Discurso no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DO DIA INTERNACIONAL DE COMBATE A DISCRIMINAÇÃO RACIAL.

Autor
Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • COMEMORAÇÃO DO DIA INTERNACIONAL DE COMBATE A DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Aparteantes
Benedita da Silva, Eduardo Suplicy, Ney Suassuna.
Publicação
Publicação no DSF de 22/03/1996 - Página 4679
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA INTERNACIONAL, COMBATE, ELIMINAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, INDIO, NECESSIDADE, PRESERVAÇÃO, DEMARCAÇÃO, TERRAS INDIGENAS, CULTURA, GRUPO INDIGENA.

A SRª. MARINA SILVA (PT-AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, como já falei em aparte ao brilhante pronunciamento da nobre Senadora Benedita da Silva, vou tratar de um tema que está associado à questão da discriminação racial e, realmente, esta data está referenciada num episódio triste e doloroso que foi o assassinato de 69 pessoas no ano de 1960, pela polícia da África do Sul.

Os aspectos mais gerais da discriminação racial, envolvendo as suas múltiplas formas de manifestação nos mais diferentes povos e nas mais diferentes condições sociais de cultura e de raça, com certeza já foram abordados pela nobre Senadora Benedita da Silva. E peço licença à Srª Senadora para fazer minhas as suas palavras, no que se refere aos aspectos gerais da discriminação racial.

Vou me ater à questão das populações indígenas pois, para mim, este é um ano crucial, em que tivemos a revisão do Decreto nº 22, instituindo o "Princípio do Contraditório", prejudicando duramente as populações indígenas em suas conquistas, conquistas históricas que já haviam se constituído em verdadeiro benefício no processo de demarcação de suas terras e no processo de justiça com aqueles que, agora, são obrigados a ficar confinados em pequenas áreas de terra, enquanto que, antes do dito descobrimento do Brasil, tinham todo esse vasto território.

É por isso que vou me ater a essa raça, ou melhor, raças, porque os índios, chamados assim genericamente por nós, são uma multiplicidade de raças, culturas e formas de pensar e se relacionar com o mundo, têm línguas e costumes diferentes e formas de abordagens diferentes da sua religiosidade. Portanto, são chamados genericamente de índios até por um ato de desrespeito daqueles que, na sua arrogância, se auto-intitulam civilizados.

Gostaria ainda de fazer uma pequena referência ao que aconteceu no País quando foi "descoberto". Os portugueses, ao avistarem os índios, receberam presentes, acenos e a indicação de onde havia os melhores tesouros. Os portugueses passavam a mão no pescoço mostrando suas jóias e perguntavam, através de acenos - porque não entendiam a língua dos índios -, onde havia ouro. E os índios, muito animadamente, faziam sinal de que realmente havia essa riqueza. E os portugueses ficaram muito felizes. Mas os índios indicavam que também havia outras riquezas que, para eles, eram muito importantes, mais importantes do que o ouro, porque eles enfeitavam seus pescoços com penas de pássaro ou até mesmo com couro de animal.

Foram recebidos com festas. E qual a surpresa para aqueles que receberam com festa o visitante perceber que começam a ser massacrados, tanto pela voracidade do desejo de conquista da terra e de tesouros como pela malvadeza de contaminá-los com doenças letais para eles, como, por exemplo, a gripe. Inúmeras tribos indígenas foram dizimadas, contaminadas pela gripe, pelo sarampo, porque as pessoas deixavam as roupas perto das aldeias para que os índios as usassem e morressem. Assim não precisariam sequer guerrear com eles, porque, mesmo não dispondo de recursos técnicos como armamento de fogo, como eles chamavam, eles enfrentavam heroicamente com suas flechas e com o conhecimento profundo que tinham da floresta, conseguindo até alguma vitória, já que era uma guerra desigual.

Foi assim o início da exploração dos nossos índios pelos ditos brancos cujo resultado todos sabemos: uma perda incrível, não só para o Brasil, mas todo o continente. Não me canso de dizer o quão a humanidade perdeu ao suprimir os incas, os maias e os astecas, culturas belíssimas e riquíssimas que, hoje, com certeza, nos fariam bem mais humanos do que somos.

Quero também me referir à Amazônia, de um modo geral. O Senador Jefferson Péres, como professor de universidade, deve conhecer essas histórias. Na Amazônia, temos o fenômeno das correrias. Os nordestinos quando ocuparam os Estados da Amazônia, no caso, o Estado do Acre, cuja história conheço bem - inclusive já fiz um trabalho de pesquisa com relação a isso -, fizeram as famosas correrias. O que eram as correrias? Eram grupos de nordestinos seringueiros, incentivados e comandados por seus patrões, que perseguiam os índios em suas aldeias, em seus cupixauas. De que forma? Eles adentravam a floresta, esperavam que os índios dormissem em seus cupixauas e, depois, altas horas da noite, ateavam fogo em suas choupanas, em suas choças. Ficavam esperando que os índios saíssem de dentro do fogo; quando saíam, eram atingidos e mortos covardemente.

