Discurso durante a 236ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Reflexão sobre os 60 anos da "Declaração Universal dos Direitos Humanos".

Autor
Pedro Simon (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RS)
Nome completo: Pedro Jorge Simon
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. DIREITOS HUMANOS.:
  • Reflexão sobre os 60 anos da "Declaração Universal dos Direitos Humanos".
Aparteantes
Cristovam Buarque.
Publicação
Publicação no DSF de 13/12/2008 - Página 52201
Assunto
Outros > HOMENAGEM. DIREITOS HUMANOS.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO, DECLARAÇÃO, DIREITOS HUMANOS, COMENTARIO, HISTORIA, CRIAÇÃO, TEXTO, POSTERIORIDADE, SEGUNDA GUERRA MUNDIAL, PARTICIPAÇÃO, BRASILEIROS, GOVERNO ESTRANGEIRO, EDIÇÃO, TRATADO, BUSCA, RECONSTRUÇÃO, MUNDO, GARANTIA, QUALIDADE DE VIDA, SOCIEDADE, DIFICULDADE, ACORDO, IDEOLOGIA, COMUNISMO, CAPITALISMO.
  • COMENTARIO, DESCUMPRIMENTO, DECLARAÇÃO, DIREITOS HUMANOS, AMBITO INTERNACIONAL, OCORRENCIA, GUERRA, XENOFOBIA, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, DESIGUALDADE SOCIAL, DISCRIMINAÇÃO SEXUAL, NECESSIDADE, RESPEITO, DIVERSIDADE, COMPLEMENTAÇÃO, TRATADO.
  • IMPORTANCIA, DECLARAÇÃO, DIREITOS HUMANOS, MELHORIA, DIREITO INTERNACIONAL, INTEGRAÇÃO, SOCIEDADE, MUNDO, CRITICA, SISTEMA, PRODUÇÃO, FAVORECIMENTO, AMPLIAÇÃO, DESIGUALDADE SOCIAL, REGISTRO, CONFERENCIA INTERNACIONAL, BUSCA, IGUALDADE.
  • DEFESA, IMPLANTAÇÃO, DECLARAÇÃO, DIREITOS HUMANOS, CONSCIENTIZAÇÃO, POPULAÇÃO, BUSCA, IGUALDADE, CONSOLIDAÇÃO, DEMOCRACIA.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


O SR. PEDRO SIMON (PMDB - RS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Meu querido Presidente Paim, Srs. Parlamentares, peço licença, mas tenho a obrigação moral de falar sobre os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

         Haverá uma sessão, na semana que vem, mas será tão intensa, com tanta gente, que eu, com um pouco de serenidade e com a tolerância de V. Exª, faço questão de valorizar o que considero, talvez, um dos momentos mais importantes da história da humanidade.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos completou agora, na última quarta-feira, anteontem, 60 anos. Nascida no imediato pós-guerra, ainda no calor sufocante das bombas derramadas sobre Hiroshima e Nagasaki, ela lançou para o mundo, que saía de um dos conflitos mais odiosos da história, um olhar de esperança.

Três anos antes, parecia que a humanidade havia sucumbido ao ódio, tamanha a barbárie de mulheres, de corpos mutilados sob escombros, último ato de uma história da vida real que não quer ser esquecida, para não ser repetida.

Havia, então, um sentimento de reconstrução não apenas das cidades e dos campos destruídos pela guerra, mas de todos os melhores valores igualmente feridos de morte nos corações e mentes de quem mandou acionar os gatilhos, os rastilhos e as válvulas de gás letal, em nome do poder. Não importavam milhões de vítimas inocentes.

Era preciso fazer brotar de novo a semente do verdadeiro sentido de humanidade. A propósito, lembro-me das palavras de “Flores sobre Ruínas”, na obra Hiroshima, de John Hersey:

Por toda parte - sobre os destroços, nas sarjetas, nas margens do rio, entre as telhas e as chapas de zinco dos telhados, nos troncos carbonizados das árvores - estendia-se um tapete verde, viçoso, otimista, que brotava até mesmo dos alicerces das casas em ruínas. O capim já escondia as cinzas, e flores silvestres despontavam em meio ao esqueleto da cidade. A bomba não só deixara intatos os órgãos subterrâneos das plantas, como os estimulara. Por toda parte, havia centáurea, iúcas, quenopódios, ipoméias, hemerocales, beldroegas, carrapichos, gergelim, capim e camomila. Principalmente num círculo do centro, o sene vicejava numa extraordinária regeneração, não só entre os restos crestados da mesma planta, como em outros pontos, em meio aos tijolos e através das fendas do asfalto. Parecia que o mesmo avião que jogara a bomba atômica, também soltara uma carga de sementes de sene.

