o trabalho escravo. Trabalho escravo não se regulamenta, proíbe-se. E as leis estão aí para assegurar o direito de empregados e de empregadores, mas não o direito de trabalho escravo regulamentado.

            Espero que eu não tenha que estar aqui protestando, gritando, porque vamos ter que gritar mesmo, vamos ter que subir à tribuna, vamos ter que convocar movimentos sociais, líderes de todos os segmentos para virem para cá, para não permitirmos que um crime deste aconteça.

            Não podemos passar à sociedade brasileira a impressão de que acreditamos que o trabalho degradante e exaustivo enobrece o homem. Isso não existe! Esse é o combate pelo qual nos alistamos. E faremos, sim, podem ter certeza, o bom combate, o combate daqueles que acreditam que a dignidade é um bem ao qual todos merecem ter acesso, tanto empregado como empregador.

            Meus caros colegas de Parlamento, nesse sentido, quero compartilhar alguns indicadores que me foram encaminhados pelo Dr. Vitor Araújo Filgueiras, Doutor em Ciências Sociais, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit) da Unicamp, auditor fiscal do Ministério do Trabalho, coordenador do grupo de pesquisa Indicadores de Regulação do Emprego.

            Os dados foram sistematizados em sua pesquisa com base no universo dos resgates de trabalhadores submetidos a condições análogas às de escravos no Brasil.

            O Dr. Vítor enviou essas informações, em função de que elas poderiam ser úteis diante da iminência de possível inflexão da regulação da terceirização e do trabalho análogo ao escravo no Brasil. Acho que empresa, seja qual for, tinha que cumprir a CLT, teria que cumprir a CLT.

            Em seu trabalho, intitulado Terceirização e trabalho análogo ao escravo: coincidência?, ele pontua que:

Dois dos fenômenos do chamado mundo do trabalho mais divulgados, pesquisados e debatidos no Brasil nas últimas duas décadas são a terceirização e o trabalho análogo ao escravo.

Esse dois fenômenos estão envoltos em ferrenha disputa no bojo das relações entre capital e trabalho, assim como no conjunto da sociedade, pois constituem, respectivamente, estratégia central no atual perfil predominante de gestão do trabalho e o limite do assalariado no capitalismo brasileiro.

            Sr. Presidente, consta do trabalho do eminente estudioso da matéria a tabela com alguns dados, a partir dos dez maiores resgates entre todos os flagrantes ocorridos no País em cada um dos últimos quatro anos. Em 2010: dez casos; quando envolvem terceirizados, nove. Terceirizados resgatados sob regime de escravidão: 891; contratos diretos: 47; total de resgatados: 438. Ou seja, dos resgates que foram feitos em 2010, 891 eram trabalhadores que estavam sob regime de terceirização; 47, trabalho legal. Em 2011, 554 terceirizados; trabalho legal, 368. Em 2012, 947 terceirizados; nenhum trabalho legal. Em 2013: 606 que foram pegos sob regime de escravidão em empresas terceirizadas; contratos diretos, 140.

            Isso aqui mostra que, na verdade, a terceirização deriva para o regime de escravidão. Não todos, mas em grande parte. Por isso, no meu entendimento - é a minha avaliação como Parlamentar, como alguém que veio do mundo sindical -, ninguém, ninguém deveria ser contratado sem receber no mínimo os direitos assegurados na CLT.

            Querem terceirizar, como alguém já me disse: “Mas a minha firma é especializada só em fazer alicerce, fundação.” Pois bem, o serviço dele pode ser terceirizado para obras, mas pague para os seus empregados o que manda a CLT. Ponto. Estaria resolvido. Ninguém vai proibir que um serviço seja terceirizado, mas que todos cumpram a CLT, o que não vem acontecendo, e aí nós derivamos para o trabalho escravo.

            Enfim, a tabela mostra que, na média, nos quatro últimos anos abrangidos, em 90% dos 10 maiores resgates de trabalho escravo, os trabalhadores que estavam submetidos às condições análogas às de trabalho escravo eram terceirizados.

