Discurso no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DO DIA DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS.

Autor
Eduardo Suplicy (PT - Partido dos Trabalhadores/SP)
Nome completo: Eduardo Matarazzo Suplicy
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • COMEMORAÇÃO DO DIA DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS.
Publicação
Publicação no DSF de 11/12/1997 - Página 27688
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA INTERNACIONAL, DECLARAÇÃO, DIREITOS HUMANOS.

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT-SP. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Senador Geraldo Melo, Srª Senadora, Srs. Senadores, todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns com os outros com espírito de fraternidade. Este é o primeiro dos artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada há 49 anos.

Quão distantes estamos nós de termos todos os direitos humanos realmente cumpridos em nossa Nação? Tomemos, por exemplo, o que diz o art. 23:

      Todos têm direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. Todos, sem qualquer discriminação, têm direito a pagamento igual por trabalho igual. Todos os que trabalham têm direito a uma remuneração justa e favorável, que lhe assegure e à sua família uma existência compatível com a dignidade humana, suplementado, se necessário, por outros meios de proteção social. Todos têm direito de fundar e associar-se a sindicatos para proteção de seus interesses.

Ora, Sr. Presidente, infelizmente, em que pesem os avanços da democracia, ainda estamos muito distantes de vermos em nosso País todas as pessoas com direito à vida e ao emprego, com uma remuneração condigna e, estando desempregadas, com direito a receberem um complemento de renda ou, se empregadas forem e receberem baixa remuneração, uma suplementação - que nem todos têm - que lhes assegure o direito de fato à vida e à saúde.

Sr. Presidente, seja na tradição religiosa ou na tradição do Humanismo agnóstico, o princípio fundamental é o de que o mundo pertence a todos os homens que nele vivam e em tempo atual. Ocorre que na vida social - e nisso o pensamento de Karl Marx é relevante -, com a propriedade privada e a delimitação dos territórios de caça e coleta pela força dos grupos tribais, criou-se a predominância de uns grupos sobre outros e, no interior dos grupos, de uns homens sobre os outros. Para impedir que essa predominância ameaçasse a sobrevivência dos grupos nacionais, surgiu o Estado, na figura de um soberano teológico, de um herói ou simplesmente de um homem mais apto à liderança.

Vico explica a origem do Estado nessas três pontes: a divindade, a lança de Aquiles ou simplesmente a razão política. 

O reconhecimento dos direitos humanos e o seu exercício depende, assim e prioritariamente, da existência do Estado político. Sem Estado, não há direitos, mas, se houver, haverá sempre uma concessão precária do poder tirânico.

Até onde vai a nossa razão, o reconhecimento dos direitos humanos encontra a sua melhor definição antiga no humanismo grego, na democracia ateniense, não obstante a sua discriminação contra as mulheres, os escravos e os estrangeiros. Com a igualdade política de todos os homens gregos, ou seja, de seu igual direito de participar da administração do Estado, se assegura - ainda com as exceções apontadas - o mais importante de todos os direitos em uma sociedade organizada: o direito de legislar ou, como era o caso grego, de aprovar ou não as leis elaboradas pelo corpo de juristas. Isso se estabelece no arco do tempo que vai das reformas de Clistênio à liderança de Péricles, ou seja, da passagem do conceito de “isonomia” ou conceito de “democracia”.

Com o ocaso do sistema helênico, cabe à República Romana retomar o humanismo pagão e dar-lhe uma construção jurídica mais bem elaborada. Os romanos, mais do que os gregos, associam a idéia da liberdade política à idéia da propriedade. É assim que, no quarto século antes de Cristo, se elabora a primeira reforma agrária, limitando a 500 arpêntios, ou seja, a cerca de 100 hectares o máximo de terras que um cidadão romano pode possuir, e a distribuição das restantes aos despossuídos. Se bem os gregos houvessem já usado desse expediente, o da distribuição de terras, os romanos o obtêm, pela primeira vez, não pela concessão do legislador, mas como conquista política da plebe. A necessidade da aprovação da plebe de algumas leis ou decisões da classe dirigente (os plebi scita) assegura ao povo, em última instância, o poder político. Mas o que é o povo? Segundo Cícero, é aquela parcela da plebe que se interessa pela coisa pública e vai aos comícios. Essa distinção entre o indivíduo e o cidadão será confirmada, mais tarde, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa. Todos os homens têm os direitos básicos assegurados, mas alguns deles, os cidadãos, pelo fato de assumirem o seu dever político, têm-nos ampliados. O direito à cidadania, no entanto, não é concessão do poder estabelecido, mas o resultado de uma vontade própria de quem assume o seu dever público, seja assumindo os encargos políticos e administrativos da res pública, seja assumindo no limite do voto - o levantar de mãos em Atenas e em Roma e o comparecimento às sessões eleitorais modernas. A cidadania, no entender de muitos, não pode ser compulsória. Ao ser compulsória, passa a ser manipulável, como ocorre no Brasil de hoje.

