Pronunciamento de Amir Lando em 04/09/2001
Discurso durante a 107ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal
Considerações sobre o aumento da violência urbana.
- Autor
- Amir Lando (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RO)
- Nome completo: Amir Francisco Lando
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
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SEGURANÇA PUBLICA.:
- Considerações sobre o aumento da violência urbana.
- Publicação
- Publicação no DSF de 05/09/2001 - Página 20851
- Assunto
- Outros > SEGURANÇA PUBLICA.
- Indexação
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- ANALISE, AUMENTO, VIOLENCIA, ZONA URBANA, COMENTARIO, OCORRENCIA, DIVULGAÇÃO, IMPRENSA, TELEJORNAL, SEMELHANÇA, GUERRA CIVIL.
- GRAVIDADE, INJUSTIÇA, DISTRIBUIÇÃO DE RENDA, BRASIL, CONCENTRAÇÃO, TERRAS, EXODO RURAL, AUSENCIA, POLITICA DE EMPREGO, PROVOCAÇÃO, VIOLENCIA.
SENADO FEDERAL SF -
SECRETARIA-GERAL DA MESA SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA |
O SR. AMIR LANDO (PMDB - RO) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, na favela Naval, em Diadema, o soldado Rambo matou, pelas costas, Josino, operário negro e pobre. Mas, a televisão cuidou de mostrar que, na verdade, ele mirou em cada um de nós, de frente.
Naquele ônibus da linha 174, a bala do soldado, que era destinada ao bandido, estrangulado depois pela polícia, atingiu Geysa, a refém. O noticiário deixou evidente que aquela professora de artes para meninos pobres da favela poderia ser qualquer um de nós, passageiros na vida.
A ilusão das moças sonhadoras virou pesadelo. E a mídia colocou em cada sala, e em todas as mentes, uma possível versão local, e muito próxima, do motoboy Francisco, o maníaco do parque.
Pareciam apenas soluços. O Rambo, o Josino, a Geysa, o soldado anônimo que a atingiu, o Francisco, e tantos outros, que passaram ou não pela nossa íris, eram, até então, pobres desconhecidos, vítimas do destino, mal nascidos, periféricos, cidadãos sem rosto.
De repente, tomou-se consciência de que a tal íris poderia ser um nome próprio, de mulher com sobrenome de empresário, cidadão com rosto e senhor da própria mídia. E que de nada adiantaram os fios de alta voltagem que o circundavam, nem os coldres que o protegiam. O menino dos cultos domingueiros roubou a cena e explodiu a audiência.
A violência deixou de ser virtual, como cena de novela ou de noticiário. Não há mais que se acionar o controle-remoto para se ouvir gritos ou estampidos. Pode ser uma cena ao vivo e protagonizada por qualquer um de nós.
O Brasil assiste, ao vivo e em cores, a uma guerra civil não declarada. Morre-se de emboscada antes ou depois dos vinte, numa versão modificada do clássico de João Cabral de Melo Neto. E um dos motivos desse mesmo conflito está nos mesmos versos, agora sem alterações: é que nunca se morreu tanto “de velhice, antes dos trinta e de fome, um pouco por dia”. Não se quer dizer com isso que a pobreza é irmã gêmea da violência. Mas, não há, também, como negar que ela é, no mínimo, prima de primeiro grau do desespero e, este, parente próximo do delito.
Se não declarada, essa guerra de balas perdidas ou direcionadas era previsível e evitável. Mas, o desdém, o descaso e falta de vontade política construíram, ao longo dos anos, um verdadeiro apartheid social no País. De um lado, os 10% mais ricos, com a metade da renda; de outro, os 20% mais pobres, com apenas 2%. Esses mesmos 10% mais abastados recebem dez vezes mais que a soma dos rendimentos de todos os mais de 50 milhões de brasileiros que sobrevivem sob o teto da linha de pobreza absoluta.
O grande erro foi imaginar que seria possível construir um país onde o mercado se encarregaria de sua porção mais rica e o Estado da mais miserável. E que o cachimbo da paz seria recheado por políticas compensatórias, verdadeiros adoçantes artificiais, na dosagem certa para manter a docilidade nas favelas, morros, pontes e viadutos.
Para o mercado, 35 milhões de consumidores contumazes e vorazes, algo assim como uma Argentina. Para o Estado, mais de 50 milhões de indigentes, pobres e famintos, ou quatro Angolas, mais de cinco Zâmbias, ou dez Serras Leoas, a porção mais pobre do planeta. Dois países em um mesmo território. Uma nação dividida e uma situação de beligerância latente. O primeiro Brasil imaginava-se protegido por suas pontes elevadiças; o segundo, encurralado em guetos. O que esse sistema não imaginava é que, tão cedo, os guetos ultrapassariam as pontes, antes que elas se elevassem. Os fios de alta voltagem, as sirenes, as câmeras e os calibres privados não foram suficientes para suprir a artificialidade dos adoçantes estatais.