Esse era o fenômeno das correrias. Foi assim que os índios na Amazônia, alguns deles, foram domesticados, domados, pois eles os chamavam de brabos. Alguns até hoje ainda são arredios.

Tenho uma referência dos campas do Alto Juruá. Trata-se de um povo belíssimo, um povo fantástico. Os campas sentem orgulho de serem índios, de falarem a sua língua, de usar suas vestimentas. Ao se relacionarem com as pessoas, fazem questão de se colocar como um cidadão campa; por isso, admiro-os muito pela sua cultura, por serem índios e manterem sua cabeça erguida.

Nesse fenômeno das correrias, mesmo com toda discriminação de considerá-los bravos, lembro-me de histórias que me contaram quando ainda criança. Eles diziam que índio não tinha alma e que caboclo não era gente. Era assim que se passava o preconceito quanto aos índios, numa demonstração concreta de tudo que acontece com relação aos aspectos mais gerais da discriminação racial. Isso acontece com os índios, e quero homenageá-los por ser de uma região onde há a maior população indígena do Brasil.

Toda essa discriminação, esse preconceito não foi suficiente para afastá-los da cultura branca; não os impediu de uma interação, tampouco, dar grande contribuição cultural.

Todos nós, nordestinos, que vivemos no Estado do Acre, do Amazonas, do Pará, enfim, de vários Estados da Amazônia, herdamos muito da cultura indígena: os seus costumes, as suas práticas religiosas, em alguns casos e, até mesmo, no processo de cura de moléstias. Foi com os índios que aprendemos inúmeros remédios da Floresta Amazônica.

Eu, por exemplo, sempre soube, desde pequena, que o óleo da copaíba é um excelente antibiótico; aprendemos, também, com os índios que o coentro brabo é um excelente anticoagulante; aprendemos, também, com os índios que a batata da surucucuína pode servir como um antídoto contra os venenos. São inúmeras as contribuições que eles nos deram, apesar de toda perversidade com que foram tratados por aqueles que ocuparam os seus territórios.

Faço questão de registrar esse conhecimento, porque acabamos de aprovar, neste Congresso, uma Lei de Patentes. Nela, eu fiz o possível para inscrever o direito ao conhecimento das populações tradicionais, envolvendo seringueiros, índios e curandeiros.

Considero um ato de violência, de expropriação no seu maior limite. Eles desapropriaram as terras, portanto, a sua possibilidade de sobrevivência, e chegam a expropriar até o próprio conhecimento.

Por essa razão, quis fazer justiça ao conhecimento indígena. O pesquisador vai para uma comunidade indígena, e o pajé, de forma bondosa, - não vou dizer ingênua, porque não se trata de ingenuidade; para eles, aquilo é um conhecimento que deve ser dito, deve ser repassado - repassa aquele conhecimento, cultura após cultura, fazendo as indicações de quais são as plantas medicinais que eles utilizam nas suas curas.

O levantamento que temos é que, de cada mil indicações feitas por um pajé ou por um curandeiro, é líquido e certo que uma tem viabilidade econômica - e, aí, o laboratório se apropria dela, começa a ganhar dinheiro; cobra, inclusive, royalties, e os índios cada vez mais pobres.

A Srª Benedita da Silva - Permite-me V. Exª um aparte?

A SRª MARINA SILVA - Ouço V. Exª com prazer.

A Srª Benedita da Silva - Senadora Marina Silva, quero parabenizar V. Exª. Pouco me importa que pareça, realmente, um bate pronto entre as duas Senadoras pertencentes ao Partido dos Trabalhadores. O conhecimento de V. Exª não é restrito ao que leu nos livros mas também a convivência maravilhosa com o povo indígena. Daí por que eu gostaria de resgatar que os negros africanos, trazidos para cá, aprenderam também com os índios. Não sabiam e nem conheciam as terras como os índios; por isso, foram importantes nas construções dos quilombos. Também nessa famosa área medicinal, de certa forma, o convívio das mulheres negras com as mulheres indígenas criou no país muitas parteiras. Lembro-me, também, Senadora Marina Silva, que aprendi com minhas avós a curar, praticamente, quase todas essas doenças que hoje combatemos e não conseguimos superá-las. Até mesmo o serviço de ortopedia funcionava, naquela época, com os ungüentos colocados pelas suas inteligências. V. Exª bem resgatou o saber, a medicina popular. Não apenas com relação à Lei de Patentes, precisamos introduzir direitos e garantias para que não se percam, evidentemente, não só essa cultura mas também esse conhecimento. Em que pesem as dificuldades colocadas, ele tem sido usado por várias comunidades, principalmente pela comunidade negra pobre que dele faz uso cotidiano. São conhecimentos medicinais usados pelos indígenas. Nesse Dia Internacional contra a Discriminação Racial, V. Exª nessa tribuna, tratando a referida questão com propriedade, só tenho que apoiá-la, colocando-me ao seu lado para, juntas, desenvolvermos, nesta Casa, ainda que tarde, instrumentos que possam dar continuidade ao processo de liberdade e independência da comunidade indígena. Agradeço a V. Exª.

