Discurso encaminhado à publicação durante a Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Preocupação com a situação da mobilidade urbana no País e breve histórico sobre o tema.

Autor
Prisco Bezerra (PDT - Partido Democrático Trabalhista/CE)
Nome completo: Prisco Rodrigues Bezerra
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso encaminhado à publicação
Resumo por assunto
TRANSPORTE:
  • Preocupação com a situação da mobilidade urbana no País e breve histórico sobre o tema.
Publicação
Publicação no DSF de 07/02/2020 - Página 48
Assunto
Outros > TRANSPORTE
Indexação
  • APREENSÃO, ORADOR, SITUAÇÃO, MOBILIDADE URBANA, TRANSPORTE, INFRAESTRUTURA, COMENTARIO, DESENVOLVIMENTO SUSTENTAVEL, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), ANALISE, HISTORIA, RELAÇÃO, POBREZA, DESIGUALDADE SOCIAL.
  • COMENTARIO, FORTALEZA (CE), MELHORIA, PLANO, MOBILIDADE URBANA, ACESSIBILIDADE.

  SENADO FEDERAL SF -

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06/02/2020


DISCURSO ENCAMINHADO À PUBLICAÇÃO, NA FORMA DO DISPOSTO NO ART. 203 DO REGIMENTO INTERNO.

    O SR. PRISCO BEZERRA (Bloco Parlamentar Senado Independente/PDT - CE. Sem apanhamento taquigráfico.) - Mobilidade urbana.

    Sr. Presidente, Sras. Senadoras, Srs. Senadores, há cerca de 40 anos, escreveu-se um conto em que se descrevia o chamado "grande engarrafamento". O autor contava que, em determinada cidade brasileira, numa tarde de sexta-feira, no começo dos anos 80, o trânsito ficou tão ruim que, em certo momento, todos os veículos pararam de andar e, para o desespero de motoristas e passageiros, o engarrafamento nunca mais se desfez. Nas palavras do escritor, "os proprietários - alguns aos prantos - tiveram que abandonar seus carros; a prefeitura construiu um viaduto de emergência por cima; e, depois de duas ou três semanas", os veículos engarrafados e abandonados foram ocupados por pessoas que não tinham onde morar.

    Tratava-se de um conto humorístico, mas a vida, muitas vezes, parece imitar a arte: hoje em dia, essa piada está bem próxima da triste realidade de dezenas de milhões de brasileiros. A questão da mobilidade urbana, naquela época - na transição dos anos 1970 para 1980 -, ainda não era levada muito a sério. A temática do desenvolvimento urbano ordenado e sustentável, na qual se insere a mobilidade urbana, só começou a receber a devida atenção da sociedade e do Congresso Nacional no começo dos anos 80, com a tramitação do Projeto de Lei n° 775, de 1983, de autoria do Poder Executivo.

    O PL era conhecido como "Lei de Desenvolvimento Urbano" e trazia uma série de inovações urbanísticas inspiradas na experiência bem-sucedida de cidades europeias. Ele tramitou por muitos anos na Câmara dos Deputados e acabou arquivado. Várias de suas propostas, entretanto, somadas a outras que surgiram durante sua discussão no Parlamento, serviram de inspiração à Constituição de 1988 e ao Estatuto das Cidades, de 2001.

    O transporte e a mobilidade urbana eficientes são direitos dos cidadãos brasileiros. O primeiro é um direito social inserido no artigo 6o da Carta Magna -; e o segundo está elencado no parágrafo 10 do artigo 144. Eles foram definidos de forma mais concreta na Lei 12.587, de 3 de janeiro de 2012 - a Lei da Mobilidade Urbana -, que instituiu as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. De acordo com a Lei, as políticas públicas de mobilidade urbana têm por objetivo "contribuir para o acesso universal à cidade" por meio de um "conjunto organizado e coordenado dos modos de transporte, de serviços e de infraestruturas que garantam os deslocamentos de pessoas e cargas no território do Município".

