Pela Liderança durante a 95ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Reflexão sobre as causas dos gestos e gritos obscenos dirigidos à Presidente Dilma Rousseff na abertura da Copa do Mundo.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Pela Liderança
Resumo por assunto
MANIFESTAÇÃO COLETIVA, PRESIDENTE DA REPUBLICA, ATUAÇÃO.:
  • Reflexão sobre as causas dos gestos e gritos obscenos dirigidos à Presidente Dilma Rousseff na abertura da Copa do Mundo.
Publicação
Publicação no DSF de 25/06/2014 - Página 51
Assunto
Outros > MANIFESTAÇÃO COLETIVA, PRESIDENTE DA REPUBLICA, ATUAÇÃO.
Indexação
  • CRITICA, MANIFESTAÇÃO COLETIVA, PERIODO, ABERTURA, CAMPEONATO MUNDIAL, FUTEBOL, MOTIVO, OFENSA, DILMA ROUSSEFF, PRESIDENTE DA REPUBLICA, COMENTARIO, INFLUENCIA, MANIFESTAÇÃO, IMPRENSA, AMBITO INTERNACIONAL, REGISTRO, DIVERSIDADE, OPINIÃO, POPULAÇÃO, ANALISE, PRECARIEDADE, SITUAÇÃO, BRASIL.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco Apoio Governo/PDT - DF. Pela Liderança. Sem revisão do orador.) - Presidente, Senador Suplicy, há pouco, diversos Senadores aqui falaram, provocando uma reflexão sobre esse evento magnífico que o Brasil está realizando: a Copa do Mundo.

            Até aqui - e eu espero, sinceramente, que até o final, porque a honra do Brasil depende do sucesso desses jogos - e até o final, espero que nós consigamos chegar satisfeitos e com o mundo satisfeito. A partir daí, acho que nós vamos poder, no futuro - talvez nem nós, talvez outra geração -, fazer uma avaliação de quais foram os resultados da Copa em proporção à energia que isso utilizou.

            Mas eu quero aqui, Senador Suplicy, fazer uma pequena reflexão sobre algo que chamou tanto a atenção, no primeiro jogo, mas sobre o que não houve uma reflexão: os gestos e os gritos obscenos feitos contra a Presidenta Dilma, no primeiro jogo, na abertura da Copa, no Itaquerão.

            O resultado daquela obscenidade, em primeiro lugar, foi o mundo inteiro, em que houve tradução do que foi dito, ficar horrorizado com o grau de deseducação do público brasileiro, porque ali, pela televisão, ninguém sabia quem estava gritando. Ali, todos estavam gritando, não só os que estavam ali, os sessenta mil, mas todos os brasileiros, para a opinião pública mundial.

            Isso é uma vergonha. Isso é uma inconsequência. Isso é uma irresponsabilidade. Não se pode tolerar que o Brasil faça gestos desse tipo para ninguém, ainda menos, para quem representa a Presidência, ainda menos - eu diria - para uma mulher.

            Mas, Senador Suplicy, não houve uma reflexão sobre aquilo. A população se dividiu entre aqueles que comemoraram a obscenidade, por uma visão primária do processo político, achando que isso criaria problemas para a Presidenta, e aqueles, do lado do Governo, que decidiram tirar proveito, vitimando a Presidenta em relação ao que foi gritado e dito.

            Nós não fizemos a reflexão sobre o porquê daqui, sobre as causas daquilo e sobre como superar aquilo. Em primeiro lugar, creio que seja perfeitamente possível dizer que os que fizeram aqueles gestos obscenos não eram os privilegiados que estivessem descontentes com os últimos governos, porque os avanços sociais ocorridos no Brasil, nos últimos vinte e dois anos, foram substanciais, mas nenhum desses avanços representou uma reforma estrutural que tocasse nos privilégios dos privilegiados brasileiros. Não houve toque nos privilégios, embora tenha havido avanços nos benefícios sociais para as camadas mais pobres.

