Discurso durante a 56ª Sessão de Premiações e Condecorações, no Senado Federal

Sessão de Premiações e Condecorações destinada à entrega da primeira edição do Prêmio Adoção Tardia – Gesto Redobrado de Cidadania.

Autor
Fabiano Contarato (PT - Partido dos Trabalhadores/ES)
Nome completo: Fabiano Contarato
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
Crianças e Adolescentes, Homenagem:
  • Sessão de Premiações e Condecorações destinada à entrega da primeira edição do Prêmio Adoção Tardia – Gesto Redobrado de Cidadania.
Publicação
Publicação no DSF de 26/05/2022 - Página 15
Assuntos
Política Social > Proteção Social > Crianças e Adolescentes
Honorífico > Homenagem
Matérias referenciadas
Indexação
  • SESSÃO DE PREMIAÇÕES E CONDECORAÇÕES, DESTINAÇÃO, ENTREGA, PREMIO, ADOÇÃO JUDICIAL, CRIANÇA, ADOLESCENTE.
  • COMENTARIO, EXPERIENCIA, PATERNIDADE, ORADOR, ADOÇÃO JUDICIAL, ENFASE, COMBATE, DISCRIMINAÇÃO, RAÇA, COR, ORIENTAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO SEXUAL, HOMOFOBIA.

    O SR. FABIANO CONTARATO (Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - ES. Para discursar.) – Bom dia a todos e a todas.

    Sr. Presidente, senhoras e senhores, queridos Senadores presentes, minha equipe, funcionários terceirizados, colega de libras, funcionários efetivos e comissionados, o sentimento de família não conhece classe social, não conhece cor, não conhece orientação sexual. Família é onde se semeia e se colhe amor. A minha história de vida espelha isso. Venho de uma família muito humilde, de um pai motorista e mãe dona de casa, que criou seis filhos, desde cedo ensinando os valores do trabalho, da união, da solidariedade, da empatia, da fé em Deus. Hoje tenho plena consciência de que minha experiência de família não estaria completa sem que eu pudesse constituir o meu núcleo familiar. Esse sonho só se tornaria realidade com a experiência da paternidade. Estava consciente de que poderia defrontar-me com as atitudes de preconceito que cercaram e ainda cercam a minha vida.

    Infelizmente, falar no Brasil que todos somos iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza está longe de ser uma realidade. Somos julgados pela orientação sexual, somos julgados pela cor da pele, somos julgados pelo poder aquisitivo, somos julgados pela origem. Não foi diferente comigo. Adotei solo meu primeiro filho Gabriel. Quando me casei, entrei com um processo de dupla paternidade. Um promotor da vara da infância e da juventude negou, em sua promoção, com o argumento de que filho no Brasil só se fosse fruto de uma relação heterossexual: "Filho tem que ter pai e mãe, jamais dois pais". E ainda frisou: "Pior ainda, duas mães". Fecho aspas.

    Os senhores não têm noção de como isso é um processo de violência que dói, e não sei como reparar isso, confesso aqui publicamente, porque, assim como esse promotor agiu comigo, esse comportamento acontece com inúmeros brasileiros e brasileiras que estão aí e que não têm oportunidade de subir a esta tribuna, não têm oportunidade de fazer o que eu fiz, e que são mais uma vez vítimas de uma conduta. Digo aqui que não é uma conduta da instituição Ministério Público, porque essa instituição é a primeira que defende o bem-estar da criança e do adolescente – faço essa ressalva aqui.

    Senhoras e senhores, Senadoras e Senadores, todos os presentes, essa situação na minha vida criou um enorme transtorno. Quando veio a manifestação do promotor, eu já estava casado, Gabriel me chamava de papai, chamava Rodrigo de papai, mas eu, já eleito Senador, tinha que vir a Brasília, e todas as vezes em que precisava vir tinha que buscar a autorização da Justiça para o meu esposo ter a guarda do nosso filho. Até hoje fico emocionado quando me recordo disso.

    A juíza decidiu a meu favor... Não a meu favor, a favor da criança, do nosso filho. Ela atendeu ao que o estatuto determina, o bem-estar da criança e do adolescente, concedendo, inclusive, guarda compartilhada. Porém, o mesmo promotor recorreu ao Tribunal de Justiça, que também decidiu, unanimemente, a favor da adoção pela dupla paternidade.

    Sras. Senadoras e Senadores, vejam a que ponto chega o preconceito em nosso país. Um membro do Ministério Público que atua na Vara da Infância descura do sentido último de sua obrigação funcional – atender ao princípio do superior interesse da criança. Quanta dor, quanto sofrimento ele nos causou para dar vazão a um sentimento de ódio, de exclusão, de intolerância.