            Temos aqui mesmo, no Congresso, esse problema. Penso que temos de resolver isso, dar o exemplo.

            Deixo aqui ao Presidente Renan, que tem feito uma bela administração, e isso é inegável... Não adianta, quando elogio aqui a administração do Renan, alguém vir dizendo “ah, mas o Renan...”

            Olhem a administração do Presidente Renan neste período. Vejam se a oposição critica. Vejam se há um Senador que critica. Não! Ninguém critica. Pode haver discordâncias políticas, ideológicas, mas ninguém critica a administração, a economia que vem fazendo, a forma como está dirigindo, como está reduzindo os gastos da Casa. Estão aí os dados, e os números não mentem. Pode alguém não gostar, mas ele está fazendo, de fato, uma bela administração.

            E aqui deixo esta sugestão, Presidente Renan Calheiros: que olhasse com carinho essa ideia de que... Não é que tem de proibir terceirizar. O que tem de ser feito é pagar exatamente tudo o que a CLT manda para todos os trabalhadores. Todos têm que ser submetidos ao regime da CLT.

            Enfim, Sr. Presidente - e aqui vou terminando -, vale ressaltar que a fonte de dados não resulta de filtragem quanto à forma de contratação dos trabalhadores.

            As fiscalizações que ensejam resgates são oriundas, em parte, de ações planejadas com base em denúncias - que não priorizam o fato de haver ou não terceirização - e, em parte, oriundas de flagrantes não previstos, que igualmente não direcionam o tipo de vínculo envolvido. Havendo a denúncia de trabalho escravo, a turma de combate vai lá. Chegando lá, nota que 90% dos casos são de trabalhadores terceirizados. Além disso - e depois passo a V. Exª, Senador Cristovam; esta é a minha última fala de hoje -, essa proporção de terceirizados é muito maior do que o percentual de terceirizados no conjunto do mercado de trabalho.

            A despeito do intenso crescimento apontado por várias pesquisas, os trabalhadores contratados por figura interposta não alcançam sequer metade dos postos de trabalho na economia.

            Note-se que os dados acima também não discriminam setor da economia, porte das empresas, ou regiões do País.

            Se os terceirizados não são maioria no mercado de trabalho como um todo, menor ainda é sua proporção entre os trabalhadores formalizados, pois há maior tendência, pelo contrário, de serem menos registrados em comparação com aqueles diretamente contratados.

            Enfim, Sr. Presidente, mesmo assim, entre os resgates ocorridos em 2013, nos oito maiores casos em que a totalidade dos trabalhadores eram formais -entre 20 e 93 trabalhadores resgatados -, todos eles eram terceirizados.

            Já no grupo de resgate com parte dos trabalhadores com vínculo formalizado, das 10 maiores ações - de 23 a 173 trabalhadores resgatados -, em 9 os trabalhadores formais resgatados - mesmo os formais resgatados - também eram terceirizados. Esta seria a outra hipótese que aqui eu levantei.

            Entre os resgates com terceirizados formalizados - isto é, o eixo do estudo mostrando o vínculo entre trabalho escravo e terceirizado -, figuram desde médias empresas desconhecidas até gigantes, como na mineração e na construção civil, no setor de produção de suco de laranja, frigoríficos, multinacionais, produtores de fertilizantes, obras de empresas vinculadas ao próprio Estado brasileiro, como, por exemplo, companhia de petróleo, que possui muitos terceirizados.

            Por fim, foi escolhido o setor que mais tem se destacado em número de flagrantes de trabalhadores em situação análoga à de trabalho escravo: a construção civil; é um fato que a turma de combate para resgate verificou.

            Em 2011, dos 14 resgates na construção civil, 11 ocorreram em empresas terceirizadas, incluindo desde pequenas empresas até gigantes do setor da construção.

            Em 2012, foram 8 resgates, sendo que, em todos eles, eram terceirizados os trabalhadores resgatados.

