Discurso durante a 170ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Preocupação com a situação dos índios Guarani-Kaiowá; e outro assunto.

Autor
Eduardo Suplicy (PT - Partido dos Trabalhadores/SP)
Nome completo: Eduardo Matarazzo Suplicy
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. POLITICA INDIGENISTA, DIVISÃO TERRITORIAL.:
  • Preocupação com a situação dos índios Guarani-Kaiowá; e outro assunto.
Publicação
Publicação no DSF de 20/11/2014 - Página 75
Assunto
Outros > HOMENAGEM. POLITICA INDIGENISTA, DIVISÃO TERRITORIAL.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA NACIONAL, CONSCIENTIZAÇÃO, NEGRO, APREENSÃO, AUMENTO, VIOLENCIA, VITIMA, GRUPO ETNICO.
  • COMENTARIO, HISTORIA, GRUPO INDIGENA, APREENSÃO, SITUAÇÃO, INDIO, MOTIVO, FALTA, ALIMENTOS, DESAPROPRIAÇÃO, TERRAS INDIGENAS, RESPONSAVEL, FAZENDEIRO, DEFESA, NECESSIDADE, ISENÇÃO, JULGAMENTO, AÇÃO JUDICIAL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF), ENFASE, VOTO, GILMAR MENDES, MINISTRO.

            O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco Apoio Governo/PT - SP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, esta semana e especialmente hoje, véspera do Dia da Consciência Negra e de Zumbi de Palmares, eu juntamente com o Senador Paulo Paim e outros estamos vestindo aqui uma camiseta com os dizeres “Negro Jovem Vivo”, a nossa solidariedade a todos os afro-brasileiros e descendentes de africanos, sobretudo jovens, que têm sofrido extraordinária violência em nosso País, muitas vezes por responsabilidade das polícias de diversos Estados. Então, quero, aqui, expressar a minha solidariedade a todos eles e expressar o quanto é importante que as autoridades do País, em cada Estado, em cada Município, venham a tratar com maior adequação e com maior respeito todos os negros e afrodescendentes em nosso País.

            Hoje, eu gostaria de tratar, também, de outro povo que tem sofrido muito em nosso País que são os povos originais. Eu me refiro aos índios.

            Após a chegada dos europeus à América do Sul, cerca de 500 anos atrás, o povo guarani foi um dos primeiros a serem contatados. Atualmente, vivem no Brasil aproximadamente 51 mil índios guaranis em sete Estados diferentes, tornando-os a etnia mais numerosa do País, a qual está dividida em três grupos: kaiowá, ñandeva e m'byá, dos quais o maior é o kaiowá, que significa "povo da floresta".

            Profundamente afetados pela perda de quase todas as suas terras no século passado, o povo guarani sofre uma onda de suicídio inigualável na América do Sul. Os problemas são especialmente graves no Mato Grosso do Sul, onde a etnia já chegou a ocupar uma área de florestas e planícies de cerca de 350 mil quilômetros quadrados. Hoje em dia, os índios vivem espremidos em pequenos pedaços de terra cercados por fazendas de gado e vastos campos de soja e cana-de-açúcar. Alguns não têm terra alguma e vivem acampados na beira das estradas.

            Em 2003, o assassinato do líder guarani Marcos Veron foi um exemplo trágico, mas típico da violência a qual seu povo está sujeito. Durante 50 anos, seu povo tinha tentando recuperar um pequeno pedaço de sua terra ancestral, depois que ela foi tomada e se transformou em uma grande fazenda de gado, sendo que a maior parte da floresta que cobria a área havia sido desmatada.

            Essa história trágica começou em abril de 1997, quando, desesperado, depois de anos pressionando o governo sem resultado, Marcos levou sua comunidade de volta para a fazenda. Eles começaram a reconstruir suas casas e podiam cultivar seus alimentos novamente. Todavia, um fazendeiro que ocupava a área foi ao tribunal e um juiz ordenou a saída dos índios. Em outubro de 2001, mais de cem policiais e soldados fortemente armados obrigaram os índios a abandonar sua terra mais uma vez. Eles finalmente acabaram vivendo debaixo de lonas de plástico ao lado de uma rodovia.

