Discurso durante a 126ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Reflexões sobre a crise enfrentada pela Universidade de São Paulo.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
EDUCAÇÃO.:
  • Reflexões sobre a crise enfrentada pela Universidade de São Paulo.
Publicação
Publicação no DSF de 29/08/2014 - Página 9
Assunto
Outros > EDUCAÇÃO.
Indexação
  • COMENTARIO, GRAVIDADE, CRISE, UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP), MOTIVO, FALTA, RECURSOS, CUSTEIO, DESPESA, UNIVERSIDADE, SUGESTÃO, BANCO NACIONAL DO DESENVOLVIMENTO ECONOMICO E SOCIAL (BNDES), CONCESSÃO, FINANCIAMENTO, OBJETIVO, COMBATE, SITUAÇÃO.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco Apoio Governo/PDT - DF. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srs. Senadores, Srªs Senadoras, o Brasil tem alguns patrimônios que nos orgulham. Sejam quais forem nossas dificuldades, nós temos algumas coisas que estão acima dos problemas.

            Nós temos, por exemplo, um sistema de telecomunicações que orgulha o Brasil, que pauta o mundo inteiro em diversas atividades de telecomunicações; nós temos um sistema hidrelétrico que é exemplo para o mundo, especialmente algumas das maiores represas de todo o Planeta, como Itaipu; nós temos o correio brasileiro, que é reputado como dos melhores do mundo; nós temos o sistema universitário brasileiro, que, hoje, já pode ser considerado um sistema universitário extremamente grande, embora não com a qualidade de que necessitamos. Nós temos 6,5 milhões de universitários. São poucos os países do mundo que têm um patrimônio desses.

            Não temos a educação de base como patrimônio. Não é. O Brasil não pode mostrar ao mundo e dizer: “Vejam, aqui, o nosso patrimônio, a escola onde estudam as nossas crianças”.

            Não dá para isso, mas dá para dizer ao mundo inteiro: “Olha aqui o nosso patrimônio, o sistema universitário”.

            Dentro desse sistema, nós temos um patrimônio - eu digo nós, o Brasil - especial, que é a Universidade de São Paulo. A USP é um imenso patrimônio da civilização brasileira.

            Iniciada em 1934, nesses 80 anos, a Universidade demonstrou ao Brasil e ao mundo a nossa competência para fazer o ensino superior. A USP é a única universidade da América Latina que está entre as melhores do mundo. É uma das únicas. São raríssimas as universidades.

            Entre as nossas, é claro que nós temos universidades como a de Campinas, a Universidade do Rio de Janeiro, a de Minas Gerais, a própria Universidade de Brasília, à qual eu pertenço, as PUCs, a Unesp. Temos muitas universidades, mas a USP é a nossa estrela maior. A USP é o melhor símbolo que nós temos do poder intelectual universitário brasileiro. E essa universidade, o patrimônio do Brasil, está em crise.

            São quase 100 mil alunos, dos quais 30 mil, quase, em pós-graduação. São 6 mil docentes, incluindo, provavelmente, o corpo inativo.

            De qualquer maneira, nós temos, na USP, um exemplo que o Brasil precisa não apenas manter, mas copiar nas suas qualidades. Uma delas, que deve ter 20, 25 anos, é a autonomia financeira que lhe foi dada pelo Governo do Estado de São Paulo, que é o seu patrocinador. A USP e as demais universidades paulistas recebem uma percentagem da receita do Estado e usam de acordo com a vontade definida por sua comunidade. O Governo Federal nunca fez isso com as outras universidades federais - nunca! Aliás, parte da comunidade universitária federal brasileira não quer ter essa responsabilidade e prefere, a cada ano, sair com o pires na mão, brigando, fazendo greve, em vez de receber um valor do Governo Federal, que diz: “Está aí. Vocês usem esse dinheiro como acharem melhor”. A USP recebeu isso, assim como a Unicamp e a Unesp. Essa situação de autonomia ajudou bastante para que a USP crescesse nas últimas décadas.

            Entretanto, o que estamos vendo no noticiário é que a USP, nossa estrela maior do sistema universitário, nosso orgulho, nosso patrimônio, está atravessando uma profunda crise, uma crise que, a meu ver, são duas, permita-me dizer, uma crise que tem dois lados: uma crise de identidade - a identidade para quê, como ser feita e para quem - e uma crise financeira, que faz com que, hoje, a folha de pagamento corresponda a 105% da receita, e, para sobreviver, a universidade tenha que sacrificar, primeiro, parte do seu patrimônio para poder financiar custeio, o que é um suicídio no longo prazo, e, segundo, interromper pesquisas por não haver recurso para o custeio, que viria da receita. Além disso, parar os investimentos, como temos visto repetidamente nos meios de comunicação, que a USP está sendo obrigada a fazer.