            Sr. Presidente, não há, entre nós, quem seja favorável à escravidão. Não há. Não acredito que alguém defenda a escravidão. Não há, tenho certeza, quem defenda que alguém tenha que trabalhar sob uma forma que não lhe garanta a dignidade como ser humano. Não há também, entre nós, quem pretenda ferir o sagrado direito à propriedade - isso também é respeitado.

            O que queremos é, somente, justiça social.

            O que queremos é que todos tenham condição de ter o seu negócio, ser empreendedor, ser um grande empresário, ou ser um pequeno empresário, mas queremos somente a dignidade do trabalho para os nossos homens e mulheres.

            O que queremos é que a propriedade atenda à sua função social.

            O que queremos, enfim, é que cada um de nós seja responsável pela proteção, sob a égide da lei, daqueles homens, mulheres e crianças que, de tão vulneráveis, não têm forças sequer para defender a própria dignidade. São muitas vezes crianças, como no caso do trabalho infantil, ou outros que estão passando fome e estão sob regime de escravidão. E nós temos obrigação de sermos solidários a eles.

            Sr. Presidente, aqui termino os meus pronunciamentos, peço que V. Exª os considere na íntegra, mas queria muito que V. Exª concedesse um aparte ao Senador Cristovam.

            O Sr. Cristovam Buarque (Bloco Apoio Governo/PDT - DF) - Senador Paim, eu vou começar pelo final, quando o senhor diz que ninguém quer o trabalho escravo. Quer, porque não percebe que é um trabalho escravo. Uma grande quantidade de pessoas, durante 300 anos, achavam que o que a gente chama hoje de trabalho escravo era uma civilização dos negros africanos no continente americano. Não havia esse sentimento de escravidão como uma coisa perversa; não havia. Havia uma tolerância, porque era invisível. O que hoje acontece com o trabalho dito terceirizado - não digo em todos os casos, mas em muitos casos - não é visto como uma forma brutal de desigualdade, próxima da escravidão. Senador Paim, nós precisamos fazer uma autocrítica aqui, Senadores, Aqui, ao nosso lado, há trabalhadores terceirizados que levam a vida que não tem a menor comparação com a que levamos nós - eu não falo só os Senadores; eu falo de Senadores e trabalhadores do setor formal da Casa. Eu não entendo como alguém ainda não fez um estudo claro da diferença entre um e outro trabalhando juntos. O seguro saúde, o outro sem saúde; o salário, o outro com salário ridículo; os benefícios diversos; o horário de trabalho. E a gente não percebe isso, como antes não se percebia a escravidão. Havia uma aceitação, uma tolerância. Os escravocratas, salvo algumas exceções, não eram escravocratas; eram apenas pessoas que viviam na escravidão. Por isso que, durante 300 anos, não houve uma voz se levantando contra; nos últimos 50 anos da escravidão, alguns começaram. A igreja não se pronunciou contra a escravidão. Padre Vieira chegou a se pronunciar contra a escravidão do índio, mas não do negro. Nas universidades, nas faculdades - não eram universidades -, nunca houve um movimento acadêmico contra a escravidão, Senador. Nunca houve. Foram algumas vozes isoladas que começaram a falar contra. Então, hoje ainda existe, sim, uma tolerância com as diversas formas de escravidão, disfarçadas ou minoradas - não é igual. Por exemplo, não se vende: deixa-se morrer. Antes, eram vendidos; agora, podem morrer. E o patrão não tem nenhuma perda; então, por que se preocupar? O escravo, quando morria, gerava uma perda para o senhor que tinha comprado esse escravo. Então, ainda existe. Por isso, no dia 18 - e o senhor disse que vai fazer um esforço para estar presente, diante dos compromissos lá no Rio Grande -, nós vamos fazer uma audiência aqui, no Senado, sobre o que falta fazer para completar a abolição da escravatura no Brasil. O que falta fazer. Mas não é o que falta fazer só em relação a 1888, sobre os negros, por exemplo. É o que falta fazer diante da estrutura do trabalho no Brasil hoje. Nessa data, estaremos comemorando a fixação do nome do Joaquim Nabuco do Livro dos Heróis da Pátria, que é um gesto importante do ponto de vista de escravidão, mas vamos aproveitar esse dia para fazer uma reflexão, não apenas para comemorar o que esse grande brasileiro fez. Vamos fazer uma reflexão: o que ainda falta fazer para que, no Brasil, possamos dizer, de fato, que não há nenhuma forma de escravidão? Nem as explícitas e raciais de antigamente, nem as não raciais e implícitas, invisíveis, que temos hoje - como antes aquela era invisível para a sociedade do seu momento. Não se percebia que havia uma coisa chamada escravidão. Aliás, o nome não era escravidão, era trabalho servil. A princesa, no dia 4 de maio, quando faz a sua fala, iniciando o processo de discussão da Lei Áurea, que durou apenas dez dias - em dez dias, passou em todo o Congresso -, falou em trabalho servil, e não falou em abolição, num primeiro momento; falou que era preciso resolver a situação do trabalho servil, como a gente hoje fala que é preciso resolver o problema dos trabalhadores terceirizados. Sim, tem que haver sistemas, momentos, lugares de trabalho provisórios. Não dá para dar estabilidade de trabalho a todo mundo. Se você entra para uma construção, não vai ficar estável na empresa. Aliás, essa estabilidade a gente tem que voltar a discutir. A estabilidade hoje está pesando para diminuir a qualidade do trabalho no setor público. O menino entra com 26 anos na universidade, como professor, fica até sua aposentadoria estável, trabalhe ou não trabalhe. Isso tem que acabar! Precisamos de uma estabilidade responsável. Ou seja, estabilidade porque o patrão não demite, mas estabilidade responsável, porque, se não trabalhar, não fica. Então, não é para ter o trabalho permanente, mas é para ter o respeito durante o tempo em que o trabalho estiver acontecendo. Eu o parabenizo por trazer esse assunto e espero que o senhor consiga uma brechinha para, no dia 18, vir aqui debater o que falta fazer ainda para resolver, finalmente, como chamava a princesa, o trabalho servil no Brasil, ou seja, o trabalho sob as diversas formas de escravidão.

