Discurso durante a 35ª Sessão Especial, no Senado Federal

Destinada a comemorar o Dia Internacional Contra a Discriminação Racial e os 30 anos do Centro Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro - CIDAN; e o centenário do nascimento de Abdias do Nascimento, nos termos dos Requerimentos nºs 34, 64 e 178/2014.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DISCRIMINAÇÃO RACIAL, HOMENAGEM, SENADO.:
  • Destinada a comemorar o Dia Internacional Contra a Discriminação Racial e os 30 anos do Centro Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro - CIDAN; e o centenário do nascimento de Abdias do Nascimento, nos termos dos Requerimentos nºs 34, 64 e 178/2014.
Publicação
Publicação no DSF de 22/03/2014 - Página 39
Assunto
Outros > DISCRIMINAÇÃO RACIAL, HOMENAGEM, SENADO.
Indexação
  • COMEMORAÇÃO, DIA INTERNACIONAL, COMBATE, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, ANIVERSARIO, INSTITUIÇÃO ARTISTICA, REFERENCIA, INSERÇÃO, POPULAÇÃO, NEGRO, MERCADO DE TRABALHO, CENTENARIO, NASCIMENTO, ABDIAS NASCIMENTO, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), DEFENSOR, CULTURA AFRO-BRASILEIRA.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco Apoio Governo/PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Renan Calheiros, Senador Paim, essa figura ímpar que nós temos no Senado, todos os demais, para não ficar citando um a um, pois é uma lista muito longa, eu não podia deixar de estar aqui hoje, porque é muito raro a gente poder, de uma só vez, fazer uma sessão de homenagem a três entidades tão importantes: uma entidade que é uma luta, que é o Dia Internacional contra a Discriminação; uma data, que são os trinta anos do Centro Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro; e o centenário dessa entidade, que foi e continua presente, Abdias Nascimento. São três fatos marcantes que nós podemos comemorar de uma só vez - isso é muito raro.

            Mas, pedindo desculpas aos outros, eu vou me concentrar mais na entidade Abdias, lembrando, inicialmente, que o Dia Internacional para a eliminação da Discriminação Racial foi instituído pela Organização das Nações Unidas e hoje é um tema mundial. É triste saber que a gente ainda precise de um Dia Internacional contra a Discriminação Racial. Isso não deveria mais ser necessário. Isso já deveria estar abolido. Mas, pelo que a gente vê de exemplos, no dia a dia, em campos de futebol, em faculdades, em lojas, ainda é necessário.

            Em tempos de celebração da Copa do Mundo, por exemplo, o destaque assume significado especial, sobretudo em razões de eventos recentes do futebol brasileiro, a exemplo das injúrias raciais sofridas pelo jogador do Santos, Arouca, em jogo do Campeonato Paulista, e pelo árbitro Mário Chagas da Silva, em certame do Campeonato Gaúcho. Se fosse para ter discriminação no futebol, tinha que ser contra os brancos, que são a minoria dos grandes craques que nós temos.

            O futebol, embora tenha começado como um esporte de brancos e ricos, hoje é um esporte de negros e pobres. Temo que a FIFA vá elitizar isso, deixando uma marca negativa de tão caro que serão os estádios daqui para frente, pela redução do tamanho deles, pelo excesso de gastos, por um conforto que custa muito.

            Esses dois fatos - o do Mário e o do Arouca - são situações emblemáticas, que exigem a efetiva punição dos responsáveis, bem como a pronta mobilização da sociedade para que o futebol, que em nosso País adquire o caráter de comunhão dos valores da nossa nacionalidade, possa patrocinar concretamente a erradicação do ódio racial.

            A celebração do Dia Internacional para a eliminação da Discriminação Racial favorece a recuperação da memória de grandes personagens que se destacaram na luta contra o racismo, tanto negros, como o nosso Zumbi, quanto brancos, como Joaquim Nabuco.

            Não haveria melhor ocasião para celebrar o centenário do nascimento de Abdias Nascimento do que este momento.