    Urgia reagir. Depois do processo transitado em julgado, recorri ao Conselho Nacional do Ministério Público, que decidiu punir o promotor com suspensão de cinco dias.

    Na adoção da nossa segunda filha, Mariana, passei pelo mesmo processo, na mesma vara, com o mesmo promotor. Dessa vez, contudo, ele aquiesceu, não colocou qualquer dificuldade para o reconhecimento da dupla paternidade. Eu pergunto: teria ele mudado de opinião se eu não tivesse buscado a tutela do Estado com esse comportamento de expor a minha filha, o meu filho, o meu esposo, a mim? Mas isso foi necessário para que outros não passem pelo que nós passamos.

    O desamparo à infância no nosso país tem séculos de história. No período colonial, o tráfico buscava escravizados cada vez mais novos. A vida social brasileira acabou marcada pela mistura sinistra entre infância e servidão. Se a Proclamação da República sancionou a igualdade no plano jurídico, pouco fez para que a concepção de cidadania fosse incorporada por meio da implementação dos direitos e garantias fundamentais.

    O estatuto jurídico da adoção desenvolveu-se sob o manto dos interesses e privilégios do adotante e da indiferença com a sorte da infância desamparada, cujo drama tornou-se mais visível com a intensificação da industrialização e da urbanização.

    O Brasil da longa e tenebrosa noite da ditadura, que não hesitava em pregar a tortura, a repressão e a perseguição política como métodos de dominação, combinou a expansão econômica com o processo ímpar de concentração de riquezas e de acentuação das desigualdades sociais. O progresso econômico e a urbanização escancararam a lógica perversa do processo denunciado no hino da Tropicália:

O monumento não tem porta

A entrada de uma rua antiga, estreita e torta

E no joelho uma criança sorridente, feia e morta

Estende a mão

    A imagem forte da infância desamparada surgia como símbolo por excelência de um país de terceiro mundo com todas as mazelas que o caracterizavam, na senda dos movimentos sociais de protestos contra a fome, a miséria e a carestia e dos movimentos grevistas dos trabalhadores heroicos que se reuniram na região do ABC Paulista. Em conjuntura marcada por forte crise econômica e social, o regime militar perdia legitimidade a passos largos.

    A Constituição de 1988 preparou o terreno para tirar o Brasil do Mapa da Fome e resgatar a infância, dotando-a de uma base sólida assentada nos direitos e garantias fundamentais. Em um dos textos jurídicos mais impactantes, o art. 227 da Carta Magna consignou: "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Para o nosso país este era e continua sendo um programa extremamente revolucionário.

    Millôr, geralmente ácido no seu traço, permitiu-se publicar uma charge, no dia posterior ao da promulgação da nossa Carta, centrada na palavra "constituição", toda ela rascunhada com a palavra "esperança", reforçada pelo letreiro, na parte inferior da imagem, "apesar de tudo cercada de esperança". Esse é o regime sob o qual vivemos hoje em dia. Esses são os ideais pelos quais travamos nossa luta.

    O passo decisivo, entretanto, no desenvolvimento de políticas públicas consagradoras da justiça social, veio apenas com o Governo Lula. Rompia-se a crosta da indiferença e da desatenção com a sorte dos mais vulneráveis, dos pobres, dos desvalidos, dos marginalizados. A esperança traduzia-se em conquistas reais que tiveram o enorme mérito de alimentar expectativas sociais positivas entre as classes mais desfavorecidas. Disseminou-se o sentido de acolhimento da infância abandonada, a ênfase na tolerância, na diversidade, no respeito, no diálogo, na compreensão. E a luta contra o preconceito e todas as formas de discriminação favorecem políticas de adoção.

    Sabemos que há uma proporção enorme de pessoas habilitadas a adotar. Porém, as restrições relacionadas a idade, cor, condição física pesam de tal maneira que jogam as estatísticas da adoção para baixo. Preconceitos de toda ordem disseminam-se pelo nosso tecido social, mas políticas públicas de reparação das injustiças e da desigualdade servem de contrapeso. Congregar esforços, agir coletivamente, buscar apoios, romper resistências, tudo isso patrocina a causa da adoção, que depende enormemente da maneira como a sociedade lida com os preconceitos, com a intolerância, com o ódio.

    Creio ser esse o sentido do Prêmio Adoção Tardia – Gesto Redobrado de Cidadania, que esta Casa instituiu – e aqui eu quero agradecer ao Presidente Rodrigo Pacheco, que imediatamente o pautou; à Senadora Nilda Gondim, que foi Relatora do projeto de resolução; à querida Diretora deste Senado, a querida Ilana, que sempre atua de forma aguerrida e sensível –, destinado a agraciar pessoas e instituições que desenvolvam no Brasil ações, atividades e iniciativas destinadas a promover a adoção tardia de crianças e adolescentes.

