Discurso durante a 41ª Sessão Especial, no Senado Federal

Destinada a lembrar os 50 anos do golpe civil e militar de 1964, nos termos do Requerimento nº 56/2014, de autoria do Senador João Capiberibe e outros Senadores.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SISTEMA DE GOVERNO, FORÇAS ARMADAS, ESTADO DEMOCRATICO.:
  • Destinada a lembrar os 50 anos do golpe civil e militar de 1964, nos termos do Requerimento nº 56/2014, de autoria do Senador João Capiberibe e outros Senadores.
Publicação
Publicação no DSF de 01/04/2014 - Página 14
Assunto
Outros > SISTEMA DE GOVERNO, FORÇAS ARMADAS, ESTADO DEMOCRATICO.
Indexação
  • ENCERRAMENTO, REGIME MILITAR, BRASIL, ENFASE, CONTINUAÇÃO, INSUFICIENCIA, DEMOCRACIA, DIREITOS SOCIAIS, IMPORTANCIA, LUTA, MELHORIA, ESTADO DEMOCRATICO.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco Apoio Governo/PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Senador Capiberibe, que preside esta sessão e que teve a iniciativa de convocá-la, uma sessão que deveria ter sido convocada pelos 81 senadores e não apenas por um número tão restrito; caro amigo companheiro Pedro Simon, nosso Senador do Brasil; Deputada Federal Janete Capiberibe; Vereador Waldir Pires, um dos símbolos da História do Brasil no século XX; jornalista José Maria Rabelo, que hoje no Bom Dia Brasil mostrou como é exilar-se com sete filhos, um dos quais aqui presente; caro amigo Luiz Cláudio Cunha; Sr. Marcos Magalhães; meus senhores e minhas senhoras, faz 50 anos, amanhã, eu tinha 20 anos, que de repente fizeram a escuridão no Brasil. Como se fosse pouco, cercaram todos nós por um muro, um largo e alto muro. E nós na escuridão, cercados, ouvimos um grito de um poeta que disse: “Faz escuro, mas eu canto.”

            Thiago de Mello, com esse verso, nos despertou, e nós passamos, na escuridão, cercados, a cantar e a gritar. Foram 21 anos de gritos, de negociações, de conversas, de manifestações, até que, um dia, o grito fez o dia, e a luz apareceu.

            Mas eu quero aqui, aproveitando este momento de lembrar a tragédia brasileira de 50 anos atrás, fazer uma autocrítica a todos nós, desde que a luz apareceu, porque a luz não apareceu, por exemplo, para 13 milhões de analfabetos, que continuam em uma forma de escuridão. Não são torturados fisicamente, mas são torturados intelectualmente cada segundo em que estão despertos no dia a dia da vida. A luz não chegou para eles.

            A luz não chegou para as mães carregando os seus filhos em portas de hospitais, à espera de um médico que não chega. Para elas, não chegou a luz ainda.

            A luz não chegou para a história do Brasil, porque ela ainda está sequestrada pelo fato de as nossas Forças Armadas se negarem a dizer com clareza que foram outros que fizeram tudo isso, e não a instituição, e reconhecerem que esses outros merecem ser punidos, pelo menos aqueles que cometeram atos de tortura, para não falarmos em uma revisão da Lei da Anistia, mas, sim, torturado não estava na Lei de Anistia.

            Não dá para dizer que a luz chegou para dois terços de nossos jovens, 40 milhões, que hoje estão matriculados em pseudoescolas e que vão concluir, um terço apenas, o ensino médio e em má qualidade.

            A luz não chegou para quem, no século XX, não vai concluir o ensino médio com qualidade.

            A luz não chegou para 50 mil vítimas de assassinatos no Brasil, talvez 1 milhão desde que a luz apareceu, mas nós não conseguimos fazer um País pacífico. Paramos a tortura, trouxemos exilados, anistiamos os que estavam punidos, mas não conseguimos trazer a paz para o Brasil. Nossos trabalhos de democratas foram completados em parte, quando recuperamos a democracia, mas só em parte, porque não construímos ainda a democracia.

            Nós não podemos dizer que a luz chegou para milhões ainda de brasileiros que perambulam no campo sem trabalho sobre terras com donos que não usam a terra, não chegou.

            Não chegou, ainda, para 52 milhões de brasileiros e brasileiras que, felizmente, graças à luz, hoje têm uma bolsa família, mas que são condenados a viverem de bolsa família. E nós ainda comemoramos o aumento no número desses que se beneficiam de um programa generoso, bonito, produto da democracia, mas insuficiente para uma democracia, 30 anos depois. (Palmas.)

            A luz não chegou para 530 mil mães, pais, parentes... Mais: para as mães, pais, parentes, 530 mil brasileiros, brasileiras confinados nas sórdidas prisões brasileiras, cuja imensa maioria cometeu crimes por falta de uma oportunidade na vida.

            Nós abrimos as portas das cadeias para os presos políticos, e a luz se fez para eles, mas não conseguimos fechar as portas das cadeias, para que nenhum brasileiro ou brasileira seja condenado sem uma causa que dependeu da vontade dele, e não das circunstâncias a que o destino o levou.