    Mobilidade urbana é coisa muito séria. É um tema que tem sido fonte de atenção e preocupação para pessoas e governos em todo o mundo. Faz parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável - a Agenda 2030 - da Organização das Nações Unidas; e da Nova Agenda Urbana, estabelecida na III Conferência das Nações Unidas sobre Moradia e Desenvolvimento Urbano Sustentável, em outubro de 2016. O objetivo de número 11 da Agenda 2030 lembra que a maioria das pessoas, hoje em dia, vive em cidades, e que a construção e a gestão dos espaços urbanos - principalmente no que se refere à mobilidade e ao saneamento - são ferramentas primordiais para a redução da pobreza e da desigualdade.

    Pobreza e desigualdade são, no meu entender, duas das mais graves enfermidades sociais que devemos combater em nosso País. A mobilidade urbana deve ser encarada como uma das faces mais perversas e evidentes dessas enfermidades. A grande maioria dos brasileiros vive em regiões urbanas. Quase metade da população vive em regiões metropolitanas com mais de um milhão de habitantes. Via de regra, nossas grandes cidades estão espalhadas por grandes espaços territoriais e uma das consequências disso é que a população se torna refém dos sistemas de transporte. Além das dificuldades para se deslocar no espaço urbano, os habitantes das cidades ainda sofrem efeitos colaterais dos sistemas de transporte, como os acidentes de trânsito e a poluição.

    Um dos efeitos benéficos das regulamentações recentes na área de mobilidade - como a Lei da Mobilidade Urbana e o Estatuto da Metrópole (Lei 13.089/2015) - é que elas deram impulso à realização de uma série de estudos sobre o tema. Se, por um lado, esses estudos pintam uma paisagem desoladora, por outro, nos desafiam a buscar soluções e nos mostram os caminhos a seguir.

    Um desses estudos, da empresa israelense de mobilidade Moovit, traz alguns dados esclarecedores sobre a vida dos usuários de transportes públicos no Brasil. O tempo médio gasto em um único deslocamento - como, por exemplo, ir de casa para o trabalho - é de mais de uma hora em cidades como Rio de Janeiro, Recife, São Paulo e Brasília; um terço das pessoas gasta entre uma e duas horas; e muita gente leva mais de duas horas em um único deslocamento. Em Salvador, Campinas e Fortaleza, as pessoas ficam, em média, 20 minutos esperando pelo transporte; em Recife e em Brasília, metade das pessoas espera mais de 20 minutos. Em todas as cidades brasileiras - à exceção de Porto Alegre -, mais de metade das pessoas tem de fazer pelo menos uma baldeação para completar uma única viagem, sendo que em Curitiba e São Paulo, mais de um quinto delas faz três ou mais baldeações por viagem. E, se pensamos que essas viagens são longas, estamos enganados. A cidade com maior distância média para uma única viagem é Brasília, com cerca de 14 quilômetros; no Rio de Janeiro, essa distância é de 13 quilômetros; e, em todas as demais capitais, é de menos de 10 quilômetros: 8,8 quilômetros em Recife, 8,6 quilômetros em São Paulo, e 7,5 quilômetros em Fortaleza, por exemplo. Ou seja, o grande problema não é a distância, mas a ineficiência nos sistemas de mobilidade.

    Estudos do Ministério do Desenvolvimento Regional mostram que os gastos com transporte público aumentaram, entre 2010 e 2015, de 9,5% para quase 12% da renda média do trabalhador. Em 2016, os custos totais anuais associados à mobilidade em transportes coletivos foi de mais de 70 bilhões, grande parte deles relacionados a gastos feitos pelos próprios usuários. Mas a mobilidade urbana não envolve apenas o transporte público coletivo; ela envolve todas as modalidades de deslocamento urbano. Os custos associados aos transportes individuais, por exemplo, foram ainda maiores: 407 bilhões de reais, o equivalente a 84% do custo total anual de mobilidade nas cidades. Esses custos envolvem, além dos gastos pessoais, os custos com acidentes de trânsito, que ultrapassaram 130 bilhões de reais, e com externalidades negativas, como poluição atmosférica e sonora.