É assim que eu imagino o que inspirou os mentores da Declaração Universal dos Direitos Humanos: fazer florescer a esperança nos campos minados pela barbárie.

Acreditar que sempre haverá sementes de sene que, teimosas, brotarão entre as cinzas, em meio aos tijolos e ao concreto e nas fendas do asfalto. Que haverá, igualmente sempre, uma semente de humanidade, que, a exemplo do mesmo sene, brotará no terreno arenoso do desdém.

É bem verdade que vieram, depois, tantas outras guerras: Vietnã, Coréia, Kosovo, Bósnia, Afeganistão, Iraque... Vieram repetir os conflitos étnicos; vieram milhões de refugiados com seus esqueletos expostos pela inanição.

Vieram, anos a fio, todos os tipos de segregação, racial, social, política, de gênero...

Vieram as guerras civis não declaradas, com milhões de vítimas de violência, urbana e rural.

Veio a fome que mutila, hoje, um bilhão de seres em todo o planeta.

Vieram tantos muros, reais e virtuais, a separar dois mundos, um além dos limites do supérfluo, outro muito aquém do necessário.

Vieram os “condomínios”, individuais ou coletivos, com todo o aparato de segurança, a demarcar até onde podem chegar os excluídos, muitas vezes pela loteria da própria vida.

Vieram, enfim, quem sabe, os limites entre os que têm e os que não têm, de fato, direitos humanos na sua plenitude.

Apesar da aridez da travessia, não se pode negar que muito se caminhou nessas seis décadas, nesses 60 anos de vida plena da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

É bom lembrar, por exemplo, que, no início dessa mesma caminhada, os negros americanos eram obrigados a ceder seus lugares, nos coletivos, para os considerados, então, “cidadãos” brancos.

Imagino que, naquele tempo, a tal Declaração Universal, mesmo que ainda engatinhando, tenha inspirado Rosa Parks a se rebelar contra esse verdadeiro desatino. Imagino, também, que tenha inspirado, 60 anos depois, a eleição de um negro para comandar os destinos do mesmo povo americano.

Sr. Presidente, mas o que motiva a mim hoje, nessas minhas reflexões no plenário do Senado Federal, é que a realidade de todo o planeta mostra que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, embora com 60 anos, ainda está muito longe de uma possível e desejada aposentadoria.

Bom seria se ela pudesse descansar, merecidamente, nas prateleiras da História.

Infelizmente, as nossas janelas, também as reais e as virtuais, ainda mostram que são muitos, em alguns casos bilhões, os que, quanto aos direitos humanos e as liberdades, sofrem distinção “de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento” ou outras. Isso para ficar apenas em um dos seus 30 artigos.

O noticiário mostra, também, que populações inteiras são dizimadas, verdadeiros genocídios em pleno século XXI, gerados pela fome, por doenças plenamente erradicáveis, por lutas tribais, pela corrupção, pelo poder a qualquer custo e por um sem-número de mazelas que persistem em todos os cantos e recantos do planeta.

Não são raras as cenas de xenofobia, de perseguições étnicas, de segregação de povos e de territórios, entre outras. São os casos, por exemplo, da repressão explícita aos imigrantes na França, na Alemanha, na Espanha, na Itália; da fome em Zimbábue; das lutas entre tribos em tantos países africanos...

O Sr. Cristovam Buarque (PDT - DF) - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. PEDRO SIMON (PMDB - RS) - Pois não. Ouço o aparte de V. Exª.