    Sinto-me muito honrado em ter sido agraciado pelo conselho. Não precisava, Presidente, ter-me agraciado. Acho que muitas outras pessoas merecem estar aqui, e eu tenho fé em Deus que, no ano que vem, teremos outras. O senhor foi um querido e generoso comigo.

    De igual forma, eu me sinto privilegiado em fazer parte, ao lado do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, ao lado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, do Grupo de Apoio à Adoção de Belo Horizonte.

    Todas essas iniciativas, senhoras e senhores, são esforços consistentes de construção coletiva do amparo à infância. A esperança está voltando e vai brilhar novamente.

    Eu quero finalizar, Presidente, mais uma vez, agradecendo, fazendo um alerta a todas as pessoas: derrubem o mito do preconceito; derrubem o mito de que, se é uma criança de mais idade, você coloca resistência para adotar. Eu percorri os abrigos dessas crianças, as casas-lar. Elas têm amor para dar, elas têm um amor incondicional.

    Eu lembro que, quando eu estava indo para a universidade lecionar, meu telefone tocou. Era uma psicóloga do Município de Serra, e ela falou: "Sr. Fabiano?". Eu falei: "Sim". "Aqui é do abrigo, e tem um menino para o senhor." Naquele momento, eu parei o carro, não parei de tremer, e eu apenas disse para ela: "É o meu filho!". Eram quase 7h da noite. No outro dia, eu saí da Corregedoria-Geral do Estado e fui até o abrigo. Lá, era uma casa muito simples – muito simples esse abrigo, senhoras e senhores. Por isso que eu acho que o Estado tem que dar condições dignas para essas crianças. Lá era uma casa simples, com portão fechado. Eu bati. Eis que, na parte interior, tinha uma porta de vidro com rodapé quebrado, Senador Rodrigo, com um buraco, e eu só vi uma cabecinha olhando naquele buraco. E eu falei, sem saber: "Meu filho, chama a tia para abrir para mim". Ela abriu, e, coincidentemente, era o meu filho Gabriel.

    Aquilo foi transformador. Outras crianças me seguravam, pediam para eu levá-las, mas não funciona assim. E aí, quando você busca o Estado, você encontra um estado preconceituoso, sexista, homofóbico, racista, misógino. Isso tem que mudar!

    Enquanto Deus me der vida e saúde, Senador Rodrigo, eu estarei, aqui ou onde quer que esteja, lutando para diminuir o abismo entre milhões de pobres e a concentração de riquezas nas mãos de tão poucos; lutando para dar efetividade a esse fundamento da República Federativa do Brasil, que está no art. 3º, inciso IV, que é promover o bem-estar e abolir toda e qualquer forma de discriminação.

    Infelizmente, esse dia ainda não chegou, em que todos seremos iguais perante a lei, porque, como eu disse, esse é o Brasil em que uns são mais iguais que outros, em que se julga pela cor da pele, em que se julga pela orientação sexual, em que se tenta desqualificar uma pessoa por ela ser mulher. Esse dia vai chegar, eu tenho fé em Deus que vai. E eu quero parabenizar o Senado por estar dando esse passo; esse passo na construção da democracia, na efetivação da cidadania. Eu tenho muito orgulho de fazer parte desta legislatura e de ter V. Exa., Senador Rodrigo Pacheco, com sua sensibilidade para pautar temas que V. Exa. sabe que são caros, mas de que este Senado não pode se furtar.

    Nós não podemos permanecer deitados eternamente em berço esplêndido. Nós temos que dar vez e voz a quem não tem oportunidade de subir a esta tribuna e falar: "Eu fui vítima de um preconceito. Eu fui vítima de uma discriminação. Eu fui vítima de uma homofobia, de um sexismo, de um racismo". Por isso, é de suma importância, porque a minha omissão aqui, enquanto tenho local de fala, seria um ato de covardia para milhões de brasileiros que não têm vez e voz. Porque falar que o Congresso Nacional representa o povo infelizmente está longe de ser uma realidade. Há 80 milhões de brasileiros em situação de pobreza ou extrema pobreza, 25 milhões de desempregados ou subutilizados.

    Eu queria que entrasse por essa porta neste Senado um maior número de representantes de mulheres, de índios, pretos, pardos, quilombolas, pessoas com deficiência, população LGBTQI. Vamos lutar para que isso ocorra! Eu espero que nós tenhamos a força e a coragem de lutar por esse Brasil mais justo, mais fraterno, mais igualitário, mais inclusivo, mais plural, para – quem sabe um dia? – eu chegar aqui e falar que é com muito orgulho que vivemos num Brasil em que todos somos iguais perante a lei.

    Muito obrigado. (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 26/05/2022 - Página 15