    Um estudo que está sendo realizado pelo Ipea - o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - revela um dos aspectos mais sérios, senão o mais sério, de nossas deficiências de mobilidade. Argumenta-se que a mobilidade urbana é responsável por facilitar o acesso das pessoas a oportunidades de emprego, de educação, a serviços de saúde e a atividades culturais. Ou seja, dificuldades de mobilidade agravam as desigualdades de acesso a serviços essenciais para a população. Como regra, as melhores oportunidades de emprego, educação, saúde e lazer estão em regiões centrais. A população que mais se beneficiaria dessas oportunidades, entretanto, é empurrada para longe, para as periferias, alijadas dessas oportunidades por modais de transporte caros e ineficientes. Essa dissociação entre necessidade e acessibilidade afeta, de forma profunda e severa, as famílias de baixa renda, as pessoas idosas, as pessoas com deficiência e as mulheres. Em muitos casos, desiste-se de ir a uma escola, a um posto de saúde, a uma atividade cultural ou até mesmo de procurar um emprego porque o acesso aos locais onde as atividades estão disponíveis é extremamente difícil, caro, demorado, sofrido, ou até perigoso.

    Há quem analise esse cenário sob a ótica do que se chama "justiça do transporte". Ou seja, como ter justiça social quando um desempregado não consegue chegar ao local onde existe um emprego? Isso dá origem a outro conceito, chamado "taxa de imobilidade". Muitas pessoas que moram nas periferias das cidades brasileiras não conseguem melhorar de vida, sair da pobreza ou dar uma vida melhor para seus filhos porque não conseguem acessar os locais onde há melhores oportunidades de emprego, educação, saúde e cultura. É uma realidade cruel, que não está restrita a nosso País.

    Um dos urbanistas mais reconhecidos na área de mobilidade urbana, o dinamarquês Jan Gehl, costuma dizer que, em muitos lugares, o principal objetivo do planejamento urbano é manter os "carros felizes". Ou seja, o planejamento urbano, muitas vezes, é voltado para o trânsito, em vez de preocupar-se com as pessoas. Em última análise, a mobilidade é encarada como um fim em si mesma, e não como um meio. A realidade, no entanto, é que as pessoas não se deslocam pela cidade pelo gosto de se deslocar; o que elas querem é ter acesso a determinados serviços, atividades, pessoas e assim por diante. O objetivo da mobilidade urbana, portanto, é oferecer acessibilidade, não importando o meio de transporte utilizado.

    Segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional, os deslocamentos nas cidades são feitos de várias formas. Muitos deles - 41% - são feitos a pé; 28%, em transportes coletivos; 25%, em automóveis; 4%, em motocicletas; e apenas 2%, em bicicletas. A Política Nacional de Mobilidade Urbana prioriza, em suas diretrizes - acertadamente, no meu entender - o transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado; e os transportes não motorizados sobre os motorizados. E é com muita satisfação que tenho observado que em Fortaleza, capital do meu Estado, a Prefeitura Municipal tem dado à mobilidade e à acessibilidade urbanas a importância que merecem, implementando uma série de medidas coerentes com as melhores práticas internacionais na área.

    Fortaleza atingiu, em 2019, a expressiva redução de 50% no número de mortes no trânsito, em comparação à 2010. Uma estimativa de 578 vidas salvas nesse período, sendo uma das primeiras cidades do mundo a atingir a meta estipulada pela ONU para redução de mortes no trânsito. Isso foi fruto de diversas políticas públicas e ações, desde 2013, voltadas para o estímulo ao transporte coletivo e aos transportes não motorizados.

    Menciono, a título de exemplo, algumas dessas medidas. De 2013 até agora, foram implantados mais de 110 quilômetros de faixas exclusivas para ônibus; numa cidade que, ressalte-se, tinha, em

    2013, apenas 3,3 quilômetros de faixas exclusivas. Como resultado dessa medida relativamente simples, a velocidade média de deslocamento dos ônibus em duas das principais avenidas de Fortaleza

    - Dom Luis e Santos Dumont - aumentou, respectivamente, 143% e 207%. Implantaram-se também dois BRT's, 23 dos chamados binários

    - avenidas paralelas que se tornam ruas de mão única, em sentidos opostos - e um trinário - a avenida central de um conjunto de três avenidas é reservada exclusivamente para os ônibus. Além disso, recuperaram-se e pavimentaram-se mais de 1 milhão e 700 mil metros quadrados de vias públicas. Todas essas ações mantendo a menor tarifa de sistemas integrados do Brasil. Hoje, em Fortaleza, qualquer cidadão pode realizar a quantidade de integrações que desejar pagando apenas 1 passagem, dentro de 2 horas, inclusive para a Região Metropolitana.