O Sr. Cristovam Buarque (PDT - DF) - Senador Pedro Simon, embora tenhamos programado uma sessão de homenagem pelos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos na próxima semana, o seu discurso é extremamente oportuno e faz essa comemoração agora, aqui. Quando vejo o senhor listando tudo aquilo que a gente precisa hoje em dia para levar adiante a Declaração, e como ela era importante naquele momento, eu quero só voltar a insistir em algo que eu falei uma vez aqui, que é a necessidade de que o Presidente Obama não seja apenas o primeiro Presidente negro, mas seja também o primeiro Presidente do século XXI, porque, até aqui, os presidentes são do século XX, ainda que, cronologicamente, nos anos dois mil. Eles são do século XX porque eles não levaram em conta plenamente essas declarações, porque não houve um envolvimento pleno dos presidentes norte-americanos para liderarem um grande movimento mundial que permita cumprir plenamente as declarações. Oxalá o Presidente Barack Obama, além de ser o primeiro Presidente negro dos Estados Unidos, seja o primeiro Presidente norte-americano a, de fato, ter uma agenda sintonizada com o século XXI: o século XXI da autodeterminação dos povos plenamente, sem que os Estados Unidos invadam quando acharem conveniente; o século XXI das metas do milênio das Nações Unidas sendo cumpridas e não ficando para trás; o século XXI de um desenvolvimento econômico compatível e harmônico com o equilíbrio ecológico. E o Governo americano, até hoje, nem assinou o Acordo de Kyoto. Eu espero que a eleição de um presidente negro seja a eleição de um presidente sintonizado com a agenda do século XXI, que é a agenda que comemora tanto tempo já - 50 anos - da Declaração dos Direitos Humanos. Parabéns por trazer este assunto. Se o senhor estiver aqui, na próxima semana, vamos ter uma sessão especial para homenagear essa Declaração, que é um marco, como o senhor disse no começo do discurso, é um marco na história da humanidade.

O SR. PEDRO SIMON (PMDB - RS) - Muito obrigado a V. Exª.

Uma mera pesquisa sobre alguns povos específicos é o suficiente para fortalecer a necessidade do cumprimento, imediato, de todos os artigos da Declaração Universal. Também, a título de exemplo, a perseguição ao povo cigano, na Itália, uma verdadeira xenofobia, que muitos chegam a comparar com as perseguições do regime nazista, reproduzindo agora o que aconteceu nos tempos em que a mesma Declaração dos Direitos Humanos foi concebida.

Portanto, a realidade demonstra a necessidade de um passo além de tudo que foi feito e que foi declarado na Assembléia Geral das Nações Unidas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos naquele dia 10 de dezembro de 1948.

O documento continua sendo, passados tantos anos, atual. Sendo assim, é porque a realidade também mostra que os seus artigos ainda persistem necessários, certamente longe do que desejavam os seus idealizadores. Mostra que a travessia tem, ainda, um longo caminho a ser percorrido.

O ser humano idealizado na Declaração Universal tem fortes correlações com o homem projetado à imagem e semelhança do Criador.

Reparem o que diz o art. 1º da Declaração dos Direitos Humanos:

Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.

Reparem o que declara o primeiro capitulo de Gênesis da Bíblia:

Eu entrego a vocês todas as ervas que produzem semente e estão sobre toda a terra, e todas as árvores em que há frutos que dão semente: tudo isso será alimento para vocês.

Quem sabe, então, o Criador queria nos dizer que os dispositivos da Declaração são sementes de sene, a serem lançadas nos campos devastados pela falta de cumprimento dos direitos humanos em nossos tempos. “Flores sobre ruínas”.

Quem sabe queira Deus relembrar que nos criou dotados de razão e de consciência e que nos falta, enfim, o tal espírito da fraternidade.

Naquele 10 de dezembro de 1948, a Organização das Nações Unidas (ONU), então composta por apenas 58 Estados-membros, ao dar à luz à Declaração Universal dos Direitos Humanos, construiu na verdade a baliza que nas últimas seis décadas, nos últimos 60 anos, orientou o tão almejado encontro da humanidade consigo mesma.

Àquela época, a necessidade desse encontro havia se evidenciado de forma dramática e inequívoca durante a Segunda Guerra Mundial, conflito de inédita amplitude destrutiva que deu ensejo à criação da ONU.

De fato, a humanidade buscava uma forma de reconhecer-se como tal depois do terror dos campos de concentração nazista, onde milhões de seres humanos foram cruelmente assassinados em nome da intolerância racial. Procurava reconciliar-se depois de conhecer a força sufocante da bomba atômica que, em um átimo, silenciou, destruiu as cidades de Hiroshima e Nagasaki, reduzindo a nada o valor da vida.