            Nós fizemos a luz da democracia com nossos gritos, mas não fizemos a luz para milhões de meninas e meninos explorados sexualmente, vítimas da exploração sexual; para mulheres assassinadas pela violência dos maridos, irmãos, parentes ou até de pessoas na rua.

            Nós não fizemos ainda a paz de uma distribuição equitativa da renda. Não chegou a luz em um País onde tão poucos detêm tanto e tantos detêm tão pouco.

            Nós fizemos a democracia. Acabaram as trevas políticas - como está aqui no cartaz -, mas não acabaram as trevas sociais, não acabaram as trevas educacionais, não acabaram as trevas policiais, que, inclusive, continuam prendendo pessoas que não deveriam e fazendo desaparecer pessoas, o que, muitas vezes, esquecemos, porque achamos que a luz chegou.

            Nós não fizemos a luz na busca, na procura e na realização de governos éticos, decentes, sem corrupção. Não fizemos. A luz veio para a prática política, não veio para a transparência dos gestos políticos durante a democracia.

            Nossa democracia está absolutamente incompleta, e nós precisamos aproveitar este momento para, como muito bem fez o Senador Randolfe, lembrar a tragédia até daquilo que eles dizem que foi bom; lembrar aquilo que a gente viveu, que atravessou e de que o Senador Capiberibe falou; lembrar a tragédia daqueles dias sobre os quais o Senador Simon - nós todos aqui estamos alertas - falou tão explicitamente. Eu acho que este é o momento de lembrar tudo isso. Mas precisamos dizer, completando aquele poeta que disse que “faz escuro, mas eu canto”: “E tanto ainda por fazer! Tanto ainda por fazer!” E lembrar que tudo isso que ainda está por fazer talvez não fosse necessário se, naqueles tempos atrás - faz 50 anos amanhã -, não tivessem sido interrompidas as reformas de base.

            Imaginem se, 50 anos atrás, tivéssemos feito uma reforma agrária extensiva e profunda neste País, liberando a terra improdutiva e liberando as mãos vazias por não poderem usar as terras.

            Imaginem, em primeiro lugar, como seriam nossas cidades se não tivesse havido a brutal migração de pessoas sem terra em busca de emprego nas cidades. Todos esses problemas que nós vemos hoje, todos os dias, na televisão, das nossas “monstrópoles”, provavelmente não existiriam se a migração do campo para a cidade, que é uma tendência natural, tivesse acontecido num ritmo em que as cidades fossem capazes de absorver a mão de obra que chegava. Mas não! Por falta da reforma agrária, expulsamos as pessoas para as cidades, e as cidades explodiram nas “monstrópoles” de hoje.

            Imaginem se o programa de erradicação do analfabetismo, liderado por Paulo Freire, tivesse ido adiante 50 anos atrás, porque nós esquecemos que, desses 13 milhões que são adultos analfabetos hoje, pelo menos dois terços entraram na escola depois que nós somos governo democrático. Não dá mais para colocar a culpa nos ditadores. Agora, dá para colocar a culpa neles por terem impedido o programa de Paulo Freire, que teria feito do Brasil um país alfabetizado. E um país alfabetizado, 50 anos atrás, seria um país radicalmente diferente nos tempos de hoje.

            Imaginem se, além da reforma agrária e da alfabetização, nós tivéssemos feito as reformas que levariam ao uso do capital no Brasil a serviço do País, e não só a serviço do lucro; se tivéssemos feito regras claras, concretas e não isolacionistas para a remessa de lucros. E não fizemos. Entregamo-nos totalmente.

            Imaginem como seria o Brasil de hoje se aquele debate não tivesse sido interrompido por 21 anos; se Celso Furtado não tivesse tido que sair do Brasil, se Paulo Freire não tivesse tido que sair do Brasil, se Darcy Ribeiro não tivesse de sair do Brasil. O debate que se vinha fazendo neste País, que enriquecia não só culturalmente, mas enriquecia historicamente este País com um projeto novo, se isso não tivesse sido interrompido, imaginem onde nós estaríamos hoje.

            Mas interromperam. Interromperam, e aí é preciso dizer também que a luz chegou em parte, porque nós não vemos o debate ser feito hoje na dimensão ideológica com que deveria ser feito. Nós tecnificamos o debate. As universidades foram aprisionadas na falta de sonhos, de esperança, na busca apenas de interesses corporativos - isso culpa, sobretudo, dos 20 anos em que ficamos sem esses líderes, sem o debate.

            Por isso, nesses 50 anos, desde aquela tragédia em que apagaram as luzes e construíram um muro, vamos pensar nas próximas décadas, na responsabilidade que nós temos de fazer avançar a luz sobre o território brasileiro; não mais a luz política, mas a luz social, a luz de uma estrutura econômica justa, eficiente e nacional. Isso é possível.

            E eu espero que, daqui a 10, 20, 30 anos, quando outro evento como este, Senador Capiberibe, for convocado para lembrar os 60, 70, 80 anos, algum orador possa aqui dizer: “As luzes se apagaram naquele dia em que eu tinha 20 anos, mas nós ajudamos a acendê-las plenamente” - e não apenas parcialmente, como nós fizemos nesses últimos 30 anos.

            É isso, Sr. Presidente. (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 01/04/2014 - Página 14