            Mas é preciso lembrar que, cada vez que uma instituição como a USP para o investimento, é o Brasil inteiro que perde. Quando uma pesquisa na USP é sacrificada, é o Brasil inteiro que perde. Não é a USP, não é o Estado de São Paulo apenas. É o País, é o nosso futuro.

            Por isso, nós temos uma responsabilidade, nós brasileiros, de participarmos da solução da crise que a USP atravessa. Temos obrigação. E, quando eu digo nós, eu digo o Brasil, e, quando eu digo o Brasil, eu digo o Governo Federal, obviamente, respeitando a vontade da USP, a vontade do Governo do Estado de São Paulo, se eles assim quiserem, mas torcendo, nós, para que eles queiram, para que nós possamos colaborar para que a nossa estrela maior do sistema universitário continue brilhando, como tem brilhado nesses 80 anos de sua história.

            Nós precisamos, a meu ver, é juntar estas duas crises, Senador Aníbal, a crise de identidade e a crise financeira, e tentarmos resolver as duas, como se uma despertasse para a outra. A crise de identidade, que é de todo o sistema universitário mundial, não é uma crise específica da USP, não é culpa da USP, é o fato de que o sistema universitário, como tudo o mais no mundo, está indo mais devagar do que os avanços técnicos. Aí, a gente fica para trás.

            Isso está acontecendo em todos os setores. Inclusive aqui, nós, o Congresso. Nós, hoje, Senador Fleury, temos uma prática superada quando a gente percebe os meios de comunicação novos que existem no mundo e que a gente ainda não conseguiu fazê-los penetrar no processo decisório. No mundo de hoje, a democracia sem consultas, on-line, como se diz, não é uma democracia plena. Tudo foi ficando para trás. A USP, o sistema universitário mundial, está ficando para trás, porque não está sabendo como ser universitário neste momento.

            Está na hora de que essa crise, que leva à financeira, e a financeira que leva a essa, de identidade, se unam, como se duas solidões se encontrassem, resolvendo as duas, Senador Fleury. Quando duas solidões se encontram, elas se anulam. Duas pessoas solitárias são solitárias sozinhas, cada uma. Quando elas se encontram, nenhuma mais é solitária. Isso acontece quando a gente sabe identificar os problemas. Dois problemas juntos, muitas vezes, são zero problema, eles se anulam.

            Está na hora de a gente trabalhar as duas crises. A crise que não é da USP apenas, que é a crise de identidade do sistema universitário, que é a crise de como produzir e como distribuir conhecimento de nível superior, duas coisas que nós, o sistema universitário - e eu sou universitário -, não sabemos como fazer direito no momento em que o conhecimento avança tão rápido que nós acordamos descobrindo que há coisas novas que a universidade não sabe. E o conhecimento é distribuído tão instantaneamente que não dá para um aluno esperar seus cinco anos de curso - ou quatro, ou três, ou dois, que sejam - para ser declarado um profissional. Até mesmo depois de dez anos, um ano depois ele já está superado, porque o conhecimento avançou.

            Nós temos que entender essa crise de como fazer a universidade. Nós temos que entender a crise de para que é a universidade. Para que é a universidade? Parte do propósito da universidade, hoje, pode ser realizado por outras entidades diferentes, e já está sendo. Estamos perdendo espaço porque outras entidades estão fazendo aquilo que nós fazíamos, sobretudo no que se refere à transmissão do conhecimento. O que, cada vez mais, nós vamos ter que enfrentar é a capacidade de a universidade gerar novo conhecimento, mais do que a capacidade de transmitir conhecimento. A universidade tem que ser uma entidade fundamental de pesquisas do novo, e não apenas de transmissão do conhecimento que está aí. É isso que vai trazer uma nova identidade, a universidade criadora de saber, a universidade vanguardista no saber que aí está.

            A terceira é: para quem? Para quem é a universidade? Nós estamos viciados na ideia de que a universidade é para os universitários, de que a universidade é para os professores, alunos, e também para os servidores. Não! A universidade é para o País e para a humanidade. Temos que entender isso. Alunos e professores, como eu, somos meios para que o mundo se deslumbre com o que produzimos, para que o mundo melhore com o que produzimos.