Até chegar ao texto que hoje se conhece, houve muito esforço e longos debates. Não foi fácil! Eles foram conduzidos, com doçura e firmeza, por Eleanor Roosevelt, a ex-Primeira-Dama dos Estados Unidos, eleita por votação direta para coordenar os trabalhos da elaboração do documento.

Ela presidiu o Comitê dos Direitos Humanos, grupo incumbido de elaborar o rascunho da Declaração Universal, composto por dezoito pessoas de diversas formações políticas, culturais e religiosas, provenientes de oito países selecionados com base em sua distribuição geográfica. Desse grupo também participou o Brasil, representado pelo imortal jornalista Austregésilo de Athayde.

Devo dizer que não foi sem discordâncias que se elaborou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Pelo contrário, eram permanentes as polêmicas e os embates travados pelos membros de blocos opostos em função de suas distintas visões do mundo.

De um lado, o bloco capitalista ocidental buscava a reafirmação das liberdades clássicas do indivíduo, centrando sua atenção na defesa dos direitos civis e políticos. Do outro lado, o bloco socialista oriental tentava estabelecer o privilégio do coletivo sobre o indivíduo, fosse em prol da harmonia social, fosse em defesa da ordem e da autoridade religiosa ou secular, mediante a defesa dos direitos sociais, econômicos e culturais.

Dessa disputa, emergiu o texto que foi submetido ao exame da Assembléia-Geral da ONU e aperfeiçoado com sugestões de mais de 50 países que participaram da redação final do documento.

Por representar o maior consenso possível no campo dos direitos humanos naquele momento, a Declaração Universal recebeu o aval unânime de 48 países num processo de votação que ainda registrou duas ausências e oito abstenções.

Não por acaso, Austregésilo de Athayde encerraria o discurso solene da sessão que adotou o documento, reportando-se à alegria do Brasil por ter levado “um pouco de sua experiência e de seu idealismo a essa obra comum das Nações Unidas, convencido de que a Declaração Universal dos Direitos Humanos abrirá à humanidade nova era de liberdade e de justiça”.

Como fruto do dilema entre preservar a civilização ou sucumbir à barbárie, pouco antes corporificada no nazifascismo, a Declaração Universal realmente acenava com o descortinar de novos e melhores tempos. Isso porque constituía a mais perfeita síntese de avanços éticos da humanidade, seja por abranger o reconhecimento dos direitos civis e políticos (de natureza individual) e dos direitos econômicos, sociais e culturais (de cunho coletivo), seja por afirmar a indivisibilidade e a universalidade do conjunto desses direitos.

Além disso, ao posicionar o ser humano no palco das relações internacionais e a dignidade humana como fio condutor de toda ação do Estado, a Declaração Universal humanizou o direito internacional e tornou-se referência para a elaboração dos diversos ordenamentos jurídicos nacionais, a exemplo da Constituição brasileira de 1988.

Também deu origem a uma rede de proteção atualmente formada por mais ou menos 80 pactos, protocolos, tratados, convenções internacionais que reverberam pelo mundo o respeito devido aos direitos de todos nós, sinalizando o aumento da busca pela concretização do ideal de justiça, caminho certo da paz.

Sr. Presidente, Srs. Senadores, a promessa de melhores tempos lançada com a adoção da Declaração Universal até hoje não se cumpriu plenamente, como teima em provar a triste realidade de contínuas violações dos direitos humanos nas últimas décadas.

Para que se tenha uma idéia da gravidade do quadro, basta recordar alguns casos de violação mais notórios na atualidade: o abandono de milhões de pequenos órfãos na África em decorrência das mortes causadas pela Aids; as torturas praticadas pelos soldados norte-americanos nas prisões iraquianas e na de Guantánamo; o genocídio em curso no Sudão; a sucessão de mortes de crianças indígenas no Brasil por desnutrição; a seqüência de abusos sofridos por mulheres, crianças e bebês no Congo; as execuções judiciais de prisioneiros nos Estados Unidos; o longo bloqueio econômico a Cuba; a exploração sexual de crianças e adolescentes em quase todos os cantos do planeta; o analfabetismo no Haiti e na Guatemala; os assassinatos promovidos pela máfia no Japão e na Itália; o trabalho em condições análogas à escravidão na China; a violência endêmica nas grandes metrópoles; a violação sexual de mulheres por soldados russos na Chechênia; o desemprego estrutural nos países da América do Sul; os atentados terroristas na Espanha e na Índia; a xenofobia na França; o crescente mapa da miséria em todo o mundo.