            Ainda na Takuara, Marcos disse: “Isso aqui é minha vida, minha alma. Se você me levar para longe desta terra, você leva minha vida.”

            Suas palavras vieram como uma profecia trágica e real no início de 2003, quando, durante outra tentativa de retornar pacificamente à sua terra, ele foi violentamente espancado por funcionários do fazendeiro. Ele morreu poucas horas depois.

            Em outras palavras, nos últimos 500 anos, praticamente todas as terras dos guaranis no Mato Grosso do Sul foram tomadas deles. Ondas de desmatamento converteram as terras férteis dos guaranis em uma vasta rede de fazendas de gado e plantações de cana-de-açúcar. Muitos dos guaranis estão amontoados em pequenas reservas, que estão cronicamente superlotadas. Na reserva de Dourados, por exemplo, 12 mil índios vivem em pouco mais de 3 mil hectares.

            A destruição da floresta fez com que as práticas da caça e da pesca sejam impossíveis, e não há mais terra suficiente até mesmo para plantar. A desnutrição é um problema sério e, desde 2005, pelo menos 53 crianças guaranis morreram de fome.

            Chamando a atenção para essa situação alarmante dos índios laiowás, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, membro da Academia Brasileira de Ciências e Professora Titular aposentada da Universidade de São Paulo e da Universidade de Chicago, uma das pessoas que mais têm estudado a questão dos índios em nosso País, escreveu na Folha de S.Paulo de hoje um artigo no qual demonstra que está nas mãos do Supremo Tribunal Federal mudar esse quadro e resgatar essa dívida que temos para com os índios kaiowás. “O STF e os índios” é o nome do artigo de Manuela Carneiro da Cunha. Em suas palavras:

Marinalva Kaiowá morava em um acampamento de lona, nas margens de uma terra que sua parentela tentava reaver havia 44 anos. No dia 1º de novembro, duas semanas depois de ter ido com outros líderes indígenas protestar diante do Supremo Tribunal Federal, em Brasília, ela foi assassinada.

A partir da década de 1940, os guaranis kaiowá do Mato Grosso (hoje Mato Grosso do Sul) foram expulsos de suas terras. Já haviam sido vítimas da invasão da Companhia Matte Laranjeira, que arrendou até 5 milhões de hectares na década de 1890. Mas a extração da erva-mate não exige desmatamento e as aldeias continuaram em suas terras.

Quando Getúlio Vargas inicia um projeto de colonização agropecuária na região e é rescindindo, em 1947, o arrendamento à Matte Laranjeira, a situação muda.

Os fazendeiros, recém-titulados pelo governo do Estado usam de todos os meios para "desinfestar" as terras dos índios.

Uns contratam pistoleiros e incendeiam as aldeias kaiowá. Outros se ajustam com funcionários do Serviço de Proteção aos Índios que, com auxílio da polícia, jogam em caminhões e confinam os kaiowás em uma das oito diminutas reservas criadas entre 1915 e 1928.

Essas reservas superlotadas, cujos recursos naturais não permitem um modo de vida tradicional, são focos permanentes de conflitos, suicídios e miséria. Contrastam tristemente com as aldeias kaiowá, as tekoha, cujo nome literalmente significa "o lugar onde vivemos segundo nossas regras morais".

Desde a década de 1940, os kaiowá nunca deixaram de reivindicar suas antigas terras. Muitos, para não abandoná-las, até se dobraram a servir de mão de obra nos chamados "fundos de fazenda".

O Mato Grosso ficou célebre por sua política anti-indígena. A Assembleia Legislativa do Estado chegou a aprovar uma lei, em 1958, que declarava devolutas as terras dos índios cadiveu. Na época, foi o Supremo Tribunal Federal que fez um ato de justiça, até hoje lembrado: em 1961, anulou essa lei absurda.

O Supremo está outra vez em posição de fazer justiça. Mas ameaça agora fazer uma injustiça flagrante. Em 2009, o Ministério da Justiça reconheceu Guyraroká, no Mato Grosso do Sul, como sendo de ocupação tradicional indígena.

A segunda turma do STF, contrariando todos os pareceres anteriores do plenário e a posição do presidente do Supremo, Ricardo Lewandowski, acatou um mandado de segurança e anulou o reconhecimento pelo Ministério da Justiça.