Não haveria tamanha beligerância se implementada a reforma agrária de quatro décadas passadas. O Brasil é o segundo país do mundo em termos de concentração fundiária. Aqui, 1% dos proprietários são donos de quase a metade de todas as terras. Dos remanescentes pequenos, mais de dois terços encontram-se abaixo da linha de pobreza. Não é à toa que, em um país com tamanho território, com as melhores condições edafo-climáticas do mundo, a população rural não atinja mais um quinto do total. Quatro em cada cinco brasileiros já moram nas cidades. Inchaço urbano, edema social. As cidades não foram preparadas o suficiente para receber tamanhos contingentes.
As populações que saíram do campo são exatamente aquelas com maior capacidade produtiva. Só que esse potencial é inútil nas cidades, porque lá se requer outras habilidades. Daí, perdas duplicadas. As que ficaram, são as que mais necessitam da proteção do Estado, normalmente os mais idosos e as crianças. Desempregado e sem vislumbrar possibilidade de retorno, o migrante se integra em um mundo já em processo de decomposição social. Daí, o desespero e o “chamamento” da marginalidade.
Também não haveria tamanha violência se fossem redefinidas as prioridades nacionais. Não há uma política efetiva de geração de empregos e de distribuição de renda. O desemprego, apesar de atingir níveis inéditos na história do País, nunca foi considerado como “risco sistêmico”. Assim, não se procurou conceber políticas agrícola e industrial geradoras de ocupações produtivas adequadas às habilidades dos trabalhadores brasileiros ou à sua capacidade de aprendizagem. Ao contrário, o Estado promoveu políticas de incentivo a atividades intensivas de capital e expulsoras de mão-de-obra, numa verdadeira inversão de prioridades. Em nome da inevitabilidade da globalização, abriu-se excessivamente o mercado nacional à importação de bens e serviços com grande potencial de produção local.
Como herança de todos esses desacertos, uma sociedade fraturada. A violência gerou uma paranóia coletiva e deu asas à discriminação. O apartheid social agora penetrou nas consciências e alterou o conceito de relações sociais. Os que nos rodeiam, não são mais os nossos “próximos”, e se transformaram em marginais em potencial, principalmente se mal vestidos, pobres, negros ou fora dos padrões estilizados de beleza. Até que provem o contrário, são todos “suspeitos”.
O medo gerou, também, uma sociedade encarcerada, intramuros. A inserção no mundo se dá, cada vez mais, através da televisão. Mas, essa mesma televisão, na luta pelos índices de audiência, repercute para os telespectadores exatamente os assuntos que mais os preocupam, entre eles a violência. Invasão de morros, balas perdidas, violência policial, seqüestros, mortes, estupros, acidentes de trânsito. Isso, não apenas no noticiário, mas também no enredo da novela, no tema dos filmes e no mais popular dos programas de auditório. A chamada “telinha” se confunde com a câmera do hall principal de cada edifício, ou de cada residência, num processo realimentador de ameaça e de pavor.
Tudo indica que o País está vivendo o seu pior momento de crise. A sua economia está sendo entregue, totalmente, à sanha do lucro para o qual é inocente qualquer esperança de pudor. O Estado, desmontado para que isso se viabilizasse, não dá conta de acompanhar as necessidades mais vitais da população, como saúde, educação, saneamento básico, segurança pública. Indefesa, a população, até como instinto de sobrevivência, constrói o seu próprio Estado, coletivo ou individual. Pode ser o narcotráfico, que supre as necessidades das populações dos morros e favelas, o aparato paramilitar que substitui a segurança pública, os enclaves dos condomínios de luxo, entre outros exemplos. Ela o faz porque não tem mais a quem recorrer. Ela assiste, reiteradas vezes, ao policial atirar, pelas costas, no tenista rendido, de costas e com as mãos na cabeça. Ela pode estar, a qualquer momento, no centro de uma saraivada de balas disparadas por quadrilhas rivais. E, agora, ela percebe que uma mesma família, cercada pelos mais modernos aparatos de segurança, é seqüestrada duas vezes, em um curto período de dez dias, mesmo que, no final do primeiro evento, a vítima tenha recorrido dezenas de vezes ao próprio Deus.
É preciso, portanto, um novo projeto de país. Há que se resgatar a confiança da sociedade em suas instituições, para que ela readquira, também, a autoconfiança. O Estado tem que ser remontado a partir de um amplo debate com a sociedade, onde se definam as suas reais prioridades. Não há como conviver com 50 milhões de indigentes, em um país que já se colocou, potencialmente, como o “celeiro do mundo”. Enfim, é preciso “reinventar” o país, para todos os brasileiros, sem apartheid social. A história tem tristes exemplos de sociedades dilaceradas. Ela sempre mostra que as rupturas sociais se iniciam com a perda dos sentimentos de solidariedade, de fraternidade, de cidadania e de soberania. É bem verdade que, felizmente, ainda não atingimos esse estágio. Mas, não há, também, como negar que, pelo menos a nossa sensação, é a de que caminhamos naquela direção. Segundo as leis divinas, o próximo foi criado para ser amado, como a nós mesmos, e não para ser temido e, muito menos, odiado. Mas, a história também mostra que o maior de todos os pregadores das leis divinas foi, um dia, preterido pelo povo, que preferiu Barrabás. De nada adiantará, portanto, se o povo, de novo, não fizer melhor escolha.
Era o que eu tinha a dizer,
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