Em resumo, uma lista vergonhosa e infindável de atrocidades.

Do advento da guerra fria, que deu margem ao recrudescimento da ditadura em vários países, passou-se ao fenômeno da globalização econômica, que tem beneficiado pouco mais de 1/3 dos habitantes do planeta em detrimento dos outros 2/3 da humanidade, submetidos a condições de vida cada vez mais precárias.

Com efeito, a busca obsessiva da eficiência e da máxima competitividade, lastreada no avanço tecnológico e na informatização, tem provocado o aumento da pobreza e da miséria mundo afora, por meio do desemprego estrutural, da exploração de mão-de-obra barata, do desmonte da previdência pública e do enxugamento do Estado.

Nesse contexto, responsabiliza-se o pobre por sua própria pobreza e por tudo o que há de mais negativo: superpopulação, epidemias, destruição ambiental, vícios, tráfico de drogas, exploração do trabalho infantil, fanatismo, terrorismo, violência urbana, criminalidade. Enquanto isso, o rico constrói grades protetoras ao redor de si e, para exercer livremente os seus direitos, cobra medidas enérgicas do Estado, exacerbando a intolerância contra os “diferentes”.

O Estado, por seu turno, com os olhos voltados ao mercado e centrados, especialmente, no resultado da Bolsa de Valores, convive com a corrupção e faz pouco caso do valor humano, levando as pessoas à indiferença com a direção do seu destino coletivo e à adoção de um comportamento cada vez mais egocêntrico e inconseqüente.

Ausente no mundo dos “diferentes”, o Estado legal, à sua revelia, é substituído pelo Estado paralelo, notoriamente comandado pelo narcotráfico. Vem daí, por exemplo, a milícia, que avoca para si o “direito” de prender, julgar e condenar alguns seres humanos, na grande maioria das vezes, à pena capital.

Aos “diferentes”, a milícia, travestida de polícia. Aos “iguais”, a justiça, moldada pela impunidade.

Os meios de comunicação de massa, com raras e honrosas exceções, reforçam essa tendência, ao privilegiar o sensacionalismo, a futilidade e a violência.

Para vender mais, não costumam se importar com o conteúdo do seu produto, usualmente divorciado de qualquer relação com a carência que o desamparo na educação, na saúde e no trabalho vem gerando na humanidade. São meros agentes do mercado, do mundo dos “iguais”, numa apologia ao ter no lugar do ser.

O esgarçamento do tecido social assim produzido oferece o meio propício para a ocorrência de todo tipo de violação dos direitos humanos ou, na melhor das hipóteses, para a permanente ameaça que paira sobre eles, colocando em xeque o avanço civilizatório representado pela Declaração Universal e seus corolários.

Contudo, esses fatos não conseguiram soterrar a promessa de melhores tempos nela veiculada. Paralelamente à seqüência de violações a que deram ensejo, verificou-se o crescimento e a consolidação da idéia de cidadania planetária, animada pelo arraigar da tese de interdependência, da indivisibilidade e da universalidade dos direitos humanos.

Nesse movimento de globalização em prol do ser humano, tem sido central o debate sobre a questão das diferenças.

Repelida nos instrumentos internacionais que oferecem proteção geral, genérica e abstrata, por ter sido usada como justificativa para exterminar e destruir, a diferença começou a ser invocada para evidenciar a necessidade de conferir respostas específicas à proteção de determinadas pessoas, grupos ou situações mais vulneráveis às violações.

Converteu-se, assim, em critério básico de inclusão social, posto que os desiguais merecem receber tratamento especial.

De fato, é com base na valorização da diferença para o alcance da efetiva igualdade que vieram a lume os demais instrumentos formadores da espinha dorsal da normativa mundial de proteção dos direitos humanos: a Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1966; a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, de 1979; a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, de 1984; a Convenção Sobre os Direitos da Criança, de 1989; e a Convenção Sobre o Direito das Pessoas com Deficiência, de 2006.

Com o aporte desses diplomas, que reiteram, atualizam e ampliam os termos da Declaração da ONU de 1948, o cabedal de proteção internacional de direitos humanos vai além das garantias de natureza civil, política, econômica, social e cultural para incluir, também, o direito à solidariedade. Este se desdobra em direito à diferença, direito ao desenvolvimento, direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e direito à paz.