Negou-se aos kaiowás expulsos da aldeia de Guyraroká seu direito ao retorno, por não a habitarem desde a década de 1940! É a tentativa de aplicação automática da controversa teoria do "marco temporal", segundo a qual a Constituição de 1988 só garantiria aos índios as terras que eles estivessem ocupando no dia da promulgação da Carta Magna.

Ignora-se que desde a Constituição de 1934 e em todas as que se seguiram, os direitos dos índios à posse permanente de suas terras estava assegurada. E ignora-se uma história de violência e de esbulho.

A Constituição de 1988 inaugurou entre os índios guarani espoliados a esperança de que agora se encontravam em um "tempo do direito".

Como disse um líder kaiowá ao protestar recentemente em Brasília: “A coisa está tão absurda que hoje querem nos penalizar por termos sido expulsos de nossos territórios. Querem que assumamos a culpa pelo crime deles. Durante décadas nos expulsaram de nossa terra à força e agora querem dizer que não estávamos lá em 1988 e, por isso, não podemos acessar nossos territórios?”.

Vivemos no Brasil um momento de recuperação da memória do século 20. O esforço para que se conheça essa história tem um motivo explícito: "para que nunca mais aconteça".

Os kaiowá de guyrarokà lembram-se e têm nomes para cada morro e cada riacho de suas terras espoliadas. O STF também deve zelar para que não se esqueça a história e que injustiças não se repitam. Decretar que somente as terras ocupadas por índios em 1988 merecem os direitos constitucionais permite apagar da memória esbulhos e injustiças.

            Ora, Sr. Presidente, é muito importante esse artigo da Profª Manuela Carneiro da Silva. O Prof. Dalmo de Abreu Dallari, a quem pedi para que refletisse sobre aquele artigo, disse: “Caro Eduardo: achei muito bom o artigo da Manuela.”

            (Soa a campainha.)

            O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco Apoio Governo/PT - SP) - Vou concluir, Sr. Presidente.

Caro Eduardo:

Achei muito bom o artigo da Manuela. Pode-se ainda acrescentar um dado, que ela não referiu. Os que se diziam ou se dizem proprietários das terras indígenas alegam que receberam essas terras do governo do Estado de Mato Grosso. Ocorre, entretanto, que, desde o tempo do Império, as terras consideradas não ocupadas pertenciam ao governo central e, com a proclamação da República, passaram a ser parte do patrimônio da União.

Assim, as doações de terras feitas pelo Estado de Mato Grosso não têm valor legal.

A par disso, acho oportuno lembrar que a família do Ministro Gilmar Mendes [do Supremo Tribunal Federal], que é do Mato Grosso do Sul, é uma das grandes [...] [ocupadoras] de terras indígenas. [...]

           Então, é importante que os Ministros do Supremo Tribunal Federal, inclusive, o Ministro Gilmar Mendes, possam analisar esse assunto com toda a isenção.

           Prezado Presidente Jorge Viana, agradeço a sua atenção de, dada a importância desse tema, ter me dado um pouco mais de tempo.

           Muito obrigado.

 

           O SR. PRESIDENTE (Jorge Viana. Bloco Apoio Governo/PT - AC) - Eu cumprimento V. Exª, Senador Eduardo Suplicy, e reafirmo que, talvez, este seja um dos grandes desafios que o Brasil vive hoje: dar a devida acolhida, o devido tratamento, às populações originárias deste País, os povos indígenas.

            V. Exª, com a autoridade que tem, com o seu conhecimento, busca o ensinamento da professora, dessa figura extraordinária que é a Drª Manuela Carneiro. O Acre a conhece bem. É uma pessoa que nos ajudou muito a entender melhor a questão indígena, a questão antropológica. Ela, com a autoridade que tem, escreve esse belo artigo, que V. Exª reproduz. Parabenizo V. Exª pelo pronunciamento, por trazer um debate como esse para o Senado Federal.

            O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco Apoio Governo/PT - SP) - Obrigado, Senador e ex-Governador Jorge Viana. V. Exª tem toda a autoridade, inclusive, como uma pessoa que conhece muito bem as florestas brasileiras e, sobretudo, o lar dos índios e a história de todos eles. V. Exª fala com muita autoridade. Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 20/11/2014 - Página 75