    Na linha de priorizar os transportes não motorizados, a Prefeitura vem agindo de forma exemplar e pioneira. Implantaram-se mais de 220 quilômetros de ciclovias e ciclofaixas, além de estações de bicicletas compartilhadas, que atualmente somam mais de 3 milhões de usos, com a maior taxa de uso por bicicleta do país - e programas educativos para incentivar seu uso. Atualmente, 50% da população de Fortaleza mora a menos de 300m de uma ciclofaixa ou ciclovia. E, com relação aos deslocamentos a pé, frequentemente relegados a segundo plano ou, mesmo, ao completo esquecimento e abandono, criaram-se programas educativos para humanizar o trânsito; construíram-se travessias elevadas e implantaram-se faixas de pedestres; e têm-se trabalhado ativamente na recuperação e construção e ampliação de calçadas.

    Nesse aspecto, aliás, além de ser uma das primeiras cidades a elaborar e aprovar seu Plano de Mobilidade Urbana - que é o instrumento de efetivação da Política Nacional de Mobilidade Urbana -, Fortaleza pode-se orgulhar de ser a única capital do País a ter um Plano Municipal de Caminhabilidade. É isso mesmo: criamos um instrumento de política pública cujo objetivo é "incentivar os deslocamentos de pedestres e pessoas com mobilidade reduzida nas calçadas" e "diagnosticar a situação das calçadas na cidade" para aumentar a segurança e o conforto nos deslocamentos a pé, e incentivar essa modalidade de transporte. Ressalto, ainda, as políticas de financiamento adotadas pela Prefeitura, visando garantir a sustentabilidade de todas essas ações: Toda a arrecadação do estacionamento rotativo (Zona Azul) é destinada exclusivamente para políticas voltadas para bicicletas e pedestres, através de uma Lei municipal, assim como 2% do faturamento das plataformas digitais (uber, 99 táxi, etc), que são aplicados exclusivamente para ações de mobilidade sustentável.

    É muito importante que nós, legisladores, estejamos sensíveis e atentos à questão da mobilidade urbana. O mundo está vivendo o que se chama "segundo grande ponto de inflexão na mobilidade". O primeiro grande ponto de inflexão ocorreu com a popularização do automóvel, no início do século XX. Henry Ford, um dos grandes responsáveis por esse fenômeno, dizia - ou, segundo alguns, nunca teria dito isso, mas pensava assim -, Ford dizia que se, em vez de investir na produção de automóveis baratos, ele tivesse se curvado ao desejo das pessoas da época, estaria criando cavalos mais rápidos, em vez de carros mais acessíveis. A verdade é que não sabemos quando surgirá uma tecnologia nova, disruptiva, na área de mobilidade. Na época do surgimento do automóvel, quando ainda não se antecipava sua importância para a revolução dos transportes, as autoridades inglesas previam que, considerando o aumento da população londrina e a consequente necessidade de se ter mais cavalos na cidade, as ruas da capital, na década de 1940, estariam cobertas por quase três metros de estéreo.

    Vivemos, atualmente, o segundo grande ponto de inflexão na mobilidade e nossas dificuldades de previsão são semelhantes às das autoridades inglesas do século passado. Ainda não sabemos exatamente o que o futuro e a tecnologia nos reservam, mas as melhores previsões apontam que esse futuro terá menos automóveis individuais e mais automóveis de uso compartilhado; esses automóveis serão conectados, movidos a eletricidade e autônomos; teremos mais transportes públicos e coletivos; mais bicicletas; mais deslocamentos a pé; mais calçadas; menos asfalto; mais praças; e mais gente trabalhando à distância, sem congestionar os sistemas de transporte urbano para alcançar seus locais de emprego. E é alvissareiro saber que esta Casa está atenta ao tema, como pode-se constatar pela instalação, no ano passado, de uma Subcomissão Temporária sobre Mobilidade Urbana.

    O cerne, a essência, o aspecto mais central das mudanças que estão por vir é que elas serão voltadas para as pessoas. Teremos mobilidade voltada para as pessoas, acessibilidade voltada para as pessoas, cidades voltadas para as pessoas. E nossa obrigação maior, como legisladores, é incentivar e impulsionar essas mudanças.

    Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 07/02/2020 - Página 48