Discurso durante a 27ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Comentários sobre a necessidade de reformas de base no País e defesa de projetos de autoria do ex-Presidente João Goulart.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM, PRESIDENTE DA REPUBLICA.:
  • Comentários sobre a necessidade de reformas de base no País e defesa de projetos de autoria do ex-Presidente João Goulart.
Publicação
Publicação no DSF de 14/03/2014 - Página 319
Assunto
Outros > HOMENAGEM, PRESIDENTE DA REPUBLICA.
Indexação
  • HOMENAGEM, CINQUENTENARIO, COMICIO, JOÃO GOULART, EX PRESIDENTE DA REPUBLICA, CRITICA, AUMENTO, VIOLENCIA, ZONA URBANA, MOTIVO, EXODO RURAL, DEFESA, REFORMA AGRARIA, TRANSFORMAÇÃO, EDUCAÇÃO, PROGRAMA, ERRADICAÇÃO, ANALFABETISMO, REFORMA BANCARIA, PROPOSTA, INTERRUPÇÃO, GOLPE DE ESTADO, REGIME MILITAR, RETOMADA, DEBATE, PROPOSIÇÃO, ENFASE, NECESSIDADE, FEDERALIZAÇÃO, EDUCAÇÃO BASICA.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco Apoio Governo/PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srs. Senadores, Srªs Senadoras, eu, lamentavelmente por outras atividades, não pude estar aqui na hora de dar um aparte, tanto ao Senador Requião, pelo brilhante discurso que ouvi pela Rádio, como também ao Senador Pedro Simon. Esse discurso, que eu não diria comemorando, mas lembrando um fato histórico da História do Brasil que aconteceu há exatamente 50 anos, quase que exatamente nesta hora, um pouco mais tarde do que isso, em que o Presidente João Goulart, Presidente constitucional do Brasil, reunido com seus Ministros, com autoridades em geral, com líderes sindicais, diante de uma massa imensa de povo, talvez uma das maiores, senão a maior manifestação política no Brasil, fez um discurso defendendo as reformas de base de que o País precisava.

            O País era outro. E, de fato, aquelas reformas de base eram necessárias quase que para tirar o País do feudalismo em que nós vivíamos, do analfabetismo quase que absoluto que nós tínhamos, de uma indústria absolutamente dependente do capital internacional que nós tínhamos. O Brasil mudou, mas, apesar disso, aquelas reformas continuam sendo necessárias. Apesar disso, nós atravessamos 50 anos sem ter feito o dever de casa que a civilização brasileira precisava para ter um rumo diferente, por exemplo, pacífico.

            Vejam a violência urbana. Uma das causas fundamentais da violência urbana foi a migração rápida do campo para as cidades, inchando as nossas “monstrópolis”. Se tivéssemos feito a reforma agrária que o Governo João Goulart apresentou 50 anos atrás, se tivesse sido garantido terra para a população brasileira, que vivia 70% no campo; se essa população tivesse tido terra para trabalhar, não teria vindo para a cidade na velocidade em que veio. Se não tivesse vindo na velocidade, as cidades teriam crescido sem inchar e a violência seria menor.

            A inflação que se seguiu teve um lado do que se chama em economia uma inflação de oferta. A falta de dinâmica na produção de alimentos fez o preço subir. Enquanto o camponês vivia e plantava a sua rocinha, não tinha problema, era fora do mercado, não entrava na lista de preços. Quando veio para a cidade, deixou de produzir na sua rocinha. Ao contrário, foi morar numa rocinha, do ponto de vista de condições, naquela época, precárias de favela. E aí teve que comprar no mercado. Mas lá na base não se aumentou a produção, até porque a produção agrícola era basicamente por latifúndios exportadores - café, açúcar - que não gerava comida aqui para dentro. A inflação teve uma das causas nisso. Claro que teve outras, como o excesso de gastos do Governo, financiamentos muito rápidos para certas atividades, mas teve a ver com a oferta.