Portanto, no plano da legislação, da idéia do que deve ser um mundo, caminhamos, quem sabe, para um ambiente de fraternidade universal.

         No plano dos fatos, porém, vivenciamos, no século XXl, uma realidade que mais se parece com o obscurantismo medieval e o estado mais primitivo de predação do homem pelo homem.

Para preservar a espécie que foi criada à imagem e à semelhança de Deus, precisamos resolver esse impasse e realizar, juntos, a utopia da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, no decorrer do século XX, o ser humano viveu um ritmo absolutamente frenético em um número sem-fim de experiências, cada uma mais intensa que a outra. As sucessivas descobertas tecnológicas permitiram-lhe fabricar armas superpotentes, instrumentos de precisão inimaginável, veículos maciços de difusão de informações e meios de transporte ultravelozes.

Tudo isso provocou alterações substanciais no conhecimento que ele tinha de seu espaço, de sua história e de si mesmo.

Nesse processo de desconstrução, todos os grandes discursos que guiavam o homem foram postos sob suspeita, quando não definitivamente aniquilados, deixando-o sem rumo. Para garantir a sua sobrevivência, julgou ser necessário, então, tomar o caminho da intolerância: passou a investir contra tudo o que lhe parecesse diferente, buscando - na violência - resposta para os seus problemas.

O triste saldo da última Guerra Mundial mostrou o equívoco dessa escolha, colocando o ser humano de frente com o imperativo de eleger o caminho da solidariedade em nome de sua autopreservação.

Assim nasceu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, germe da cultura de respeito e tolerância a ser instalada em todo o planeta.

Há quem hoje despreze o conteúdo da Declaração, nele apontando falhas que seriam responsáveis pelas crescentes violações dos direitos humanos, sobretudo a generalidade no trato das pessoas, sem considerar as profundas diferenças que as isolam no mundo real.

Nessa linha de raciocínio, o surgimento de diplomas internacionais voltados à proteção de determinados segmentos ou situações seria a prova definitiva da declaração da decrepitude do texto da Declaração.

Talvez essa atitude seja reflexo de uma era de mudanças velozes e de uma cultura de menosprezo ao passado, que se revela no desrespeito generalizado aos idosos, grupo a que a sexagenária Declaração Universal passou a pertencer a partir de 2008.

Todavia, não se pode desconsiderar a força e a atualidade desse documento, que resistiu incólume a alterações de toda ordem no cenário mundial nas últimas seis décadas, com adesão sempre crescente. Convém lembrar, a propósito, que surgiram mais de cem novos Estados nacionais, novos cem países, desde o nascimento da Declaração e que a maioria absoluta das nações do planeta não teve dificuldades para aceitar seus dispositivos e incorporá-los à legislação doméstica.

Convém lembrar, ainda, que esse documento tem inspirado as lutas reivindicatórias de todos os oprimidos, cujas conquistas se expressam no significativo conjunto de tratados e mecanismos internacionais a que os Estados aderem voluntariamente, cientes de que sua postura denuncia o avanço civilizatório de seus povos.

Convém lembrar, por fim, que a Declaração Universal deu ensejo à inclusão do ser humano no palco das relações internacionais, antes monopólio absoluto dos Estados, que tinham o poder não contestado de vida e morte sobre seus nacionais.

Deflagrou, assim, um processo irreversível e contagioso de democratização dentro e fora dos Estados, um processo que hoje chega a questionar a própria estrutura da ONU, anacrônica no poder de veto conferida aos países membros do Conselho de Segurança num contexto histórico muito distinto do contemporâneo.

Cuida-se, em suma, da cidadania planetária, única forma de fazer frente aos problemas igualmente planetários com que nos deparamos neste momento.

Portanto, é inadmissível o argumento da caducidade da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Esse documento talvez constitua a única grande narrativa que sobreviveu ao século XX, marcado pela velocidade e pela fragmentação em todos os sentidos. Isso porque ela inseriu, na agenda política nacional, a questão dos direitos humanos, que, na sua complexidade, aponta para um plano de utopia, uma idéia reguladora, um horizonte que nunca poderá será ser alcançado porque está sempre mais além, mas sem o qual não saberíamos sequer para onde ir.

A observação efetiva dos direitos humanos nas políticas e práticas das nações e na experiência das pessoas, no entanto, constitui outra questão.