            Então, quem estava ali não tinha o que reclamar de perda de privilégios. Não foram também os que sentiram pelas obras que foram feitas pelo dinheiro tirado de outras atividades. Quem estava ali deveria agradecer, porque estava ali assistindo a um jogo em um estádio construído pela persistência do Governo atual. Diria mais: tirando dinheiro inclusive de saneamento, que é necessário a poucos metros dali, ou dinheiro da construção de um açude para que não falte água, por causa da crise da escassez, com um açude fundamental que é o da Cantareira.

            Então, quem estava ali não tinha direito de se sentir descontente. Não é essa a lógica. Onde está a lógica, Senador Suplicy? Atrevo-me a dizer que o que aconteceu ali é apenas um reflexo de um jogo do que a elite brasileira, do que o povo brasileiro, do que nós todos, sobretudo os políticos, nós líderes, ao longo de toda a nossa história.

            Afinal, Senador Eduardo Suplicy, aquele grito durante 350 anos foi dito, feito para os escravos brasileiros. Não era dito com aquelas palavras, mas era dito com gestos. Nós, durante 350 anos, fizemos gestos, palavras, gritos obscenos para, talvez, 10 milhões de negros que vieram da África ou nasceram aqui sob a condição de escravidão.

            É uma obscenidade a escravidão, é uma obscenidade o tratamento aos escravos! Ali, naquela tarde, nós estávamos mostrando que o Brasil continua, em sua alma, com a visão de gritos obscenos para parcelas da população. Acabada a escravidão, durante essas últimas décadas todas, o que grita? O silêncio, ao passarem em um carro confortável, da pessoa que olha um ônibus apertado, que olha a parada de ônibus. O que grita para quem está na parada de ônibus, e alguém passa rápido no carro e joga água em quem está à espera do ônibus? Está gritando o mesmo que foi gritado para a Presidenta da República, mesmo em silêncio.

            É uma obscenidade o que se está fazendo quando se trata o passageiro de ônibus deste País com a perversidade, com a maldade, com o desprezo com que nós tratamos. E o que se pode dizer quando se olha uma mãe com uma criança nos braços na fila de um hospital, sabendo que não será atendida, quando nós outros temos nossos privilégios de tratamento. Nós gritamos uma obscenidade para essa mãe! Podemos não dizer em palavras, mas em nosso olhar há um grito igual ao da grosseria que foi dita. É aquela mesma coisa que nós dizemos, às vezes, no silêncio de nossa tolerância com a desigualdade.

            É uma obscenidade a desigualdade neste País, a concentração de renda neste País. Este País grita, o tempo todo, para os excluídos - e, quando digo este País, digo os incluídos -, como gritaram naquela tarde para a Presidente da República, com aquele gesto obsceno que envergonhou o Brasil e que é dito e envergonha o Brasil no dia a dia da desigualdade em que vivemos.

            Não esqueçam que Victor Hugo, o grande escritor francês, se negou a apertar a mão do Imperador Pedro II, porque era Imperador de um País onde havia escravidão (pelo menos o dizem). Hoje, muitos olham para nós, no resto do mundo, como imperadores de um País que não cuida bem das crianças, que não cuida bem das escolas, que não cuida bem dos hospitais, que trata os cidadãos e cidadãs que nasceram neste País como se fossem castas diferentes.

            Essa reflexão não foi feita pela Presidenta da República nem pelos que comemoraram o fato de ela ter sido agredida daquela maneira vergonhosa por alguns. Não refletimos. Nós tínhamos é que pegar aquilo e fazer uma dissecação: por que aquilo aconteceu? E não basta, como eu já disse, dizer que foram os privilegiados contra um governo progressista, que foram os descontentes com o Governo apenas.

            Aqueles gritos, Senador Suplicy, eu tomei como se fossem para mim também, porque eu sou político. O que gritaram para a Presidenta estavam gritando para todos nós, políticos, pelo descontentamento generalizado que nós provocamos na população. Eles estavam gritando ali por causa da Petrobras, por causa do Metrô de São Paulo, por causa da desigualdade, por causa dessas alianças ridículas, estúpidas e insensatas que nós estamos fazendo nesses últimos dias antes das convenções.