O direito de ser homem é o direito não só de ocupar o mundo físico com a mesma igualdade essencial, como o de ocupar a memória cultural do mundo e os valores intelectuais construídos ao longo da civilização. As terras férteis têm, nesse entendimento, o mesmo sentido de um teorema de Pitágoras, de um binômio de Descartes ou de um poema de Homero. Sendo assim, junto ao direito à comida, o homem tem direito à educação. O homem se faz de bens materiais indispensáveis (a "propriedade, no conceito de Locke) e de bens espirituais. Negar um é negar os outros.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, no domingo retrasado, o jornalista Mauro Santayana escreveu, no Correio Braziliense, um artigo extremamente interessante sobre “Estes Tempos”, afirmando:

"Estes são tempos que põem à prova a alma dos homens" - assim inicia o seu primeiro panfleto sobre a guerra da independência dos Estados Unidos (The American Crisis") a personalidade mais fascinante daquele período, Thomas Paine. Paine, como não pertencesse à classe dos cavalheiros, a que pertenciam Washington e Jefferson, Hamilton e Madison, permaneceu, durante mais de cem anos, como um outsider na história dos Estados Unidos. Só neste século a sua importância passou a ser reconhecida como o fundador da democracia social moderna.

Estudiosos atentos demonstram que esse irrequieto andarilho foi o criador do welfare state, ao propor, ainda no Século XVIII, a abolição da filantropia, de caráter piedoso, e a sua substituição pela ação governamental. A extinção da escravatura, a universalização do ensino e da assistência à saúde, a promoção cultural dos pobres, o fim dos preconceitos, constituíam o seu ideário.

Inglês que se fez norte-americano, foi instado por Benjamin Flanklin a viver na América, e lá foi uma das pessoas que mais contribuíram para a conscientização dos norte-americanos. George Washington considera Thomas Paine uma das pessoas que mais colaboraram, através do seu panfleto, distribuído em janeiro de 1776, para a conscientização da Revolução que resultou na independência dos Estados Unidos.

“Howard Fast, ao biografá-lo, deu-lhe o título certo: "Citizen Tom Paine".

Todos os escritos de Paine são textos políticos importantes, mas os panfletos pela independência, publicados anonimamente com o título geral de “The Common Sense”, espantam pela clareza dos argumentos. Neles, o ex-marinheiro e ex-cobrador de impostos conclama os norte-americanos a se libertarem da Inglaterra, mostrando que contrariava o entendimento plano que um continente se submetesse a uma ilha e que o futuro se subordinasse ao passado.

Ver as coisas claramente é o atributo dos sábios. Vê-las complicadas é vício dos que se presumem sábios. Por isso é importante que o poder político esteja entregue aos homens comuns, que respeitam o entendimento geral do mundo, e não aos que, com a formação acadêmica, adquiriram conhecimento e informação, mas - de acordo com um dos versos de T.S. Elliot - provavelmente tenham perdido a sabedoria”.

Ora, Sr. Presidente, é preciso tomarmos cuidado com aqueles intelectuais, sociólogos, que, em sabendo tanto, às vezes acabam se distanciando de seu povo, deixando de estar presentes, com maior freqüência, junto àqueles que estão excluídos, marginalizados do progresso.

Seria importante que a elaboração da política econômica em nosso País levasse em conta não tanto os apelos ou as aspirações de pessoas como os investidores internacionais, como aqueles com os quais o Presidente Fernando Henrique Cardoso esteve dialogando na última semana, em Londres. É preciso que o Presidente esteja dialogando mais com aqueles que, hoje, vivem os percalços das situações de desemprego ou de baixa remuneração, que estão por quase todo o Brasil.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, no Dia da Declaração Universal dos Direitos Humanos, quero fazer dois registros: um positivo, sobre fato que eu aqui havia relatado há alguns meses, que tanto nos preocupou. Refiro-me à tentativa de assassinato não tanto de uma pessoa, mas de um projeto político de participação popular, de democracia, de honestidade, de transparência. Tentativa de assassinato por parte de quem queria que voltássemos aos procedimentos anteriores, aos velhos métodos de corrupção, ao coronelismo, à falta de participação popular.