            A reforma agrária teria deixado o Brasil com uma cara completamente diferente e melhor hoje do que a que nós temos, mas não fizemos. Preferimos dar um golpe militar para impedir aquela reforma e ela foi impedida. E, ao ser impedida, nós tivemos a tragédia da migração urbana de imensas massas em direção às cidades, sem emprego, com a pobreza gritante, com os serviços degradados, com uma inflação crescente e com a consequente violência.

            Veja a proposta da reforma na educação que consolidava a criação, pelo Presidente João Goulart, de um programa de erradicação do analfabetismo, liderado pelo Prof. Paulo Freire. Imagine se aquele programa tivesse ido adiante, Senador Mozarildo. Imagine se a gente tivesse, 50 anos atrás, levado adiante um programa por cinco, seis, dez anos que fosse e o Brasil entrasse na década de 80 sem analfabetismo. Imagine que Brasil seríamos hoje em vez dos 13 milhões de analfabetos que nós temos e dos milhões e milhões que morreram nesse período sem aprender a ler.

            As crianças desses que aprendessem a ler teriam uma escola melhor, porque se sabe perfeitamente que o filho de uma pessoa alfabetizada, de uma família alfabetizada tem melhores condições de avançar na sua educação de base do que os filhos de uma família que não adquiriu o conhecimento das letras. Mas o programa foi interrompido.

            Eu, numa viagem pelo interior do Rio Grande do Norte, tive a oportunidade de conhecer um senhor, um homem que vendia bombons em frente a algum centro e ele me dizia: “Eu comecei a aprender a ler, mas prenderam o homem e eu não pude mais aprender a ler”. O homem, no caso, era o coordenador do programa lá no Rio Grande do Norte. E naquela idade em que o conheci, já um homem velho, ele não tinha aprendido a ler.

            Como teria sido diferente o Brasil de hoje se o programa de erradicação do analfabetismo tivesse ido adiante no governo João Goulart.

            A reforma do sistema bancário brasileiro. Como seria hoje o Brasil se o sistema bancário fosse um sistema casado com o setor produtivo, onde a dinâmica e a concorrência dentro do sistema bancário permitissem uma taxa de juros não tão elevada, uma taxa de juros compatível, como o resto do mundo está fazendo. Mas preferiu-se um golpe de Estado para interromper.

            Hoje, o Brasil é outro. Não adianta querer uma reforma agrária igual àquela, mas precisamos fazer uma, sim. Precisamos ainda fazer com que uma população que vive no campo, sem terra e sem emprego, possa passar a ter a sua terra. Precisamos fazer com o que Brasil deixe de ser um país de terras sem homem para trabalhar e homens sem terra.

            É claro que não dá mais para voltar atrás - e nem queremos, e nem seria bom - do tempo em que não havia o agronegócio. Hoje, a reforma agrária tem que ser feita casada com o agronegócio. Não precisa deslocar terra do agronegócio para a reforma agrária, embora, pessoalmente, eu ache que o Brasil daria um salto se cada agronegócio, ele próprio, sem distribuir terra, reservasse uma parte da sua propriedade para a produção de alimentos para o mercado interno, dando emprego específico a uma parte dos seus trabalhadores, sobretudo aqueles que hoje não têm a formação necessária para dirigir os tratores computadorizados que existem.

            Mesmo assim, respeitando, como é preciso, o agronegócio no que se refere à propriedade da terra, embora tomando cuidado com alguns dos processos de produção que ele utiliza, pelas consequências nefastas para o meio ambiente, é preciso que haja uma distribuição de terra no setor que não é produtivo. Ainda carecemos disso. E cada dia que passa, a falta ou o adiamento disso vai aumentando a migração para as cidades, vai reduzindo o número de pessoas que se dedicam a produzir para o mercado interno de alimentos, vai reorientando cada vez mais a área produtiva do Brasil para as exportações, que nos trazem dólares, que permitem atender diversas das nossas demandas, mas que restringem a produção de alimentos para o mercado interno.

            É por tudo isso, Senador Mozarildo, por percebermos que algumas dessas reformas ainda são, hoje, necessárias e que é preciso provocar o debate sobre aquelas que não foram feitas na época, que nós, o Senador Pedro Simon, o Senador Requião e eu próprio, estamos apresentando três projetos de lei que visam levar adiante essas reformas, adiadas há 50 anos.