            Estes três pontos nós precisamos colocar no verdadeiro pacto do sistema universitário com o Brasil: o pacto de para que é a universidade, para quem é a universidade e como é ser universidade. Ao mesmo tempo, esse pacto que o Brasil deve fazer com a USP, com a Unicamp, com a UnB e com todas as universidades do Brasil tem que vir acompanhado de algumas medidas que permitam que isso seja cumprido, e não adianta dizer que tal universidade é do Estado e tal outra é da Federação. Todas são do Brasil. A USP é do Brasil, financiada pelo Governo de São Paulo.

            Em um momento de crise como este, nós temos a obrigação de colaborar para que a crise financeira - talvez aliada a um pacto da crise de identidade - seja enfrentada não apenas pela USP isoladamente. E eu vou mais longe: não só pelo Estado de São Paulo. Se houver qualquer resistência da parte da gestão do Estado de São Paulo, nós, o Brasil, temos - obviamente se a USP quiser - de nos aproximar para buscar formas de colaborar.

            Por exemplo, Senador Anibal, Senador Fleury, por que o BNDES, que financia grandes grupos mundiais, alguns até com as pernas muito cambaleantes, a taxas de juros subsidiadas não pode financiar a USP? Por que não? Por que não se pode criar uma linha de crédito dentro do BNDES para financiar a crise da USP?

            Eu não estou falando em doar dinheiro; falo em financiar para que a USP, superada esta crise, devolva esses recursos. Mas, sobretudo, mais importante do que os recursos financeiros, é que a USP continue produzindo o saber que o Brasil tem usado e no qual precisa avançar.

            Por que não um fundo de financiamento do BNDES para enfrentar essa crise circunstancial da USP, enquanto ela reorganiza as suas contas? Por que não? Um País que tem feito um sacrifício de R$250 bilhões, por ano, em desoneração fiscal para vender bens industriais, não pode pegar uma parte desses recursos e financiar o sistema universitário, especialmente, neste momento, a própria Universidade de São Paulo? Por que não podemos ir buscar fontes de financiamento na Nação brasileira para que a nossa estrela maior do sistema universitário continue brilhando, como tem brilhado nesses últimos 80 anos?

            Eu não tenho carta da USP para estar falando aqui e não consultei ninguém daquela universidade. Penso em ligar para o reitor e dizer-lhe que fiz este discurso sem o consultar e perguntar se ele quer que eu pare apenas no discurso ou se quer que eu tome alguma iniciativa ou até se quer que eu vá a São Paulo conversar com a comunidade, saber se eu, como Senador da República, não importando o Estado que represento, posso fazer alguma coisa pela estrela maior do sistema universitário brasileiro.

            Creio que há outras fontes de financiamento que nós estamos hoje desperdiçando e que poderiam servir para cobrir os gastos da USP e até mesmo de outros setores universitários que talvez enfrentem problemas.

            Por exemplo, além do BNDES, além do financiamento via desoneração tributária, por que não o Governo Federal ser garantidor, e mesmo intermediário, no financiamento privado para a USP? E de financiamento internacional para a USP, não a deixando sozinha, com um aval próprio seu, porque fica difícil, na medida em que 105% da receita vai para o salário. Mas a gente pode entrar nisso, pode criar uma linha, pode ser intermediário de outra linha, pode transferir recursos de tal maneira, repito - e acho que certamente repetições são boas -, que a estrela maior do nosso sistema universitário continue brilhando por mais 100 anos pelo menos, além dos 80 que nós já temos.

            Eu digo, Senador Fleury, pelo menos 100 porque é impossível saber se daqui a 100 anos a gente ainda vai ter universidade; é impossível. O sistema universitário pode ser substituído por outra coisa decorrente do avanço tecnológico na produção e na transmissão do saber, mas, por muitos anos ainda, a gente vai precisar.

            Para fazer esse pacto, a gente pode ver outros países. Existem experiências de universidades que recebem recursos de financiamento para as suas atividades. Eu não falo só do financiamento da pesquisa, porque aí não é financiamento, é contratação para prestar um serviço. Eu falo financiamento, e o dinheiro vai para cobrir as dificuldades financeiras que a entidade atravessa naquele momento; isso é possível. E, se a gente fizer isso, pode ajudar a USP a pensar em como se situar nos novos tempos e, a partir dela, que é a estrela maior do nosso sistema, servir de base para outras universidades.

            Como fazer para que haja um aumento efetivo na produtividade da nossa economia graças à universidade? Como? Nossas universidades, Senador Fleury, Senador Anibal, apesar de serem patrimônio da sociedade brasileira, elas contribuem pouquíssimo, por exemplo, em patentes, diferentemente das grandes universidades do mundo. Nossas universidades raramente têm uma patente. É tão raro, que, quando têm, aparece no Jornal Nacional e nos demais jornais da televisão que aquela universidade inventou um produto tal. Se fosse uma coisa comum, não aparecia no jornal. Aparece, porque é raro ter patente.

