Discurso durante a 47ª Sessão Especial, no Senado Federal

Destinada a comemorar o cinquentenário do “Comício das Reformas” realizado pelo Presidente João Goulart na Central do Brasil – Rio de Janeiro, nos termos dos Requerimentos nºs 48 e 150/2014, de autoria do Senador Randolfe Rodrigues e outros Senadores.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Destinada a comemorar o cinquentenário do “Comício das Reformas” realizado pelo Presidente João Goulart na Central do Brasil – Rio de Janeiro, nos termos dos Requerimentos nºs 48 e 150/2014, de autoria do Senador Randolfe Rodrigues e outros Senadores.
Publicação
Publicação no DSF de 05/04/2014 - Página 189
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CINQUENTENARIO, REALIZAÇÃO, DISCURSO, AUTORIA, JOÃO GOULART, EX PRESIDENTE DA REPUBLICA, LOCAL, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), ASSUNTO, DEFESA, NECESSIDADE, REFORMULAÇÃO, BRASIL.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco Apoio Governo/PDT - DF) - Um país é feito por sua história, e a história é feita de nomes e datas. Eu estou muito satisfeito de poder aqui comemorar uma data e um nome: o nome de João Goulart e a data das propostas de reformas de base.

            Por isso, agradeço ao Senador Randolfe, que tomou a iniciativa desta sessão. Se o senhor não tivesse tomado a iniciativa, talvez nenhum outro de nós tivesse se lembrado disso. Quero cumprimentar o João Vicente Goulart, nosso amigo e companheiro de tantas jornadas aqui no Distrito Federal; o Dr. Aldemario Araújo Castro, que representa aqui o Presidente da OAB; o meu velho amigo, de quase 50 anos, quase tanto tempo desde o golpe, José Ernane Pinheiro; a Pastora Romi Bencke; e também, claro, o Embaixador da República Bolivariana da Venezuela, o Embaixador da Missão do Governo da República Sauhari e a Conselheira Vice-Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

            Senhores e senhoras, faz cinquenta anos que o Brasil tentou rever seu destino na direção que a realidade exigia. É isso o que o Presidente João Goulart tentou naquele dia. Ele encarnava uma vontade de nascer um Brasil novo. E é isso que faz os grandes líderes: estarem naquele momento no lugar onde uma pessoa precisa encarnar a vontade de um povo. E a vontade do povo brasileiro, da História do Brasil, da Nação brasileira, era a vontade de sair de um País feudal para um País industrial, de um País de servidão (dos camponeses) para um País de respeito aos operários; sair de um País dependente, quase colônia, para um País independente, florescente; de um País sem um povo sem educação para um País com um povo com educação.

            Era uma ânsia da Nação inteira, como se ela estivesse grávida de um tempo novo. E esse tempo novo não conseguia nascer por falta de algumas reformas fundamentais. Por isso, embora o dia 13 de março seja lembrado mais como ponto de partida do golpe conservador, eu sempre gosto de lembrar essa data como um ponto de coroamento da tentativa de fazer as reformas que o Brasil precisava: frustradas, derrotadas, mas necessárias. Necessárias a tal ponto que até hoje a gente sabe que muitas delas continuam como uma necessidade a ser realizada. Aquele Brasil que ansiava nascer foi interrompido e, no lugar, foram feitas reformas pelo lado conservador.

            A industrialização não foi paralisada, mas foi realizada para beneficiar uma minoria, foi realizada não com o anseio que havia no País de uma distribuição de renda que dinamizasse uma economia de bens para o povo, mas sim pela construção de uma demanda de bens de ricos para poucos, para viabilizar uma indústria de bens de consumo suntuários. Quando se começa a industrialização e usa-se o automóvel, no tempo de Juscelino, isso se estancou, porque não havia demanda, a demanda foi feita concentrando a renda.

            Jango propunha uma reforma das universidades. E a reforma veio pelo lado conservador, atrelando a nossa universidade a um projeto estrangeiro, naquela época, chamado USAID; e ela servia ao propósito, mas ao propósito de um projeto conservador, não ao papel de um projeto transformador. Tanto é que, imediatamente depois do golpe, sendo reformada para servir ao sistema, os estudantes e os professores se mobilizaram contra a ditadura. Era a ânsia que continuava dentro das universidades por reformas que fazia lutar pela democracia e, ao mesmo tempo, era a imposição de um modelo elitista, comprometido com a economia de privilegiados que era imposta à universidade. O 13 de março representa, portanto, a figura João Goulart encarnando a vontade do povo brasileiro.

            Essa reforma que veio ou as reformas foram pelo lado conservador, que criaram uma dinâmica econômica com exclusão, a ponto tal que hoje nem mais exclusão é, é uma apartação, é um apartheid social, com alguns programas de transferência de renda de um lado para o outro do muro, mas sem trazer os que estão do lado de lá para o lado de cá do muro. Transfere-se um pouco de renda do sistema moderno para aqueles que ficaram de fora, mas não se traz - Padre Ernanne - para dentro da modernidade aqueles que continuam lá fora necessitando de ajuda.