            Não queremos que seja feito da maneira como nós estamos propondo porque há diversos ajustes a serem feitos. Não é mais tempo de voltar, por exemplo, ao monopólio do petróleo. Não há como, nem que se queira - e nem é preciso querer isso. É preciso ajustar algumas dessas.

            Mas nós estamos apresentando, hoje, esses três projetos de lei, para que esta Casa leve ao Brasil inteiro dois debates: o debate sobre a necessidade, ainda hoje, de algumas dessas reformas adiadas por meio século e que continuam fazendo falta, continuam deixando o Brasil um País órfão de reformas fundamentais de base, e também para provocar o debate. E lembrar como teria sido o Brasil diferente se a democracia tivesse sido assegurada, se aquelas reformas tivessem sido encaminhadas e se, dois anos depois, as eleições presidenciais tivessem elegido um presidente democrático, fosse ou não do grupo do Presidente João Goulart, até porque ele não podia porque não havia então reeleição.

            Nós queremos fazer esse debate sobre aquilo que se deixou de fazer por um golpe militar, que até hoje tem saudosistas, e queremos também pôr na mesa a necessidade das reformas.

            Ao mesmo tempo, queremos tentar impedir o crescimento dessa maneira de fazer política com base na raiva. Hoje - e as pessoas têm razão de estarem indignadas com o caminho que o Brasil vem seguindo - tem se provocado um processo de raiva na política.

            Quando jovem, eu ia para a rua fazer manifestações em nome de causas. Hoje, as pessoas vão em nome de raivas, porque perderam as causas e não por causa dessas pessoas, por causa de nós, os mais velhos, que não oferecemos essas causas sintonizadas com o presente, com os interesses da população.

            Eu vi uma notícia de que existem militares querendo se organizar e alguns dizendo que é preciso derrubar o Governo pelo aumento de salários.

            Eu devo dizer que não tenho nenhuma simpatia pelos militares que deram o golpe em 1964, mas eu os respeito. Duvido que um deles fizesse um golpe por aumento de salários. Eles o fizeram porque acreditavam que o Brasil caminhava para o comunismo e que eles precisavam impedir isso. Eles o fizeram porque não queriam um determinado sistema econômico. Eu acho que eles deviam ter esperado para impedir o sistema econômico que eles não queriam pelo voto. Anteciparam-se. Fizeram-no por um golpe militar. Levou-se o Brasil a 21 anos de um regime autoritário, mas não o fizeram por interesses pessoais. Não o fizeram por interesses corporativos. Fizeram-no por interesses patrióticos equivocados - muito equivocados, mas patrióticos.

            Hoje, a gente perdeu essa dimensão do patriotismo. Hoje, a gente faz propostas com base na raiva em relação ao Governo ou com base nos interesses corporativos de cada grupo, sem o sentimento pleno de nação. Nós queremos - o Senador Requião, o Senador Simon e eu próprio -, ao apresentar esses três projetos de lei que trazem de volta, 50 anos depois, a ideia das reformas de base interrompidas com o golpe de 1º de abril de 1964, trazer o debate sobre a necessidade de projetos com patriotismo, com visão de longo prazo, e, ao mesmo tempo, prestar uma homenagem àqueles que, em 1964, estavam do lado da reforma, das reformas, ao lado das transformações sociais que o Brasil precisava fazer e não fez até hoje.

            Concluo dizendo que uma reforma de base não estava tão clara naquele momento, apesar de haver referências. A Lei da Erradicação do Analfabetismo não estava muito clara em uma reforma que fizesse com que, no Brasil, o filho do mais pobre fosse a uma escola tão boa quanto o filho do mais rico. Essa é uma reforma que, 50 anos depois, temos a obrigação de colocar. Temos a obrigação de colocar, com espírito patriótico, para dizer que não há futuro para o nosso País se mantivermos a desigualdade vergonhosa de como oferecemos educação aos nossos filhos, conforme a cidade onde nasce, a cidade onde vive, a renda da família que lhes deu à luz. Não há futuro!