A SRª MARINA SILVA - Agradeço o aparte de V. Exª e o incorporo ao meu pronunciamento. V. Exª faz a junção desses dois segmentos sociais da nossa cultura, massacrados e marginalizados, que na dor se encontraram, para diminuí-la, com certeza, num gesto de solidariedade.

Os negros não conseguiam fugir, porque não conheciam as matas. Aprenderam isso com os índios e foi a partir daí que eles começaram a estruturar os seus quilombos. Portanto, na dor, conseguiram criar um gesto de solidariedade que, até hoje, é reverenciado por todos nós.

O Sr. Ney Suassuna - Permite-me V. Exª um aparte?

A SRª. MARINA SILVA - Ouço V. Exª com muito prazer.

O Sr. Ney Suassuna - Senadora Marina Silva, V. Exª falava do conhecimento das ervas medicinais dos curandeiros e dos pajés, dizendo que a proporção de acerto, em cada mil, era de um. Quando pesquisados sem essas informações, em dez mil se consegue um. Portanto, esse conhecimento tem um valor econômico. Ele diminui em nove mil pesquisas cada acerto. Tive a honra de, como Relator de Plenário, dar o parecer favorável a essa colocação de V. Exª. Lamento muitíssimo que, dentro dessa espoliação geral, também essa espoliação cultural aconteça e que a experiência de gerações não valha absolutamente nada do ponto de vista comercial, porque não conseguimos aprová-lo. Por isso me solidarizo com V. Exª nessa sua colocação, lamentando que não tenhamos valorizado a prata da casa e o conhecimento de milhares de anos de nossa população indígena.

A SRª MARINA SILVA - Agradeço a V. Exª pelo aparte que complementou meu raciocínio, meu pronunciamento. Como V. Exª bem frisou, se um estudioso sair na floresta pesquisando alhures, de cada 10 mil plantas pesquisadas, não só catalogadas, mas também dissecadas em laboratório, conseguirá uma. Por proporcionar anos de economia em pesquisas, é fantástica a importância do conhecimento dessas populações; poderia não haver a descoberta da importância de determinada planta, se não fosse a indicação de um pajé, de um curandeiro ou de um seringueiro.

Há um problema também com relação à discriminação: ela se dá em todos os aspectos. Nosso conhecimento é tido como saber científico; é o saber sistematizado acima de tudo e de todos, é a ciência que está falando. O conhecimento indígena ou o conhecimento das populações tradicionais é tido como senso comum, é saber de segunda categoria e, por ser assim, não merece qualquer crédito. Discuto essa tese porque é preconceituosa. Milênios de experiência, anos e anos de convivência com a natureza, com os meios e recursos de que dispõem para muitas vezes melhorar sua dor fazem com que essas populações sejam detentoras de um conhecimento tão fantástico que pode ser encontrado, apropriado, pesquisado, colocado em laboratório e, depois, vendido pelas multinacionais ao Brasil. Esse resgate às origens é importante, porque está cheio de discriminação.

A troca estabelecida entre índios e brancos na Amazônia não é só no campo da culinária, da medicina popular, do etnoconhecimento, da etnomedicina, é também do ponto de vista das leis. Resgato também o mítico. As leis míticas na Amazônia, durante muito tempo, foram eficientes. Quem é da região sabe que, com todo o arcabouço que temos, proveniente do IBAMA, do Ministério do Meio Ambiente, de policiamento para cuidar de nossas florestas, nenhuma lei foi tão eficiente como eram as antigas leis míticas professadas pelos índios, com as quais os seringueiros aprenderam a cuidar de suas matas. É dos índios a idéia de que, se se pescar mais que o necessário à sua sobrevivência, a Mãe d'Água afundará seu barco. Só que, para um barco de pesca industrial, essa lei nada vale. É preciso que o IBAMA atue, ou teremos o processo de depredação da natureza, principalmente quando ocorre o fenômeno da piracema. É também dos índios a lei mítica segundo a qual se uma pessoa mata uma caça que esteja prenhe, pode ter má sorte ou até mesmo apanhar de um caboclinho do mato. Essa lei era poderosa e muito mais eficaz do que as que proíbem a pesca e a caça comerciais. Nenhum seringueiro, nenhum caboclo ousava desafiar as leis míticas da floresta. Assim, do ponto de vista da preservação ambiental, também os índios, no sentido de protegerem a floresta, criaram um código mítico de acesso a ela, ou seja, aquele que violasse esse código seria duramente castigado.