            Imaginem vocês o que teria acontecido no Brasil se as reformas tivessem sido feitas. Comecemos pela reforma agrária.

            Suponhamos que, em 1964, cada trabalhador sem terra deste País recebesse um pedaço de terra sem trabalhadores, terras que estavam improdutivas nas mãos de latifundiários. Imaginem o que teria acontecido!

            Primeiro ponto, esses trabalhadores, como hoje se diz, assentados - eu diria “esses trabalhadores” -, com a dignidade de uma terra para eles, não precisariam ter migrado para as cidades. Imaginem se os trabalhadores que vieram, nesses 50 anos, do campo para a cidade, em uma multidão de pessoas, não tivessem necessitado de vir para as cidades. Não haveria a violência que há. Não haveria a pobreza que há nas cidades. Nossas cidades talvez não fossem metrópoles no tamanho, mas não seriam “monstrópoles” na estrutura social que temos nas nossas cidades.

            Imaginem que tivesse sido feita a reforma agrária e os nossos trabalhadores, em pequenas propriedades, estivessem alimentando o povo brasileiro em vez de, em grandes propriedades, alimentarem os animais do exterior, que comem a soja que nós produzimos. Imaginem! Imaginem esses trabalhadores produzindo alimentos aqui para dentro. Não teríamos tido a inflação que tivemos durante um longo tempo.

            A inflação, como a violência urbana, é produto da falta da reforma agrária que João Goulart queria fazer em 1964. E a gente esquece isso, como se a reforma de base fosse apenas uma ideia abstrata, vaga. Não! Era uma coisa concreta na condução do futuro do País, que teria sido completamente diferente do que é hoje, diferente para muito melhor. Talvez até o PIB não fosse tão grande, mas a justiça seria muito maior.

            Nós não escolhemos esse caminho naquela época. Não escolhemos porque os conservadores não queriam a reforma. E aí alguém pode dizer: Mas como alguém não quer uma reforma que vai mudar e melhorar o País? É porque a nossa egoísta elite está menos preocupada com o País ir bem do que com o bolso delas, as elites irem bem. O Brasil seria melhor, mas essa elite não teria a riqueza que tem hoje. Então, eles preferiram ficar com a riqueza, com a renda, mesmo que o País ficasse em uma situação pior.

            Imaginem se a reforma bancária tivesse sido feita naquela época. Imaginem que os nossos bancos tivessem sido colocados para servir ao projeto nacional, e não apenas ao lucro que eles passaram a ter e têm até hoje. Primeira coisa, nossos juros não seriam desse tamanho.

            Segunda, nossa dívida pública não seria dessa forma. A falta daquela reforma bancária naquele momento impediu que o sistema financeiro brasileiro fosse o instrumento da dinâmica de uma economia a serviço do povo e fez com que a economia terminasse sendo a serviço do enriquecimento dos bancos, por falta da reforma bancária em 1964.

            Imaginem - não está no discurso, mas estava na prática do Governo Goulart - o programa de alfabetização, visando à erradicação do analfabetismo aqui, como Cuba tinha feito dois, três anos antes! Imaginem se Paulo Freire, que era o diretor do programa de erradicação ao analfabetismo, tivesse continuado naquele programa! Imaginem! Imaginem se todos os brasileiros tivessem sido alfabetizados desde meados dos anos 60. Imaginem! Imaginem que Brasil a gente teria hoje se, em 1970, todos os brasileiros fossem alfabetizados! Já imaginaram o que isso significaria na educação das crianças cujos pais seriam alfabetizados? Na eficiência na produtividade dos trabalhadores que, graças à alfabetização, fariam cursos técnicos, iriam se aperfeiçoar? Já pensaram o que isso significaria no processo eleitoral em que as pessoas, tendo educação, teriam alternativas e, tendo alternativas, não precisariam - inteligentemente, aliás - vender os votos porque têm fome? E, ao ter fome, por não ter uma camisa, o voto passa a ser usado inteligentemente, no curto prazo, para adquirir o que não têm. Imaginem como seria o sistema de ciência e tecnologia brasileiro de hoje se todos fossem alfabetizados, se as crianças tivessem pais alfabetizados, e a dinâmica a que isso levaria nas universidades e nos centros de pesquisa!

            Mas o Brasil - entre aspas, talvez - liderado por aquele grupo reacionário preferiu não fazer isso, e, hoje, nós temos um número pelo menos quatro vezes maior de analfabetos do que tínhamos naquela época. Pelo menos quatro vezes!

            Nós não fizemos. Aquela data ficou marcada pela ânsia brasileira encorpada no discurso de um homem, de um político que propunha o que o País precisava. Não fizemos ali. E chegamos agora, 50 anos depois, carentes ainda das reformas.

            Já não é mais a reforma agrária daquele tempo, até porque a população veio para as cidades, mas, ainda assim, é preciso dar terra aos homens e mulheres sem terra e ocupar de homens e mulheres as terras que não estão sendo utilizadas para a produção do que o Brasil precisa.