            Ainda há resistência das universidades em uma convivência do setor de geração de pensamento na universidade com o setor de geração do produto na economia. Aí também é uma resistência dos empresários. Como é possível que a USP enfrente uma crise e a Fiesp não se envolva? Como é possível que não se envolva para manter a sobrevivência, o avanço e até a superação num estágio melhor da universidade, depois dessa crise? Até porque toda crise gera um aprendizado, vamos reconhecer. A própria comunidade universitária reconhece: houve erros nas gestões anteriores. Aprende-se fazendo isso.

            Outro ponto: melhoria da competitividade da economia brasileira. É claro que isso está relacionado com o aumento da produtividade, mas não é o mesmo. Quando se fala em aumento da produtividade, entende-se produzir o mesmo a custo mais baixo; mas, quando se fala em competitividade no mundo de hoje, significa produzir outras coisas, e não produzir o mesmo a baixo custo. Nossas universidades não são inventoras de produtos novos.

(Soa a campainha.)

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco Apoio Governo/PDT - DF) - E aí a nossa economia não é inventora de produto. Nossa economia é fazedora, fica escrito ali “Feito no Brasil”, ninguém escreve “Criado no Brasil”, porque não foi criado no Brasil nenhum dos produtos que compramos. Os automóveis que compramos, os computadores que compramos, tudo é criado fora. Nós aqui fazemos, montamos, copiamos, mas não inventamos. Então, o produto novo, a última geração não sai primeiro aqui. E a universidade poderia gerar isso.

            O posicionamento estratégico do Brasil nas grandes discussões internacionais. A USP, dando exemplo ao resto do Brasil, poderia colocar a nossa universidade como centro das discussões dos grandes problemas mundiais. Não sei a Presidente Dilma está consultando a USP em relação ao Banco dos BRICS, que é algo importante que está sendo feito no cenário internacional a partir do Brasil. Não sei se estamos prontos para enfrentar outros problemas da saúde que estão vindo aí, como o Ebola, por exemplo. Aqui, quando há problema de saúde, olhamos para a Fiocruz, raramente olhamos para a universidade.

            O retorno do olhar da universidade para a educação de base. Essa é uma contribuição que a gente precisa que as universidades do Brasil entendam que é necessária. A USP poderia, a partir dessa crise, aceita pelo Brasil como problema do País, aportando recursos, dizer: “muito bem, mas a gente quer que vocês se envolvam o máximo na melhoria da educação de base neste País, através da formação melhor de professor, da formação de um número maior de professor, das pesquisas sobre as novas metodologias de ensino, sobre como será a sala de aula daqui a 20 anos”.

(Soa a campainha.)

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco Apoio Governo/PDT - DF) -Finalmente - o meu tempo está se esgotando, embora ache que este assunto mereça voltar aqui -, é preciso dizer que também a USP poderia nos ajudar em novas políticas sociais.

            Eu quero aqui lembrar, Senador Anibal, que a Bolsa Escola nasceu em uma universidade brasileira. A Bolsa Escola nasceu na Universidade de Brasília, no Núcleo de Estudos do Brasil Contemporâneo - eu era Reitor e coordenava depois de ter criado.

            Foi ali, Senador, que surgiu essa ideia considerada maluca de pagar às famílias das crianças para que elas estudassem. Eu lembro, quando essa ideia foi dada, a reação de todos. E eu lembro que eu disse: “Mas aqui a gente dá bolsa para alguém que já se formou em engenharia ir fazer doutorado na França, como eu fui. Por que não dar para um menino que está saindo da escola, na quinta séria, porque o pai não tem dinheiro para mantê-lo na escola e vai ter que mandá-lo engraxar sapato?” Nasceu numa universidade.

            As universidades precisam se voltar para novas propostas de políticas sociais que enfrentem o problema da pobreza.

            Está aí, Senadores - eu concluo em respeito à sua viagem, Senador -: nós precisamos, resumindo, entender que a crise da USP tem que ser uma crise olhada, sofrida e com soluções ou, pelo menos, com apoio do Brasil inteiro. E há formas de fazer isso.

            A USP deve entender que a crise tem uma lógica, a lógica da má-gestão durante algum tempo, mas também a lógica da crise de identidade do sistema universitário no mundo inteiro. A universidade está numa encruzilhada: ou ela fica nesta crise terrível ou ela se reorienta.

            Está na hora de a reorientação ser feita com o apoio do Brasil, porque o Brasil precisa desesperadamente da USP, por isso não pode fechar os olhos aos problemas que a USP enfrenta.

            É isso, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 29/08/2014 - Página 9