            O povo está vendo - o povo, quando eu digo, é aquela elite que estava ali - os acordos que são feitos, até porque alguns políticos no Rio de Janeiro disseram, de uma maneira também obscena, grosseira, que aquelas alianças pareciam sexo com muita gente. Usando a palavra correta, eles disseram que parecia suruba. O que nós estamos fazendo, nas alianças políticas que estão sendo costuradas nesses últimos dias antes das convenções, merece ou justifica aqueles gritos. Eu tomei aqueles gritos para mim também e tomei aqueles gritos sentindo que há uma história por trás deles, uma história de cinco séculos em que este País tem sempre um grupo gritando aquilo para o outro.

            Por isso, eu sinto, Senador Suplicy, quando eu vejo o comportamento dos que comemoraram aquele absurdo ou dos que querem tirar proveito dele, uma cumplicidade na obscenidade como os negócios públicos brasileiros têm sido tratados historicamente. Eu sou parte das lideranças deste País e não consigo impedir que isso aconteça. Portanto, no fundo, termino levando aqueles gritos contra mim também.

            Eu acho que é hora de refletirmos que aquela obscenidade daquela tarde, creio, de uma quinta-feira é apenas o eco de uma história de exclusão, uma história de má educação, de uma história de incivilidade que caracteriza o Brasil.

            A incivilidade das ruas de nossas cidades, a incivilidade do desprezo pela educação e pela saúde, a incivilidade de um país que tem um lema escrito na bandeira e deixa 13 milhões de adultos analfabetos sem saber ler a bandeira do próprio país. A nossa bandeira, em um país com 13 milhões de analfabetos, é o produto de republicanos não civilizados, que não levaram em conta que, naquela época, 65% da população não sabiam ler e, portanto, não ia conhecer a bandeira do próprio país. Aquilo foi apenas o gesto, a prova, a manifestação da incivilidade que caracteriza a sociedade brasileira. E nós somos os culpados por isso. Somos os culpados por não termos feito o que era preciso e por não refletirmos sobre o porquê, sobre as causas concretas, reais, daquilo e alguns ficarem comemorando e outros ficarem tirando proveito ou tentando isso.

            Está na hora de refletirmos sobre aquele grito, mas sobre aquele grito, ao longo dos 500 anos, não apenas contra a Presidente da República - um absurdo que foi cometido -, mas contra todos os pobres deste País, todas as crianças sem um atendimento médico no momento certo, todas as mães que sofrem porque seus filhos caíram no crime ou na droga ou no desemprego. Nós sofremos de uma cumplicidade em relação àquela obscenidade. E esta é a pior das obscenidades: ser cúmplice dela.

            Ainda há tempo, Senador Suplicy. Se não corrermos para corrigirmos os nossos erros, aqueles gritos vão se repetir, não apenas contra a Presidente, mas contra todos, até porque aquilo não foi contra a Presidenta ou o seu Partido, mas foi também contra a Presidenta e o seu Partido, que ficaram iguais aos outros. O povo não vê mais diferença e perdeu o respeito por todos. E, ao perder o respeito, ele se sente no direito de dizer coisas horrorosas, como aquelas que foram ditas.

            Vamos refletir, Senador! Não vamos apenas ficar de um lado ou de outro dos gritos; vamos mergulhar no grito. Nem um lado, nem outro, mas um mergulho no grito, com o horror que ele nos provoca, mas despertando para saber as causas e, a partir delas, corrigirmos os erros que levam a sociedade brasileira a esse grau de incivilidade, de falta de civilização, que caracteriza nossas ruas, que caracteriza nosso sistema social e nosso sistema econômico.

            Era isto, Sr. Presidente, que eu tinha para falar.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 25/06/2014 - Página 51