            Por incrível que pareça, apesar de ter havido uma inversão completa na proporção de moradores entre a cidade e o campo - e hoje é uma pequena minoria; o Brasil virou um País super, ultra, inconvenientemente, exageradamente urbano -, ainda precisamos de uma reforma agrária.

            Ainda precisamos de uma reforma bancária. Mais do que nunca, precisamos de uma reforma política neste País, que não fizemos como se desejava naquele tempo. E esta talvez seja a mais visível das reformas das quais o Brasil ficou órfão. Talvez, de todas, seja a que a gente mais sente no dia a dia, pela corrupção, pelo desvirtuamento de como a política é feita visando a interesses, ou totalmente escusos ou corporativos, os quais até não dá para chamar de escusos, mas incompatíveis com a distribuição dos benefícios.

            Nós continuamos necessitando dessa reforma, mas, sobretudo, do que nós realmente precisamos hoje, e a Nação está grávida, é da reforma na educação de base das nossas crianças.

            Naquela época, a reforma visava liberar as forças produtivas. E as forças produtivas eram a terra, eram o capital. Hoje, a força produtiva é o conhecimento, é a inteligência, é a formação. É aí que está o capital que produz para a economia daqui para frente. E esse capital está tão amarrado no Brasil como estava a terra dos latifundiários em 1964.

            Hoje, nós temos um latifúndio improdutivo formado por milhões de cérebros de brasileiro que não tiveram a chance de estudar. É um latifúndio improdutivo. E é o latifúndio produtivo de que a gente precisa hoje, mais do que nunca.

            Essa reforma de base, eu tenho certeza, seria hoje o carro-chefe de João Goulart, até porque ao lado dele estavam duas figuras políticas que já defendiam isso: Leonel Brizola e Darcy Ribeiro, para não falar de Anísio Teixeira, para não falar de Santiago Dantas e de muitos outros. Esses dois, sobretudo, tinham a visão de que o futuro, depois da reforma agrária, depois da reforma bancária, era a reforma que permitisse que, neste País, o filho do mais pobre brasileiro estudasse em uma escola com a mesma qualidade da do filho do mais rico. Uma escola que reunisse, no mesmo espaço intelectual, o filho do patrão e o filho do trabalhador e esses dois cérebros, não só um deles, pudessem ajudar a construir o país do futuro.

            Hoje a nossa reforma é a reforma do latifúndio intelectual e produtivo que nossas cabeças não estão podendo produzir não por incompetência, não por falta de vontade, mas porque não estamos dando a eles aquilo que falta para transformar um cérebro em um cérebro criativo, de acordo com o mundo moderno, a educação de qualidade para todos.

            Pessoalmente acho que essa reforma fundamental de hoje seria como a reforma agrária. Distribuir terra para a minha reforma da educação é federalizar a educação de base, fazendo com que cada criança deste País receba na sua educação a mesma quantidade de recursos, independentemente do lugar em que nasceu, que cada criança do Brasil tenha professores com o mesmo salário, independentemente da cidade onde ela, criança, estuda, que o prédio de qualquer escola deste País seja bonito, independentemente da cidade onde ele está construído.

            E isso, só tem um jeito de se fazer: através da união de todos os brasileiros, da Nação brasileira, fazendo com que criança que nasça do Brasil seja brasileira e não carioca, nacionalizando as crianças e não municipalizando-as como hoje acontece. Esse é o desafio da gente.

            As reformas continuam necessárias, todas aquelas daquele tempo, sob outras formas obviamente. Já não somos um país fechado, e não adianta querer voltar a fechar o Brasil. Temos que fazer as reformar convivendo internacionalmente em um mundo global, mas, mesmo assim, trazendo aqui para dentro o poder de decidir, o poder de orientar o futuro.

            Essa, para mim, é a principal lição das reformas.

            Muitos acham que a principal lição é o fato de que o golpe veio porque a elite não quis deixar fazer as reformas. E aí a gente tem que entender o desastre que significam 21 anos de ditadura. E, de fato, esse é um desastre incomensurável, terrível, como muitos já mostram aqui. Inclusive o Senador Randolfe, esta semana, mostrou os prejuízos que representaram, independentemente da perda de direito da fala, por causa do golpe.

            Mas, para mim, além desse lado do exemplo pela negatividade, eu considero que o que mais importa naquele discurso cujos pedaços a gente viu, é saber que há momentos em que uma nação tem que assumir fazer as reformas de que precisa, tem que assumir riscos, se necessário for, para fazer essas reformas. E nós estamos hoje tão anti-reformas como estávamos há 50 anos. Nós estamos tão carentes de um João Goulart hoje como estávamos carentes dele há 50 anos.

            Por isso estamos aqui, para comemorar uma data, para comemorar um nome, para comemorar uma proposta que está tão viva hoje, que é tão necessária hoje como estão vivos a ideia de reforma e o nome João Goulart.

            Por isso, viva às reformas e viva João Goulart. (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 05/04/2014 - Página 189