            Arte e política sempre estiveram interligadas em Abdias, pois constituíram as suas armas no combate contra a injustiça e o preconceito. Desde cedo, aprendeu a lutar contra o destino que a sociedade reservava a negros como ele. De procedência muito humilde, filho de pai sapateiro, passou a infância de pés no chão, o que mostra, Senador Renan, a contradição brasileira. Filho de sapateiro, pés no chão, porque ele fazia sapato para os outros.

            Do mesmo jeito que centenas de milhares de crianças e adultos na África colhem o cacau e nunca comeram o chocolate. As pessoas se espantam com isso. Vi há pouco, um filme em que um cineasta francês levava chocolate para que os meninos que colhiam cacau soubessem como era o produto que eles sofrem para fazer. Nunca, nunca, nunca tinham visto chocolate, e eles que produzem o cacau. O pai de Abdias fabricava sapato, e o filho andava de pé descalço porque fazia o sapato para os outros.

            Da mesma maneira que a gente esquece que, no Brasil, centenas de milhares de mulheres cuidam com o maior carinho dos filhos dos seus patrões em casa para irem à escola, e os seus filhos não têm escola. A gente esquece essa dor. Como deve ser o sentimento na alma de uma mulher, trabalhadora doméstica, que prepara o menino da sua patroa para ir, depois da aula, ao curso de inglês, de natação, de judô? E sabe ela que o seu filho não tem isso. Tenho a impressão de que essa é uma das maiores injustiças que temos, a desigualdade na escola, do filho da patroa e do filho da trabalhadora que cuida dos filhos da patroa. Esse exemplo de Abdias é um fato desse tipo. O que colhe cacau e não come chocolate, o que prepara a criança para ir à escola e a sua criança não tem escola, e o sapateiro que faz sapato para os outros.

            A pobreza não o impediu de frequentar as primeiras letras no liceu, a aptidão que desenvolveu quando serviu o Exército, participando da Revolução de 1930 e da Revolução Constitucionalista de 1932. A expulsão das fileiras militares, motivada por episódio de resistência à discriminação racial, propiciou o aprofundamento na experiência artística. Ele descobriu a arte na prática.

            Abdias criou o Teatro Experimental do Negro (TEN), que funcionou entre 1944 e 1968. Veja bem, de 1944 a 1968, O TEN não visava apenas à afirmação da capacidade do negro no teatro dramático. Não era só isso, não era mostrar que o negro é um ator, como já se tinha mostrado que o negro é um jogador de futebol. A gente esquece, mas há até certo tempo era proibido haver jogador negro em campo de futebol. Imaginem quantos gênios nós não teríamos perdido no futebol, se essa regra discriminadora, discriminatória, ainda existisse!

            E, hoje, quantos gênios estamos perdendo na vida intelectual, por não darmos escola igual para todos?

            Não faz muito, em Recife, o Náutico, time pelo qual não nego ter simpatia, não tinha jogador negro, e só começou a ter, depois de um técnico que foi o Gentil Cardoso, já no começo dos anos 60. Então, esse preconceito que havia no futebol havia nas artes, no teatro, e Abdias quis vencer, mostrando que os negros são bons atores.

            Mas não é só isso, ele disse: “Mais do que um grupo de teatro, nós formamos um grupo de consciência da cidadania negra.” Não era apenas para colocar o negro no palco, era para do palco sair uma revolução - essa era a visão que tinha Abdias. Por isso, buscava refletir os problemas existenciais da população negra, bem como também romper o colonialismo cultural brasileiro, que se resumia a uma estética branca, preconceituosa, com a visão de mundo afro-brasileira, como até hoje existe e querendo transformar o Brasil.

            Guerreiro da grande luta quilombista, Abdias era um homem à frente de seu tempo, o grande pioneiro do movimento negro contemporâneo. Abdias é o Zumbi do século XX, ele foi aquele que se transformou em símbolo. Passado apenas meio século da abolição da escravidão, ele mobilizava a sociedade brasileira, na Convenção Nacional do Negro, realizada em 1945, com o fito de introduzir legislação específica sobre as relações raciais no Brasil.