Refiro-me, Sr. Presidente, ao atentado ocorrido há alguns meses contra o Prefeito Jesus de Lima, de Betim. Acabo de receber um telefonema deste, do seu gabinete, informando que está bem de saúde, o que é extremamente importante. Jesus de Lima disse que a Secretaria de Segurança do Estado de Minas Gerais conseguiu - e por isso faço uma referência positiva ao Governador Eduardo Azeredo e ao Delegado Othon Teixeira, da Divisão de Homicídios -, segundo os indícios até agora, identificar o mandante e os pistoleiros contratados.

Ora, Sr. Presidente, é muito difícil descobrir exatamente quem contratou pistoleiros para tentar matar uma pessoa, no caso o Prefeito Jesus de Lima. Felizmente, o delegado conseguiu reunir todos os elementos, de tal maneira que já se está realizando o indiciamento do mandante, bem como daqueles que foram contratados para cometer aquele crime. Considero essa ação extremamente importante.

Ressalto a importância do restabelecimento, felizmente, para o povo de Betim, para Minas Gerais, do Prefeito Jesus de Lima, que se recupera muito bem e já está administrando a sua cidade, com muita vontade e muita alegria, conforme acaba de me transmitir.

Em segundo lugar, Sr. Presidente, quero também fazer um registro sobre a importante visita realizada hoje do Presidente da Câmara dos Deputados do Governo do Tibete no exílio, o Professor Samdhong Rinpochi, que, nascido em 1939 na região Khams, no Tibete oriental, recebeu a educação clássica de um monge budista, em monastérios no Tibete e na Índia, completou os seus estudos até o doutorado, com especialização em Filosofia budista e sânscrito, mas, com a invasão de seu país pelo exército da República Popular da China no final da década de 50, Samdhong Rinpochi fugiu para Índia, onde mais tarde viria a ocupar posição destacada no governo tibetano no exílio, chefiado pelo Dalai Lama. E quando Dalai Lama fundou o Instituto Central de Altos Estudos Tibetanos, Samdhong Rinpochi foi nomeado seu Diretor, cargo que exerce até hoje. E essa instituição de nível universitário, estabelecida em Varanasi, na Índia, hoje é um dos principais centros de preservação e difusão da cultura tibetana.

Samdhong Rinpochi esteve, hoje, no Congresso Nacional, participou de audiência pública na Comissão de Direitos Humanos, acompanhado do Deputado Fernando Gabeira, que se empenhou junto ao Itamaraty a fim de que ele pudesse ter liberado o visto de ingresso no Brasil sem qualquer problema. Também esteve visitando, ao final da manhã de hoje, o Presidente do Senado, o nobre Senador Antonio Carlos Magalhães, que ouviu com atenção suas preocupações.

Por que essa questão do Tibete se relaciona à Declaração Universal dos Direitos Humanos? Por que, Sr. Presidente, ali no Tibete ainda não estão sendo respeitados alguns direitos humanos fundamentais: o direito à liberdade de expressão, à liberdade de se proferir e exercitar a sua crença e o direito à democracia? Disse Samdhong Rinpochi que as crianças em seu país, em boa parte, sobretudo os tibetanos, não estão tendo direito à educação - 31% comparados a cerca de 5% dos chineses no território tibetano. Samdhong Rinpochi está preocupado com a possibilidade eventual de não se preservar a cultura dos tibetanos.

Conforme assinalou o Presidente Antonio Carlos Magalhães, temos uma relação de amizade e de respeito com o Governo da República Popular da China. Seria muito importante, até por essa circunstância, que o Brasil pudesse colaborar, no sentido de melhorar as condições para o povo do Tibete, ao qual manifestamos a nossa solidariedade, fazendo este apelo ao Governo da República Popular da China: de que possa haver também, naquele extraordinário País, o respeito que consta da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas, em especial, queremos ver cumpridos todos os artigos desta Declaração no Brasil.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 11/12/1997 - Página 27688