Talvez por não entenderem esses fenômenos, não entenderem a forma como essas populações se relacionam com o universo e com o divino, as pessoas tenham dificuldade de compreender isso. Por exemplo, um seringueiro jamais mata mais de uma caça no mesmo dia, porque ele sabe que isso pode trazer conseqüências; estas, é claro, são mitológicas, mas funcionam muito bem em nossa cultura, na Amazônia.

O Sr. Eduardo Suplicy - Permite-me V. Exª um aparte?

A SRª MARINA SILVA - Concedo o aparte a V. Exª.

O Sr. Eduardo Suplicy  - Quero solidarizar-me com V. Exª pelo seu pronunciamento e também com a Senadora Benedita da Silva, neste Dia Internacional do Combate à Discriminação Racial. V. Exª lembrou muito bem e demonstrou como a solidariedade, inclusive entre índios e negros, tem historicamente uma base que deveria ser exemplo para todos nós, brasileiros, de qualquer origem, raça, cor, credo religioso ou o que seja. Gostaria, Senadora Marina Silva, exatamente neste dia, de manifestar meu protesto com respeito a ato impensado que o jornalista Salomão Schwarstzman realizou, ontem à noite, inicialmente, ao dar uma informação incorreta. A Deputada Marta Suplicy ouviu e me relatou, surpresa com essa atitude do jornalista, que mencionou que a Senadora Benedita da Silva, do PT, iria promover uma CPI contra os brancos, o que não é verdade. Em seguida, fez o comentário: "Cada macaco no seu galho", palavras altamente ofensivas, discriminatórias. Entendo, Senadora, que precisamos fazer com que no Brasil não tenhamos esse tipo de procedimento e evitemos qualquer palavra que venha a estimular formas as mais diversas de discriminação racial. Por essa razão me permito fazer esse registro, ao mesmo tempo em que me solidarizo com todos aqueles que, no País, sofrem as conseqüências da discriminação racial.

A SRª MARINA SILVA - Agradeço o aparte de V. Exª, nobre Senador.

Concluindo, Sr. Presidente, quero dizer que também me solidarizo com a Senadora Benedita da Silva e entendo ser um ato de violência e de preconceito tentar envolver as pessoas que têm a função de combater a discriminação racial em episódios dessa natureza, até com o desejo de, quem sabe, desqualificá-las.

Como estava dizendo, propositalmente, quis falar sobre a questão indígena - uma das inúmeras raças discriminadas - porque considero este um ano crucial. O Brasil tem enorme quantidade de terras, e se reclama que 11% dessas terras estariam destinadas aos índios, uma população que representa cerca de 0,2% da brasileira. Acham que é muita terra para poucos. Sempre tenho dito aqui em meus pronunciamentos que, no meu Estado, temos 6 mil índios, que têm cerca de 1,8 milhões de hectares de terras; mas há um único proprietário que conseguiu grilar, no Acre, 2 milhões de hectares de terra. Contra este ninguém se levanta para dizer que é muito, mas diz-se que para 6 mil índios pouco mais de 1 milhão de hectares de terra é muito. Digo que este é um ano crucial, Sr. Presidente, porque o Decreto nº 22, que instituiu o princípio do contraditório, já deu margem para que se entre com pedido de revisão para 27 áreas indígenas, o que trará grande prejuízo para essas comunidades e para essa população.

Assim, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, neste dia, concluo dizendo que a raça humana deve estar completa no dia em que não tivermos mais qualquer forma de preconceito. Penso que, enquanto houver um preconceito a obra de Deus, o homem, seu trabalho de um dia, ainda estará por se realizar; ela só acontecerá quando não mais tivermos qualquer tipo de preconceito contra branco, índio e amarelo ou quem quer que seja neste Planeta. Portanto, esse trabalho de Deus ainda não terminou. Nós temos a obrigação de continuá-lo, e uma das melhores formas é eliminando os preconceitos.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 22/03/1996 - Página 4679