            O SR. PAULO PAIM (Bloco Apoio Governo/PT - RS) - Muito bem, Senador Cristovam. Pode ter certeza de que farei de tudo para estar aqui no bom debate neste dia 18, até porque eu tenho discutido muito com os auditores fiscais do trabalho, a força especial do Ministério do Trabalho que faz esse bom combate, e eles estão muito preocupados. Por exemplo, a Assessoria me passa aqui algo que é importante eu lembrar, e eu também achei importante, por isso vou ler.

            Nós temos tramitando, aqui na Casa, o PLS 432, que pretende acabar com a chamada lista suja. Essa lista suja é aquele camarada pego com trabalho escravo, o nome dele vai para lá. E eles querem acabar com a lista suja. Eles querem manter o trabalhador sobre o regime de escravidão e não querem que ninguém saiba. Olhem o absurdo a que chega e a ousadia de encaminhar um projeto desse porte aqui para o Congresso Nacional.

            Em resumo, o PLS 432 pretende acabar com a lista suja como a conhecemos hoje, esvaziando o trabalho hoje exercido pelos auditores, que fazem a fiscalização, pois restringe a lista àqueles que já passaram pelo trâmite judicial até o trânsito em julgado. Hoje as inscrições na lista ocorrem após a decisão final.

            Quer dizer, comprovado que há, ele vai para a lista. Ele que vá se explicar lá por que foi para a lista. Querem acabar com a lista.

            E, Senador Cristovam - e eu termino, Senador Mozarildo -, no passado, os escravos eram negros. Hoje, são brancos, são negros, são índios e ciganos os que vivem, infelizmente, em muitos lugares de nosso País e do mundo, ainda sob o regime de escravidão.

            É por isso que essa luta, como eu sempre digo, é uma luta sem fronteira. Até porque direitos humanos, que é o que trabalhamos quando combatemos o trabalho escravo, são universais.

            Pelo fim do trabalho escravo no Brasil e no mundo!

            Muito obrigado, Sr. Presidente, pela tolerância.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/07/2014 - Página 123