O desrespeito aos direitos humanos faz parte do cotidiano mundial e, para citar o caso apenas do Brasil, atinge um número cada vez maior de pessoas, privadas do mínimo necessário a sua existência: meninos e meninas perambulam pelas ruas das metrópoles; desempregados são forçados a morar ao relento; idosos morrem aos poucos, à míngua de assistência médica; crianças e adolescentes são mantidos no trabalho precoce, longe da escola, e acabam mutilados pelos equipamentos de serviço; meninas são submetidas à violência e à exploração sexual, fantasma que perturba também a vida dos meninos de forma crescente; trabalhadoras deixam seus filhos trancados em casa por falta de creches; presidiários, jovens da periferia e trabalhadores sem terra são executados.

Esse quadro de horror mostra a distância abissal que existe entre a teoria e a prática acerca do respeito aos direitos humanos.

No Brasil, a questão do orçamento é bastante elucidativa: embora a lei orçamentária contemple a área social com recursos consideráveis todos os anos, o contingenciamento de boa parte desses recursos também é regra, impedindo sua liberação e aplicação, sem falar nos desvios e ralos abertos pela corrupção.

Os fatos listados denunciam a necessidade de um maior engajamento de todos em defesa dos direitos humanos, sobretudo os econômicos, sociais e culturais, cotidianamente violados ou, na melhor das hipóteses, ameaçados.

Denunciam, ainda, a necessidade de romper o processo circular e vicioso sustentador de um Estado que se mostra autoritário e violento para com a grande maioria da população, enquanto se revela dócil e transigente aos interesses da elite.

Apesar do quadro desolador, o aumento do número de pessoas, entidades e governos sensíveis à causa dos direitos humanos leva-nos a crer que há muita esperança. O movimento em prol dos direitos humanos é o único a ter uma linguagem, uma abrangência, uma articulação, uma organização que supera as fronteiras das nações.

Além disso, verifica-se o contínuo fortalecimento da Declaração Universal protagonizado pelos instrumentos internacionais obrigatórios de proteção aos direitos humanos e pelas Conferências Mundiais da ONU.

Assim, possivelmente se vislumbra o começo de uma verdadeira cultura dos direitos humanos, uma cultura de paz.

Importa enfatizar que a Declaração Universal traz o alerta de que a violação de um direito coloca todos em perigo. Se nos omitimos diante de uma violação, permitindo que um direito seja desrespeitado, deixamos implícito nosso aval a todas as demais violações.

Daí por que não há espaço para meio comprometimento com a causa dos direitos humanos. A sociedade de inteiros por ela desenhada clama pela defesa integral de cada um de nós: indivíduos, sociedade e Estado somos todos solidariamente responsáveis por assegurar ao ser humano a condição de portador de direitos e por repelir a idéia de que haja uma casta de cidadãos com mais direitos do que os outros; uma casta que defina que direitos ignorar, de quem e quando.

Por isso, precisamos logo assumir a responsabilidade que nos cabe na construção de uma sociedade justa e democrática, que garanta efetivamente os direitos proclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Como fazer isso? Podemos - e devemos - estimular a reflexão e a formação do espírito crítico, para o aprimoramento ético de toda a sociedade. Podemos formar grupos a fim de debater e procurar as soluções mais justas para os problemas que nos afligem. Podemos buscar conhecer nossos direitos e nossos deveres, pesquisando e divulgando a legislação nacional, os documentos internacionais para levar adiante a tarefa de consolidação da democracia pelo efetivo respeito aos direitos humanos como direitos de todos.

Também podemos - e devemos - aplicar os postulados da Declaração em nosso cotidiano, respeitando o outro com todas as suas diferenças e reconhecendo nele o nosso irmão, o nosso igual.

Para isso, basta termos em mente que os direitos humanos são indivisíveis, indissociáveis e interdependentes e que podemos ser a próxima vítima da violação hoje aceita, porque cometida contra alguém “tão diferente” de nós.

Em suma, podemos - e devemos - participar do processo de educação para os direitos humanos, caminho necessário para a construção de uma cultura de paz. Assim, selaremos nosso compromisso com um mundo melhor para a humanidade, mostrando que a Declaração Universal dos Direitos Humanos é um texto vivo, escrito diariamente por todos e por cada um de nós.

Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente, na obrigação que eu tinha de abordar este assunto.

Muito obrigado.


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 13/12/2008 - Página 52201