            Essa é a reforma do século XXI. Essa é a reforma que nós, ou fazemos agora, ou seremos um país condenado ao atraso, em relação aos outros, e à vergonha e à ineficiência aqui dentro.

            No momento em que nós podemos refletir sobre as reformas interrompidas 50 anos atrás, iniciadas e apresentadas naquele comício da Central do dia 13 de março; no momento em que os homenageamos, ao propormos que voltemos a discutir a necessidade dessas reformas, é hora também de pensarmos como homenagear aqueles de 50 anos atrás, fazendo o que não era tempo de eles pensarem, porque não havia ainda a economia do conhecimento, porque a economia ainda era baseada no fator trabalho, no fator terra, no fator capital, não havia o fator conhecimento na dimensão que temos hoje.

            É hora, Sr. Presidente, Senador Mozarildo, de trazermos aqui a homenagem àqueles que, 50 anos atrás, quiseram fazer a reforma de base, e homenageá-los, sobretudo, propondo as nossas reformas, as nossas mudanças, e, entre elas, insisto, a principal é a reforma da educação de base, que, para mim, não terá jeito se não for por meio da federalização, da União assumindo a responsabilidade pela educação de cada criança que, ao nascer, é brasileira, não é municipal. Tínhamos que brasileirizar as crianças do Brasil, porque hoje elas são municipais. Temos que parar com a municipalização das crianças. Criança tem que ter tratamento igual, a mesma quantidade de recurso para sua educação independente da cidade onde nasceu e da cidade onde vive. Essa é a reforma que a gente precisa fazer.

            É inacreditável como ainda existe resistência a essa ideia de a União assumir responsabilidade pela educação de base. Nesses últimos dias, temos visto em mais de um canal, canais diferentes de televisão, a situação vergonhosa de algumas escolas do Brasil em algumas cidades do nosso País. E não se fala em uma intervenção federal nessas cidades, nas escolas. Não falo em tirar o prefeito, não falo em intervenção para fechar a Câmara de Vereadores; falo em intervenção de dizer: Essas escolas, nós, o Governo Federal, vamos assumir, vamos cuidar das crianças de vocês, porque vocês não têm recursos ou não têm competência. Eu acho que é não ter recursos. Não acuso os prefeitos de falta de competência, eu os acuso da falta de recursos. Temos que fazer isso. Cada vez que, neste País, um banco entra em crise, o Governo Federal, através do Banco Central, chega lá e intervém e não deixa o banco quebrar. Mas cada vez que a escola de uma cidade quebra, fechamos os olhos e deixamos aquelas crianças jogadas, abandonadas na escola, no sistema educacional quebrado, sem intervenção.

            A reforma do século XXI, a que não estava ainda àquela época porque era outro tempo, é a reforma pela qual a União, o Brasil, cuidará das suas crianças.

            Chamemos de federalização, chamemos isso de adoção das escolas, chamemos de brasileirização, de nacionalização, chamemos como quisermos, mas é preciso fazer com que a criança brasileira seja brasileira, e não apenas e, sobretudo, municipal.

            Essa é a reforma que cabe nos tempos de hoje, sem esquecermos aquelas que não foram feitas naquele tempo e que ainda merecem ser feitas hoje com os ajustes necessários para os novos tempos de meio século depois.

            É isso, Sr. Presidente, que eu não gostaria de deixar passar o dia de hoje sem manifestar. Pensava em me manifestar mais como aparte ao Senador Simon e ao Senador Requião, mas foi possível que eu usasse a tribuna para fazer esta homenagem.

            Que aqueles que lutaram pela reforma de base e que foram expulsos do governo, naquela época, foram presos, exilados - alguns, torturados -, que sejam lembrados; que a maior lembrança seja lembrar o que eles queriam fazer e o Brasil não fez; e que a outra homenagem, ainda maior, seja fazermos aquilo que nem eles pensaram, porque os tempos eram outros.

            Era isso, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 14/03/2014 - Página 319