            Aproveitou-se desse instrumento para introduzir, na Constituinte de 1946, propostas de penalização da discriminação racial. Quando ainda nos Estados Unidos havia a discriminação aceita e tolerada no Sul, aqui já tínhamos, graças a Abdias, esse artigo. Após período de exílio, durante a Ditadura Militar, Abdias aprofundou a militância política no movimento negro, ocupando espaços formais de atuação política, por meio da filiação ao Partido ao qual pertenço, o PDT. Abdias é um exemplo e um orgulho para todos nós pedetistas.

            Dessa forma, ele definia a sua atuação na Câmara dos Deputados, no período de 1983 a 1987, e no Senado Federal, de 1997 a 1999, quando assumiu a vaga deixada por morte do ilustre Senador Darcy Ribeiro, como serviço a prestar pela luta contra as injustiças raciais. Era preciso ter um Abdias para substituir um Darcy. Dificilmente, teríamos alguém maior do que Abdias para substituir o Darcy. Para ele, a questão racial se constitui numa questão nacional de urgente prioridade para a construção da justiça social no Brasil. Portanto, merecedora da atenção redobrada do Congresso Nacional.

            Por meio do Projeto de Lei do Senado nº 75, de 1997, Abdias introduziu, no debate parlamentar, a noção da ação afirmativa, a qual definia como um instrumento ou conjunto de instrumentos utilizado para promover a igualdade de oportunidades no emprego, na educação, no acesso à moradia e no mundo dos negócios. Por meio deles, o Estado, a universidade e as empresas podem não apenas remediar a discriminação passada e presente, mas também prevenir a discriminação futura, num esforço para se chegar a uma sociedade inclusiva, aberta à participação igualitária de todos os cidadãos.

            Não poderíamos pensar o leque de políticas públicas de reparação da discriminação racial hoje, como as cotas, reunidas no Estatuto da Igualdade Racial, sem a valiosa contribuição de Abdias Nascimento. O Abdias é o pai e a mãe das nossas políticas antidiscriminação que temos hoje.

            Por isso, eu quero concluir, aproveitando esta ocasião para celebrar também os 30 anos do Centro Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro (Cidan), instituição sem fins lucrativos, fundada pela notável atriz e cantora Zezé Motta, da qual todos nós somos fãs. Com forte atuação na produção audiovisual e em ações culturais e coletivas, o Cidan valoriza a cultura e a história afro-brasileiras a partir de viés afirmativo.

            Sr. Presidente, eu não posso concluir sem dizer que hoje Abdias vive, deixou sua marca, mas ele cobra de nós as ações que faltam. E as ações antidiscriminatórias hoje estão nos esperando, desafiando a partir da discriminação na educação de base que há neste País.

            É uma discriminação que não é só racial, mas é, sobretudo, racial, porque, entre os 3 milhões de brasileiros analfabetos, há brancos, mas a maioria é de negros; entre os 40 milhões de brasileiros analfabetos adultos, há brancos, mas a maioria é negra, porque nós não fizemos o dever de casa de ter uma boa escola desde a mais tenra idade para cada criança brasileira, independente do credo, da cor, da cidade onde vive e da renda de seus pais.

            Esta é a tarefa que Abdias nos deixou: quebrar o preconceito, a discriminação de que no Brasil o filho do trabalhador estude em uma escola diferente do filho do patrão; o filho do negro estude em uma escola diferente do filho do branco, se não tiver, como a maior parte dos negros não tem, uma renda equivalente.

            Nós temos de quebrar essa diferença. Nós temos de fazer com que nosso País, como tantos outros já conseguiram, o filho do mais pobre estude em uma escola tão boa quanto o filho do mais rico; o filho do trabalhador vá à escola de mesma qualidade da do filho de seu patrão. Isso é possível. E, talvez, mais simples ainda do que Zumbi sonhou, do que Abdias ajudou a fazer e do que aquilo que futuro espera de nós.

            É isso, Sr. Presidente, o que tinha para falar, desejando um grande abraço. E deixo uma frase: “Zumbi e Abdias vivem!” (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 22/03/2014 - Página 39